Dois dos maiores poderes do Brasil, a Presidência da República e o gigante da comunicação, estão em conflito há dois anos. Até a saída da emissora de astros como Tarcísio Meira, Glória Menezes ou Antônio Fagundes e os direitos de transmissão de jogos são usados como arma
Jair Bolsonaro. Sergio Lima / AFP
João Almeida Moreira | São Paulo
"Os esquemas bilionários da Globo!" e "corrupção para valer é com a família Marinho!", exclamou Jair Bolsonaro na quinta-feira nas suas redes sociais. A ilustrar, o presidente da República anexou uma reportagem do telejornal da sua aliada TV Record, propriedade de Edir Macedo, bispo da IURD, sobre supostas ligações da família que controla o Grupo Globo a Sérgio Cabral, antigo governador do Rio de Janeiro a cumprir pena de prisão, e irregularidades na obtenção dos direitos de transmissão dos Jogos Olímpicos da cidade, em 2016.
Foi apenas o último episódio de uma guerra aberta entre dois dos maiores poderes do Brasil: o Palácio do Planalto, ocupado pelo presidente de extrema-direita Bolsonaro, e a Globo, maior e mais influente rede de comunicação do gigante sul-americano. Uma guerra que já ultrapassou os limites da política e chegou a dois dos principais produtos do canal, as telenovelas e o futebol.
Primeiro a política: no mês passado, após a prisão de Dario Messer, considerado o maior "doleiro" (negociante de dólares no mercado paralelo) do Brasil, foi noticiado pela revista Veja que, em delação à polícia, o criminoso afirmara, sem provas, que a família Marinho, dona da Globo, estava entre os seus maiores clientes.
O Jornal Nacional, principal telejornal da Globo, repercutiu o assunto, destacando não terem sido apresentadas provas e acrescentando um desmentido da própria família Marinho.
Mas nas redes sociais Bolsonaro surfou na onda da delação de Messer sem piedade: fez um cálculo, por conta própria, de quanto o "doleiro" havia passado aos Marinho - segundo ele, cerca de 1,75 mil milhões de reais.
Os bem articulados apoiantes do Governo lançaram então uma hashtag sob o nome #rachadinhadaglobo. Numa alusão à "rachadinha", prática de desviar salários de assessores de deputados para o próprio bolso, do senador Flávio Bolsonaro, primogénito do presidente, no seu gabinete. Flávio e mais dezenas de familiares e amigos de Bolsonaro são suspeitos de se beneficiarem de um esquema milionário de desvio de dinheiro público que serviu até para compra de imóveis em dinheiro vivo.
Mandetta e Moro
No auge de rejeição ao presidente, na sequência da negação da gravidade da pandemia de covid-19 e das demissões dos ministros Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e Sérgio Moro, da Justiça, foi ao programa Fantástico, da Globo, que o primeiro reagiu à controversa demissão. E foi no Jornal Nacional, da mesma emissora, que o segundo apresentou provas, através de mensagem do aplicativo WhatsApp, de que Bolsonaro havia interferido na Polícia Federal, caso sob investigação.
Por essa altura, a Globo, como a maioria dos meios de comunicação do Brasil, noticiou os sonoros "panelaços" [protestos barulhentos às janelas] contra a omissão do presidente no combate à covid-19 na maioria das capitais estaduais do Brasil. Bolsonaro desafiou, em público, a Globo a mostrar também os "panelaços" a seu favor. E a Globo registou-os, sublinhando, no entanto, que foram em muito menor quantidade.
Em comunicação ao país de 7 de setembro, Dia da Independência, Bolsonaro elogiou o golpe que resultou na implantação da ditadura militar de 1964 a 1985, gerando as habituais críticas da maioria da comunicação social. Mas o presidente fê-lo citando palavras escritas, em editorial do jornal O Globo da época, por Roberto Marinho, o patriarca do grupo - o grupo Globo, por mais de uma vez, já admitiu os erros de avaliação cometidos naquele editorial.
Os choques entre Globo e políticos não é inédito - os governos do Partido dos Trabalhadores, sobretudo de Lula da Silva mas também de Dilma Rousseff, queixavam-se, e continuam a queixar-se, do tratamento que lhes é dado pelo grupo da família Marinho. A emissora chegou até a fazer um mea culpa por, num debate gravado entre Lula e Collor de Mello à época da primeira eleição presidencial pós-ditadura, ter editado as imagens de forma a favorecer o segundo, que acabaria eleito.
A Globo tem sido um dos alvos dos apoiantes de Bolsonaro. Carl DE SOUZA / AFP
Mas, para Maurício Stycer, especialista em televisão do grupo UOL e colunista do jornal Folha de S. Paulo, "este Governo, mais do que qualquer outro no regime democrático, busca o confronto com os media". "É uma atitude tão agressiva, em algumas situações, que põe em causa a própria intenção do Governo. A Globo, por ser a maior empresa de comunicação do país, está sendo um alvo preferencial, mas não é o único", afirmou ao DN.
Em entrevista ao programa Roda Vida, da TV Cultura, o ex-diretor de programas da estação, José Bonifácio Sobrinho, disse que "a guerra não é contra a imprensa, não é contra a TV, é contra a democracia".
"Porque essas pessoas só estão combatendo a televisão e a imprensa porque aí reside o pilar de defesa da democracia, então, o que acho é que é uma pena que emissoras de alguma forma tenham aceitado esse jogo, porque é um jogo político sujo, uma maneira de provocar para aparecer e desenvolver um culto à personalidade inaceitável, porque isso acaba como já vimos no nosso "querido" Adolf Hitler, que já foi há muito tempo, graças a Deus", disse Boni, como é conhecido.
Na ficção
A guerra, entretanto, extravasou a política. Em Bonsucesso, uma das novelas recentes da Globo, o "mau da fita", interpretado pelo ator Armando Babaioff, usava diálogos "anti-LGBT" e "antipautas ideológicas" numa associação explícita entre o vilão da trama e o discurso padrão dos apoiantes do Governo.
Os bolsonaristas mais conservadores em questões comportamentais - como o segmento evangélico, por exemplo - chegaram a boicotar novelas da Globo por terem beijos gay e a aconselhar os folhetins da Record, normalmente inspirados em passagens do Antigo Testamento.
Ainda nas novelas, esses apoiantes do Governo não hesitaram em aproveitar uma nova política da Globo para a atacarem: depois de o canal decidir não renovar os contratos de atores veteranos consagrados, como os do casal Tarcísio Meira e Glória Menezes ou o de Antônio Fagundes, as redes sociais bolsonaristas foram invadidas por hashtags como #globofalida e outros.
Stycer, no entanto, contextualiza a atitude do grupo de comunicação. "Por décadas, a Globo imitou a política dos grandes estúdios de Hollywood no passado e manteve um grande elenco sob contrato fixo. Os novos tempos obrigaram-na a racionalizar a área de recursos humanos e abrir mão destes contratos antigos. Como ocorre de um modo geral neste meio, artistas são contratados por trabalho."
"Para quem via a Globo como uma 'mãe', sem dúvida, esta nova política é uma deceção, um choque", prossegue o especialista. "Veteranos com quatro ou cinco décadas de serviços prestados não estão tendo os seus contratos renovados. Mas parece-me um ajuste óbvio e necessário em busca de novo posicionamento no mercado. Hoje, a empresa enfrenta concorrência não apenas na TV aberta, mas também na TV por assinatura e, mais importante, no mercado de streaming."
Os efeitos da nova política de contratos da Globo teve efeitos negativos para lá da bolha bolsonarista e chegou até a críticos do Governo: artistas, fãs e empresas alimentaram correntes no Twitter, no Facebook e no Instagram, com mensagens pedindo mais respeito e trabalho aos atores veteranos do Brasil sob as palavras de ordem "eu quero veteranos na TV".
No relvado
A guerra também chegou ao futebol. É, aliás, nos relvados que o conflito entre Governo e Globo se mostra, além de político ou social, acima de tudo económico.
No dia 17 de junho, Bolsonaro recriou o Ministério das Comunicações e nomeou como ministro Fábio Faria, um deputado federal que é genro de Sílvio Santos, dono do SBT, televisão que, como a Record de Edir Macedo, concorre com a Globo.
Logo no dia seguinte, o Planalto publicou uma medida provisória que dá ao dono da casa o direito de comercializar os direitos de transmissão - resolução que prejudica a Globo e beneficia o SBT.
O Flamengo, cujo presidente se havia reunido com Bolsonaro por aqueles dias, chegou a acordo com o SBT e o canal transmitiu a final do campeonato estadual carioca entre a equipa então ainda treinada por Jorge Jesus e o rival Fluminense - um jogo que, à partida, passaria no horário nobre para os telespectadores cariocas.
O histórico Fla-Flu, dérbi do Rio de Janeiro, também entrou na guerra entre Bolsonaro e a Globo. EPA/ANTONIO LACERDA
O mesmo SBT, que, antes de Bolsonaro, praticamente nem tinha editoria de desporto, passou a deter os direitos da Taça dos Libertadores da América, equivalente sul-americano da Liga dos Campeões.
A alteração radical na distribuição de verbas do Governo aos canais explica o sucesso do SBT. Dados da Secretaria de Comunicação da Presidência, vinculada ao Ministério das Comunicações, mostram que, em 2017, dois anos antes da posse do atual Governo, a Globo recebeu 23,31 milhões de reais de publicidade federal, e o SBT 11,92 milhões, baseados nas audiências. No primeiro semestre de 2019, já com Bolsonaro no Planalto, contabilizou o blogue Lei em Campo, a Globo recebeu 2,65 milhões e o SBT, 6,62 milhões. Em percentagem, o canal da família Marinho detinha 48,52% das verbas publicitárias em 2017, agora tem meros 16,38%, enquanto a televisão de Sílvio Santos saltou de 24,8% em 2017, para 41,01% agora.
No portal Terra, o colunista Jeff Benício defende, entretanto, que tanto a Globo como Bolsonaro se beneficiam da guerra. "O presidente tornou-se uma máquina de controvérsias com produção diária, ininterrupta. Ajuda a vender jornais e revistas, gera milhões de cliques nos sites informativos e faz crescer a audiência de programas de TV. A Globo é a principal beneficiária desse estilo contundente do chefe do executivo. Verborrágico, o presidente fornece pautas quentes aos telejornais do canal."
Por outro lado, afirma, "da parte de Bolsonaro, não faltam declarações bélicas, gestos surpreendentes, atitudes polémicas, provocações e deboches. O telespetador corre para ligar a TV e conferir os desdobramentos das notícias que lê nas redes sociais. No caso da Globo, o público busca também uma resposta do canal - visto pelo presidente como seu inimigo número um nos media - às críticas diretas feitas por Bolsonaro. Por isso, o boicote dos 'anti-Globo' nunca surtiu efeito. Até quem detesta a emissora da família Marinho costuma espiar o Jornal Nacional a fim de, posteriormente, falar mal do jornalismo da casa."
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