segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O Chile Rebelde enfrenta o sistema político

A Constituinte foi conquistada nas ruas e urnas. Mas como escrever uma Carta que supere o neoliberalismo e estabeleça o Comum? Primeira batalha é superar velhos partidos e nomes famosos — e eleger os anônimos que lideraram a revolta

           por Cristian González Farfán

Por Cristian González Farfán, no Brecha // Tradução de Simone Paz Hernández

Poucas semanas após o plebiscito que enterrou a Constituição neoliberal de Pinochet, foi dada no Chile a largada para a elaboração de uma nova. Num prazo de apenas dois meses, devem ser apresentadas as candidaturas para formar a Convenção que assumirá essa tarefa. Submetido às regras do pacto partidário, o processo impõe diversos entraves aos novos candidatos, que emergiram dos movimentos sociais. Assim, rostos antigos de uma política deslegitimada podem acabar voltando, com vigor renovado.

O esmagador triunfo de 78,27% do apruebo (“aprovo”), no plebiscito de 25 de outubro abriu imediatamente o apetite dos partidos políticos tradicionais para lançarem suas candidaturas à Convenção Constitucional, órgão que os cidadãos encarregaram, também por esmagadora maioria (78,99%), de redigir a nova Carta Magna, que substituirá a de 1980. O referendo histórico convocou mais de 7,5 milhões de eleitores às urnas (50,9% dos cadernos eleitorais), a maior afluência desde o surgimento do voto voluntário no Chile.

Após as celebrações na Praça da Dignidade [novo nome dado à Praça Itália] e nas ruas do país, começou uma corrida contra o tempo. O prazo para a apresentação das candidaturas à Convenção expira em pouco mais de dois meses, no dia 11 de janeiro de 2021. Três meses depois (em 11/4), novas eleições serão realizadas, para eleger os 155 constituintes — número que pode variar se o Congresso aprovar um regulamento que conceda assentos exclusivos para representantes dos povos originais.

O problema para os mais de 5,8 milhões de eleitores que, naquele domingo, marcaram com caneta azul o apruebo (“aprovo”), é que suas preferências podem não ser necessariamente refletidas na votação de abril. De acordo com Mauricio Morales, doutor em Ciência Política e professor da Universidade de Talca, “no plebiscito, as pessoas votaram por opções de futuro, enquanto que, em abril de 2021, a votação será pelos candidatos que estarão distribuídos territorialmente, com o intuito de conquistar esses votos. As campanhas serão muito mais personalizadas, e nisso a direita chilena é forte. Tanto que, historicamente, sempre beirou o 40% dos votos. Não vejo por onde a esquerda possa se sair com um triunfo majoritário nessas eleições, se estiver dividida em várias listas. Num sistema de representação proporcional, as listas de vários partidos unidos tendem a conquistar mais votos”.

Morales se refere ao método D’Hondt, o sistema de representação proporcional que será utilizado no Chile para a escolha dos constituintes, conforme estabelecido no acordo político de 15 de novembro de 2019, um mês após o início da rebelião social. Lucía Dammert, doutora em Ciências Políticas e pesquisadora da Universidade de Santiago, alerta que “pode ocorrer uma coisa bem paradoxal: se a oposição se dividir em várias listas, é possível que o rechazo (a rejeição à Constituinte) tenha mais representação na nova Constituinte do que o apruebo”.

Os marginais na Assembleia Constituinte?

Neste cenário os obstáculos surgem para os possíveis candidatos que possuem uma reconhecida trajetória em organizações de base, mas que não atuam em partidos políticos. Embora a lei 21.216 — promulgada em março de 2020 e que garantiu a paridade de gênero da Convenção — estabeleça que as candidaturas independentes possam formar suas próprias listas, elas certamente não concorrem em igualdade de condições com as do establishment partidário.

Atualmente, considerando o contexto da pandemia, existe um projeto de reforma constitucional no Congresso que, entre outras medidas adicionais, permitiria aos independentes recolher as assinaturas necessárias para a sua candidatura através de um processo online — a norma estabelece que para registar uma candidatura independente, devem ser apresentadas as assinaturas de 0,4% dos eleitores do distrito eleitoral em questão (leia mais em «De nuevo en primavera», Brecha, 24-IX-20) -.

«O resultado do plebiscito foi uma vitória dos cidadãos e das maiorias silenciadas. Portanto, um dos pontos cruciais para a legitimidade da Constituinte ser reconhecida, passa pelo fato de que os partidos estabeleçam mecanismos efetivos de participação dos independentes”, diz Dammert. Na verdade, uma opção alternativa para os candidatos que surgiram do movimento social que estourou em 18 de outubro de 2019 é inscrever-se nas vagas que as formações partidárias vão abrir.

Mas, por enquanto, aqueles que mais se destacam como candidatos à Convenção são rostos já conhecidos da política da pós-ditadura. Por exemplo, a ex-ministra da Educação, Mariana Aylwin (filha do ex-presidente Patricio Aylwin), já anunciou sua candidatura. Embora historicamente tenha sido membro do Partido Democrata-Cristão, ela agora se classifica como independente. Nesta semana, Mariana declarou à Televisão Nacional que hoje em dia se sente mais alinhada com o Evópoli, um partido que se autodefine de centro-direita e que, no plebiscito, dividiu seus votos entre a aprovação e a rejeição.

Em contraste com essas conversões de última hora, nascem novas vozes nos territórios mais precários do país. Sol Danor é uma ativista, feminista, líder territorial e poeta da comunidade de La Legua, no município de San Joaquín, em Santiago, pertencente ao Distrito 10. Desde esse setor, reconhecido pelo seu extraordinário nível de articulação social, Sol pretende levantar uma candidatura à Assembleia Constituinte sem aliar-se a nenhum partido político: fará isso por meio de uma lista com outras candidaturas independentes.

«Nós, da periferia, temos de pintar esta Convenção para colori-la. Lutamos contra um maquinário gigantesco, personificado no rosto de pessoas famosas. Me interessa participar desse processo, mas mesmo se eu não for eleita, tentarei influenciar de algum jeito. Da maneira como a eleição está prevista, a Convenção não terá legitimidade, pois os partidos políticos, mesmo deslegitimados, já terão tudo amarradinho. Propomos, desde La Legua, que todos nós que fazemos parte de organizações de base trabalhemos por um projeto comum, por meio de um porta-voz que nos apoie em cada território para escrever a Constituição”, explica Danor.

Giovanna Grandón, que ficou famosa por dançar fantasiada do personagem Pikachu na Plaza de la Dignidad, também pretende se candidatar à Assembleia Constituinte sem o consentimento de nenhum partido político. Tia Pikachu, como foi simpaticamente apelidada, viveu a vida toda na comunidade de Lo Hermida, no bairro de Peñalolén, e durante a pandemia tem apoiado as ollas comunes (algo como um “panelão comunitário”, uma iniciativa autogestionária que funciona como refeitório popular em épocas de fome e crise) que foram organizadas em Santiago — [leia «Las ollas de la dignidad», Brecha,19-VI-20]. Ela revela que concorrer a um cargo político nunca esteve em seus planos, mas que seus vizinhos a convenceram.

“As pessoas começaram a me dizer: Tia, você conhece a rua, sabe das necessidades. Então eu resolvi me candidatar. Precisamos de pessoas que tenham noção da realidade das comunidades e dos acampamentos (comunidades onde as casas são essencialmente barracos). Se os mesmos de sempre — pessoas letradas — concorrerem, mudar a Constituição não vai adiantar. Minha ideia é formar uma lista de independentes. Já tenho uma equipe, mas sabemos que é difícil: não temos dinheiro para campanhas. Eu ainda tenho a vantagem de ser um pouco mais conhecida, por causa da personagem”, explica Grandón, cuja prioridade é conseguir se inscrever no Distrito 11, ao qual Peñalolén corresponde. Mas, ainda assim, hesita — porque esse distrito também inclui La Reina, Las Condes, Vitacura e Lo Barnechea. Estes três últimos, foram os únicas bairros de Santiago onde o rechazo venceu, e é onde vivem as pessoas de alta renda.

O cientista político Mauricio Morales sugere que estratégia cidadã para melhorar as condições daqueles que não militam em nenhum partido, consiste em continuar o caminho dos protestos e das manifestações nas ruas. “É o tipo de pressão que melhor funciona”, diz o especialista, para quem “os quase 80% obtidos na aprovação devem ser considerados pelos partidos, tanto na formação de suas listas eleitorais quanto na apresentação de seu plano programático”. Danor concorda com isso, para quem é fundamental “não largar a rua” e “reativar as assembleias e conselhos territoriais” que floresceram em pleno 18-O.

A estratégia das elites

Tanto a ex-Nova Maioria, herdeira da Concertación (coalizão de centro-esquerda que governou cinco dos sete períodos presidenciais da transição pós-ditadura), quanto o Chile Vamos (coalizão de direita), têm se mostrado ambíguas a respeito das vagas que vão ceder às candidaturas dos movimentos sociais sem militância partidária. Em resposta ao aparecimento de alguns nomes que já ocuparam cargos públicos, um grupo de deputados da oposição apresentou, no último 28 de setembro, um projeto de lei que visa impedir parlamentares, ministros, subsecretários ou prefeitos em exercício de concorrer a uma cadeira na Assembleia Constituinte.

Concorrendo pela ex-Nova Maioria, o senador Carlos Montes, do Partido Socialista (PS), não se pronuncia sobre se sua coalizão abrirá ou não um percentual de cotas para candidaturas independentes do espectro social. Pelo contrário, observa Montes, “não sou daqueles que acreditam que todas as virtudes residem em não ser membro de um partido”. A proposta do PS é a “diversidade” das suas candidaturas e é aí que vão trabalhar tanto as lideranças de base como os militantes socialistas experientes. Montes também não enxerga oportunismo no fato de seu setor ter se unido às comemorações pela retumbante vitória da aprovação, apesar dos socialistas terem sido uma peça-chave dos governos pós-ditadura que se desenvolveram sob a Constituição de 1980.

Já no Chile Vamos, o deputado da Renovação Nacional e principal rosto da campanha pela rejeição, Sebastián Torrealba, nega que seu lado tenha sofrido uma derrota no plebiscito. “É absolutamente irracional pensar que por trás da votação para a aprovação havia apenas gente de esquerda, por isso, o resultado não deveria ser dramatizado. Foram os cidadãos pedindo mudanças e isso não pode ser atribuído à direita ou à esquerda”, diz Torrealba, que também é a favor da diversidade nas inscrições para as eleições de 11 de abril: “Traremos novos rostos e pessoas com participação histórica na política. Não consigo conceber a democracia sem partidos políticos”.

Mauricio Morales não tem dúvidas sobre a estratégia desenhada pelos partidos para incluir os independentes em suas listas: “Eles não o farão por convicção, mas por obrigação e oportunismo. Certamente serão independentes conhecidos que simularão uma renovação nas elites, mas essa solução é de curto prazo. Da mesma forma, embora haja algum consenso sobre a redução das barreiras de entrada para os independentes formarem suas próprias listas, “os partidos começarão a abrir cotas para dissuadir os independentes de concorrer por conta própria”.

Para Dammert, “quando você detém o poder há tantos anos, é muito difícil deixá-lo. Os partidos políticos só conhecem certas práticas e tentam repeti-las para ver se ainda funcionam”. Morales, por sua vez, acredita que, mesmo no acordo de novembro que canalizou o plebiscito, os dirigentes políticos souberam “traduzir com destreza aquele desconforto cidadão e canalizá-lo para a Constituição em circunstâncias em que a raiva era contra eles e também contra a classe empresarial. O texto constitucional era uma espécie de firewall para evitar uma grande crise e salvar-se da decapitação total […]. No entanto, a raiva ainda está latente”, diz ele.

Na opinião do cientista político, a esmagadora vitória da aprovação “é cidadã e nenhum segmento ideológico pode atribuir essa vitória para si”. Mas ele também acrescenta que o processo “implicou na derrota absoluta e histórica do pinochetismo e da direita mais radical”. Dammert lembra que o resultado do referendo enterra a ideia da polarização do país em duas metades, já que “a diferença é de 80% versus 20%”. O que acontece, diz ele, é que “aqueles 20% têm lobby, empresários, mídia… por isso, pesam o dobro”.

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