quinta-feira, 26 de novembro de 2020

OMS procura a origem da covid-19. China insiste que não foi lá

A primeira reunião virtual dos especialistas internacionais e chineses foi no final de outubro, não havendo ainda data para uma ida a Wuhan. Peritos chineses alegam que o vírus foi detetado na China, mas teve origem noutro local.

               Susana Salvador
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Um cartaz de promoção de Wuhan, na China. Hector RETAMAL / AFP

A equipa internacional que está a investigar a origem do coronavírus responsável pela covid-19 reuniu-se pela primeira vez de forma virtual no final do mês passado, não sendo ainda claro quando é que os peritos estrangeiros irão a Wuhan, na China, onde este foi pela primeira vez encontrado. Especialistas chineses insistem que o SARS-CoV-2 não teve origem no país, tendo sido simplesmente ali detetado por causa dos mecanismos de monitorização implementados após o surto de SARS em 2003.

"O local onde uma epidemia foi pela primeira vez detetada não reflete necessariamente a sua origem. Um surto de pneumonia de etiologia desconhecida foi identificado através da vigilância em Wuhan, contudo a possibilidade de que o vírus possa ter circulado silenciosamente por outras partes não pode ser afastada", lê-se num documento da Organização Mundial da Saúde(OMS) sobre a investigação, com data de julho e publicado já em novembro.

"Por exemplo, alguns países identificaram de forma retrospetiva casos de covid-19 semanas antes de o primeiro caso ter sido oficialmente detetado através da vigilância. Estudos que ainda não foram publicados de amostras de esgoto que testaram positivo podem sugerir que o vírus pode ter circulado sem ser detetado durante algum tempo", acrescentam. Há um estudo, por exemplo, que diz que o vírus já estaria em março de 2019 nos esgotos em Espanha e há também investigações que o colocam em Itália.

"Foi em Wuhan que o coronavírus foi detetado pela primeira vez, mas não é a sua origem", disse na semana passada Zeng Guang, antigo epidemiologista-chefe do Centro para a Prevenção e o Controlo de Doenças da China, numa conferência online, reforçando a ideia que o atual detentor do cargo, Wu Zunyou, tem vindo também a defender.

"A China construiu um sistema de monitorização que é líder a nível mundial para reportar pneumonias desconhecidas desde o surto de SARS em 2003. Estamos sempre em alerta máximo", disse Zeng Guang, alegando que foi graças a isso que a China foi a primeira a identificar a covid-19. E reiterou que Pequim continuará a ajudar na investigação à origem deste coronavírus.

A pandemia provocada pelo novo coronavírus já fez pelo menos 1.388.590 mortos em todo o mundo desde que foi notificado o primeiro caso na China, segundo o balanço diário da agência francesa AFP. Mais de 58.647.610 pessoas foram infetadas, sendo o número real de infeções muito maior em 37.298.300, porque há casos em que a doença é assintomática e nem todos os doentes são testados em todo o mundo.

Uma investigação longa

Os especialistas acreditam que o vírus passou dos animais - presume-se que dos morcegos - para os humanos, através de um outro animal que ainda não foi descoberto (falou-se no pangolim). As suspeitas apontam para o mercado na cidade de Wuhan, que vende carne de animais exóticos para consumo.

A agência da ONU enviou uma equipa avançada a Pequim logo em julho para preparar o terreno para a investigação, mas nunca ficou claro quando é que uma equipa de cientistas ia ser autorizada a viajar para a China e começar os estudos epidemiológicos para tentar identificar o paciente zero (o primeiro ser humano a desenvolver a doença) e a fonte da infeção.

No final de outubro, houve uma primeira reunião virtual entre os peritos internacionais e os especialistas chineses, com o diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde da OMS, Michael Ryana, a dizer que o primeiro passo será rever todos os estudos que já foram feitos "para que a viagem, a missão, possa responder aos temas que ainda fogem ao conhecimento" antes de ir ao terreno.

A organização lembrou que estas investigações são muito complexas e podem demorar muito tempo. "Eu lembro-me de que a MERS, a SARS e outras doenças que levaram meses, e algumas até anos, para se estabelecer a origem animal, e por vezes anos até que uma investigação completa seja feita no local", acrescentou Ryana numa conferência de imprensa no final do mês passado.

"Ambiente politicamente intoxicado"

"Queremos o melhor resultado científico, gerar a melhor prova possível da origem da doença, porque é importante", referiu. "Isso é o que precisamos... da melhor resposta. Não basta qualquer resposta que satisfaça necessidades de velocidade", explicou, queixando-se do "ambiente politicamente intoxicado".

O presidente norte-americano, Donald Trump, tem sido particularmente crítico da resposta da OMS à pandemia, acusando a organização de conluio com a China. Trump apelida o novo coronavírus como "o vírus da China", com Pequim a fazer de tudo para provar que o vírus não teve origem no país.

Mas, além dos EUA, outros países têm exigido da China a colaboração para a realização das investigações que permitam descobrir a origem do coronavírus.

A troca de acusações leva a que a investigação que tem sido feita na China não tenha circulado e não tenha sido tornada pública, segundo Linfa Wang, virologista da Escola de Saúde de Singapura (uma parceria entre a Universidade Nacional deste país e a Universidade de Duke, nos EUA) que fez parte da equipa que investigou a origem da SARS na China em 2003.

Em declarações à revista Nature, Wang disse esperar que a tomada de posse da nova administração de Joe Biden, que já disse que vai reverter a decisão de Trump de sair da OMS, possa criar um ambiente "muito mais positivo".

Como é a investigação?

A equipa é formada por epidemiologistas, virologistas e outros peritos em saúde pública e segurança alimentar, mas a sua identidade não foi revelada pela OMS. Dez cientistas são chineses, dez são internacionais, sendo certo que a sua composição teve de ser aprovada pela China, segundo o plano datado de final de julho.

Além de analisar os estudos já publicados e preparar os protocolos do novo estudo, a equipa investigará a situação no terreno. Inicialmente, serão especialistas que já estão na China a fazer esse trabalho, com os outros investigadores internacionais a viajar para a China só depois de o reverem.

Em Wuhan, os investigadores vão voltar ao mercado que se estima ter sido a origem, no entanto as amostras iniciais de carcaças congeladas de animais, recolhidas logo no início da pandemia (o mercado fechou a 1 de janeiro), não mostraram sinais do SARS-CoV-2. Os animais vivos foram mortos e não se guardaram registos.

Amostras ambientais do esgoto mostravam a presença do novo coronavírus. "Continua a não ser claro se o mercado foi a fonte de contaminação, atuou como um amplificador da transmissão entre humanos ou uma combinação destes fatores", diz o texto.

Os investigadores vão tentar identificar as rotas de comércio dos animais, procurando encontrar uma origem, assim como olhar para outros mercados na região. Os morcegos onde foi identificado um vírus semelhante ao SARS-CoV-2 vivem a mais de mil quilómetros, noutra região chinesa, e as autoridades defendem que se deve investigar morcegos noutros países.

Outra parte do estudo passa por analisar os registos hospitalares, tentando perceber se o vírus já se estava a espalhar antes de dezembro de 2019, e proceder a testagem de material genético recolhido de pessoal médico e trabalhadores agrícolas antes dessa data.

Neste âmbito, e uma vez que este estudo também deverá ser feito pelos cientistas locais, os críticos dizem que isso significa que Pequim terá controlo sobre o que é mostrado, já que é provável que os cientistas internacionais não tenham acesso ao material em bruto, apenas às conclusões.

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