sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Revista íntima: Há sempre um nome de mulher

Por Saulo Dutra de Oliveira

Por trás da história que acompanha o tema revista íntima e vexatória há sempre um nome de uma mulher[1]. Convido conhecer o disco duplo lançado em 1987, no qual cada canção retrata diferentes histórias/estórias de mulheres: músicas, autores e intérpretes imortalizados em nossa cultura. A arte é uma viagem no tempo e na retratação: Conceição, Luiza, Maria, Clementina, Betânia …

Na vida ou na arte, o sofrimento retratado nalgumas dessas canções seguem roteiros transmutados em casos atuais e rotineiros, com destaque ao tratamento cruel e desumano destinado às visitantes de unidades prisionais. 

A espoliação espetaculosa e humilhante traz em seu âmago a violência de gênero, a misoginia, a objetificação e submissão da mulher. Afinal, se dentro do cárcere o país é o das calças beges, nas portas de suas entradas, são as mulheres que estão devidamente uniformizadas, nos termos dos padrões de cores impostas pela Secretaria Penitenciária.

Um breve escorço temporal traz alguns casos. Já em 1989, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos passaria a se debruçar sobre o tema. Mas, foi somente no ano de 1996, aos 15 de outubro, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, RELATÓRIO Nº 38/96 CASO 10.506 (Argentina) publicizava:

Em 29 de dezembro de 1989, a Comissão recebeu denúncia contra o Governo da Argentina, relacionada à situação da Senhora X e sua filha Y, de 13 anos. A denúncia alega que o Estado argentino, e especialmente as autoridades penitenciárias do Governo Federal, que efetuam revisões vaginais rotineiras das mulheres que visitam a Unidade Nº 1 do Serviço Penitenciário Federal, violaram os direitos protegidos pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Em todas as visitas realizadas ao seu esposo, que se encontrava detido na Prisão de Réus Processados da Capital Federal, a Senhora X, juntamente com a filha do casal, de 13 anos de idade, foi submetida a revistas vaginais. Em abril de 1989, a Senhora X impetrou recurso de amparo, solicitando a eliminação desses exames. A petição alega que a prática do Serviço Penitenciário Federal (“SPF”) representa uma violação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, já que é lesiva à dignidade das pessoas submetidas a tal procedimento (artigo 11), constituindo medida de caráter penal degradante que transcende a pessoa do condenado ou processado (artigo 5.3); além disso, é discriminatória em prejuízo das mulheres (artigo 24), em função do artigo 1.1.[2]

Em conclusão, a CIDH sedimentou que ao impor uma condição ilegal para a realização das visitas à penitenciária sem dispor de mandado judicial ou oferecer as garantias médicas apropriadas, e ao efetuar revistas e inspeções nessas condições, o Estado argentino violou os direitos da Senhora X e sua filha Y consagrados nos artigos 5, 11 e 17 da Convenção, em correlação com o artigo 1.1, que dispõe pela obrigação do Estado argentino de respeitar e garantir o pleno e livre exercício de todas as disposições reconhecidas na Convenção. No caso da menor Y, a Comissão conclui que o Estado argentino também transgrediu o artigo 19 da Convenção.[3]

Neste diapasão, escapando do ambiente prisional, relembra-se o caso da ex-escrivã da Polícia Civil de São Paulo, que em 2009 foi desnudada por seus pares, dentro de uma Delegacia. O vídeo ganhou notoriedade nacional. Acusada e processada criminalmente, restou absolvida. O juiz Antônio de Oliveira Angrisani Filho deliberou que houve clara violação ao direito da mulher investigada. Se sequer o homem pode tocar o corpo da mulher para a realização da busca, conquanto mais desnudá-la. Se foram apreendidas ou não as cédulas previamente xerocopiadas na posse da ré é fato a ser considerado como inexistente nos autos pela notória nulidade da prova.[4]

Em 2012, tivemos a oportunidade de impetrar Habeas Corpus Coletivo ao TJSP, para Taubaté e região, visando proibir a prática patentemente atentatória às normas humanitárias. A liminar foi deferida, destacando-se que o exame invasivo, sem permissão do titular de direitos, acaba por se constituir em violência inadmissível num estado democrático de direito. O Desembargador Marco Nahum asseverou que em nome de eventual segurança carcerária, o Estado não pode violentar a dignidade do ser humano, obrigando-lhe a se submeter a exame invasivo, para que a autoridade possa proceder ‘a retirada do corpo estranho do interior da pessoa investigada, com ou sem o consentimento da mesma’.[5]

Mais tarde, o processo foi vindicado pelo Órgão Especial, num esforço hermenêutico do Regimento Interno da Corte. O placar de votação de mérito final do writ: 24 x 1 pela denegação da ordem.

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