Por Pedro Perucca

Fontes: Jacobin
Além da confluência de interesses derivada do complexo industrial militar, a OTAN apóia a reivindicação britânica sobre as Malvinas porque as ilhas são um trunfo geoestratégico fundamental para intervir na América Latina.
No 39º aniversário do início da Guerra das Malvinas, entrevistamos Lucas Sebastián Melfi, cientista político, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos (IEALC), onde é membro do Grupo de Estudos de Política Externa, Geopolítica e Defesa, coordenado pela doutora em Ciências Sociais da UBA Sonia Winer. Com ela editaram recentemente o livro Malvinas na geopolítica do imperialismo. Complexo Militar Industrial Britânico e alianças com os Estados Unidos .
Uma primeira questão evidentemente aponta para a validade da reivindicação soberana argentina sobre as Malvinas. Por que o Reino Unido mantém essa presença nas Malvinas e como isso se relaciona com a relevância geoestratégica das ilhas e a disputa pelos bens comuns?
Para responder por que o Reino Unido mantém sua presença nas Ilhas Malvinas, a primeira coisa a dizer é que as ilhas não são apenas um ativo geopolítico relevante para a estratégia britânica, mas para toda a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Nesse sentido, vemos que não só o Reino Unido mantém a sua presença, mas que a OTAN tem investido fortemente na renovação dos sistemas de defesa, aeroportos e outros, por o considerar como um elemento específico da sua nova estratégia global de espectro total. Essa seria a primeira ressalva, que as ilhas não são apenas um elemento geopolítico de grande relevância para o Reino Unido, mas para toda a nova estratégia global que a OTAN começou a considerar desde a queda do Muro de Berlim em 1989.
Então, eu dividiria isso de importância geopolítica em dois, um aspecto geoeconômico e um aspecto geoestratégico. Da geoeconomia, o que sempre se fala é a questão dos bens comuns renováveis e não renováveis no que são as Malvinas, o Atlântico Sul, a Antártica e os espaços marítimos circundantes. Claro que é assim, temos toda a questão da pesca de peixes, lulas e moluscos, mas também há toda a questão do extrativismo petrolífero. No livro detalhamos todas as licenças da bacia do norte das Malvinas para a extração de hidrocarbonetos. E não se trata apenas da pesca e do petróleo, mas há um terceiro fator geoeconômico que vemos, que tem a ver com as Malvinas como fator de colocação de bens e serviços de defesa, como a continuidade de um paradigma de desenvolvimento industrial militar do Reino Unido, é claro, alimentado em suas origens pela Marinha Real Britânica, que vê na Guerra das Malvinas uma oportunidade de renovação e preservação do patrimônio armamentista, ao contrário do que tinha foram as políticas de ajuste de Margaret Thatcher (Primeira-Ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990). Estamos falando de uma série de estruturas que vão muito além da luz pública e se concentram nos cantos do estado profundo, além de qualquer sistema de equilíbrios e equilíbrios, para os quais os tempos de paz são os piores. Porque para uma indústria como a de armamentos, com o nível de pesquisa e desenvolvimento que exige, E com o nível de investimento que a pesquisa e o desenvolvimento industrial exigem, não ter escoamento para seus produtos é devastador. Então o que se busca do ponto de vista geoeconômico é que haja um escoamento permanente dessas mercadorias, de bens e serviços de defesa.
Acredito que nesse sentido há uma continuidade que começa mais do que tudo com a Segunda Guerra Mundial. Essas estruturas, que muitos chamam de complexo industrial militar enquanto outros, de uma perspectiva mais política da economia, preferem chamá-las de base industrial de defesa, partem do imperialismo do século XIX. Agora, sua forma moderna ganha relevância a partir da Segunda Guerra e tem um ponto-chave em seu desenvolvimento, já entrando na pós-modernidade e no neoliberalismo, durante a Guerra das Malvinas. Lá ocorre toda uma transformação desse complexo, que se dirige mais para um modelo com mais protagonismo de atores privados, mais semelhante ao modelo do complexo industrial militar americano.
Como este novo quadro se expressa na política externa específica do Reino Unido, em particular no que diz respeito às nossas Ilhas Malvinas?
Esta necessidade de colocação permanente de bens e serviços de defesa pode ser vista com muito mais clareza na resposta de David Cameron (Primeiro-Ministro entre 2010 e 2016) ao pedido de diálogo, que na altura resultou na militarização de toda a área. Das Malvinas que implica uma renovação dos sistemas de defesa, transformação dos sistemas de comunicação e substituição dos sistemas de mísseis, a um custo de 280 milhões de libras. O pedido de diálogo é respondido de forma militar. Para não falar do facto de estar instalada uma escola nas ilhas, que não está sob a órbita da Educação no Reino Unido mas sim do Ministério da Defesa, o que é bastante impressionante. Dentro desse novo esquema, atores privados, por exemplo, a transnacional BAE Systems, com sede na Grã-Bretanha, desempenham um papel proeminente.
É notável (cita a ex-embaixadora argentina Alicia Castro) a maneira como nos debates parlamentares do Reino Unido o ex-ministro da Defesa Michael Fallon conseguiu consideráveis aumentos orçamentários para as bases militares nas Malvinas, argumentando sobre o risco de uma invasão argentina , usando isso como uma possível hipótese de conflito. Como continuação disso, podemos ver também o atual primeiro-ministro Boris Johnson dizendo que de forma alguma a Grã-Bretanha vai se retirar de seus compromissos transatlânticos e anunciando o maior investimento militar em 30 anos, de 16,5 bilhões de libras.
Acho que isso reflete a importância desse fator geoeconômico, que tem a ver com a constituição de estruturas profundas como esses complexos industriais militares, que precisam estar colocando mercadorias de guerra o tempo todo, mesmo em tempos de paz. Atores como a BAE Systems e outros dentro do profundo lobby estadual pelo descarte de soluções pacíficas, sempre visando soluções que envolvam uma resposta militar-industrial, pois o objetivo é a colocação desse tipo de mercadoria.
Mas também não devemos esquecer que com a crescente importância dos atores privados, eles vão se combinando e se fundindo com essas estruturas profundas do Estado, produzindo uma hibridização onde não é mais possível perceber onde começa o público e onde começa o privado. Corporações como a BAE Systems estão intrinsecamente ligadas ao Estado britânico, não apenas por causa de seu poder de lobby e sua capacidade de penetrar nas estruturas do Estado, mas também porque uma porcentagem das ações da BAE é propriedade do Estado britânico. E, por sua vez, essas corporações se ramificam em outras, como as indústrias de mídia (estamos falando de empresas estatais como a BBC). Da mesma forma, deve-se notar que esses componentes estão sendo transnacionalizados. Este é o cerne da estratégia de Thatcher na época:
Vemos então que vetores como esses do complexo militar industrial britânico convergem com os complexos militares de outros países, basicamente no que é a OTAN. É por isso que devemos ter sempre presente que todo o investimento milionário feito não só pelo Reino Unido, mas por toda a OTAN faz parte do que se conhece como estratégia de espectro total. E com uma proposta que a OTAN vem fazendo há muitos anos, desde a queda do Muro de Berlim, que tem a ver não só com erguê-lo como Organização do Tratado do Atlântico Norte, mas como órgão de segurança global.
Aliado a isso, de forma indivisível, vem o aspecto geoestratégico. É verdade que o interesse britânico em se instalar naquela posição estratégica ao sul, onde os dois oceanos se encontram, remonta ao século XVIII. É um ponto geoestratégico indiscutível. O comodoro Lord George Anson já havia dito que a posse das ilhas tinha consequências para o Reino mesmo em tempos de paz e que na guerra praticamente as tornava senhores dos mares. Com efeito, vemos este interesse geoestratégico mas ressaltamos que não é apenas algo britânico, mas que toda a NATO aí está a jogar porque essa posição abre toda uma zona de acesso e influência, todo um corredor para o Atlântico Sul, para a América Latina ., facilitando qualquer tipo de intervenção nesse sentido. Temos que nos representar e imaginar o ativo estratégico que significa ter um local com bases militares e aeroportos rodeados de centros de extração de petróleo que nos permita já ter ali um centro de reabastecimento de armas e combustível sem a necessidade de logística e transporte. Um trunfo geoestratégico fundamental para toda a OTAN, que por esta razão também apoia a posse das ilhas pelo Reino Unido, que é um ponto fundamental a ter em conta.
Você acha que há mudanças no panorama internacional em relação à reivindicação soberana argentina? Porque por um lado poderíamos listar rejeições à continuidade da apropriação britânica de territórios ultramarinos, especialmente na União Europeia, mas há também uma continuidade de exercícios militares britânicos (sempre com apoio dos EUA) no Atlântico Sul, como num extensão, de facto, desta "globalização" da NATO que mencionou.
Quanto às mudanças no panorama internacional em relação à reivindicação argentina, acredito que a rejeição da continuidade da apropriação britânica de territórios pela União Européia faz parte da longa história que o Reino Unido tem com o continente, de acordos e divergências. Existem duas grandes tensões, uma econômica industrial e outra política, que sempre permeiam toda essa relação. A questão é que quando falamos em acordos e divergências, isso vai além das declarações diplomáticas, mas tem a ver com o entrelaçamento dos diferentes aparatos produtivos em termos de renovação industrial e inovação científica e tecnológica. Nesse sentido, a Grã-Bretanha está sempre mudando, ora mais perto da Europa ora mais perto dos Estados Unidos em termos de desenvolvimentos conjuntos, especificamente em questões de defesa. Por outro lado, há o segmento político, em que a Grã-Bretanha com seus diferentes governos está mudando sua posição dentro da OTAN como um ator que segue as estratégias do Tratado do Atlântico Norte e atua sob seu guarda-chuva e outras vezes age puramente como aliado bilateral dos Estados Unidos.
O que vale a pena estudar essa história de tensões é entender melhor o que foi o Brexit, não como um evento isolado, como a ocorrência de um louco, mas como o último capítulo de uma longa saga. Quando falamos sobre a relação especial entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, não se trata apenas de coincidências culturais, mas tem a ver com todo um sistema de desenvolvimentos conjuntos em questões científicas e tecnológicas, há todo um entrelaçamento material, a relação especial é não meramente declarativo, mas sim o correlato político desse desenvolvimento industrial e tecnológico. Assim, quando a Grã-Bretanha está mais perto dos Estados Unidos, a Europa levanta uma certa reclamação contra a apropriação e quando se aproxima de lá eles baixam o tom.
Onde vejo a principal mudança é um terrível aumento do intervencionismo, que, dito em crioulo, é o imperialismo. Há todo um posto avançado das diferentes agências imperiais sob a estratégia de espectro total, isto é, usando diferentes meios (terrestre, aéreo, suborbital, psicológico, etc.) para fazer avançar a soberania dos diferentes países. Nesse sentido, essa estratégia é aquela que se propõe a transcender o diagrama original do Atlântico Norte e passar a interferir no Atlântico Sul. E aí as Ilhas Malvinas formam o ponto de apoio fundamental. A mudança que vejo é que há uma intensificação bastante forte da ação imperialista, basicamente.
Pensa que existem mudanças reais na política diplomática do Governo de Alberto Fernández em relação às anteriores em relação às Malvinas?
Quanto à questão diplomática, parece-me que um primeiro tema a ter em conta é deixar de debater a questão das Malvinas apenas em termos nacionais (embora a questão da soberania seja obviamente nacional) para começar a debatê-la como sul-americana, latino-americana e nossa. Questão americana, porque essencialmente é isso que se assume que a presença do Reino Unido e da NATO constitui todo um corredor de acesso a todo o continente. Já dissemos que as Malvinas são um centro de reabastecimento e reabastecimento de armas, do qual podem derivar interferências de qualquer país da região.
Portanto, não é apenas uma questão nacional. Nesse sentido, lembramos o Conselho de Defesa da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) como insumo essencial que deve ser reconstruído e, claro, a criação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), que inclui Cuba. e não os EUA e Canadá. Este tipo de iniciativas continentais, da nossa união americana, parecem-me constituir um recurso e uma capacidade essencial para garantir a soberania política e a independência económica no actual contexto regional.
Vou também porque, como disse antes, a principal mudança que estou notando a nível internacional é uma intensificação e um aumento da ingerência das grandes potências. As declarações são públicas. Temos Boris Johnson dizendo que o Reino Unido não vai abandonar seus compromissos transatlânticos. Bem, eles já estão dizendo isso. E muitas pessoas ficam maravilhadas com isso. Não acho que seja algo para se surpreender, porque todas essas políticas imperialistas ocorrem porque são possibilitadas por certas narrativas estratégicas. Que isto? Nos termos de Ernesto Laclau, a recombinação de elementos discursivos em busca de um objetivo estratégico, que pode ser legitimar uma guerra, uma intervenção, gastos com defesa ... Cameron e Johnson são os dois últimos capítulos, mas lembremos também de Tony Blair (Primeiro ministro entre 1994 e 2007), do Partido Trabalhista, pois não concordam que se trate apenas do Partido Conservador. Lembremos que Tony Blair é o primeiro a vincular a tática do terrorismo aos Estados e, ao realizar essa operação retórica, tira o terrorismo da órbita da segurança e o coloca em defesa. Com isso, o que se legitima é um novo aumento do orçamento para o setor. É disso que se trata e é por isso que o anunciam publicamente. o que se legitima é um novo aumento do orçamento para este setor. É disso que se trata e é por isso que o anunciam publicamente. o que se legitima é um novo aumento do orçamento para este setor. É disso que se trata e é por isso que o anunciam publicamente.
Acredito que daqui a um ano e com a pandemia a meio, ainda é cedo para fazer um juízo de valor sobre a política diplomática do Itamaraty. Resgatamos o que Óscar Guardiola-Rivera e Laclau chamam de “diplomacia revolucionária” (algo que se fazia na época de Alicia Castro), ou seja, a construção de consensos não só com os atores tradicionais da diplomacia, mas também com toda uma série de atores sociais, políticos, sindicais e acadêmicos, como organizações não governamentais e formadores de opinião, das quatro nações que compõem o Reino Unido (lembre-se que a Grã-Bretanha é apenas uma). Acho que para fazer julgamentos de valor ainda falta
Sobre o entrevistador
Pedro Perucca é sociólogo, jornalista, editor da revista "Sonámbula" e membro do "Proyecto Synco", um observatório de ficção científica, tecnologia e futuro.
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