Omar dos Santos
Na história da evolução da humanidade a criação e o progresso dos meios de transporte foi, certamente, o fator mais decisivo para a aceleração do processo de desenvolvimento socioeconômico, cultural e tecnológico do homem, não sendo nenhum exagero afirmar que sem essa evolução a humanidade ainda estaria segregada e confinada pelas barreiras do tempo, das distâncias e do idioma e tendo que continuar presa às limitações de seu único meio de locomoção, que eram suas próprias pernas.
Não se trata de negar a grande importância das contribuições de outros tantos fatores que concorreram para esse processo, mas também é importante pensar que as grandes dificuldades de locomoção em muito influenciaram a ocorrência da grande dispersão, do tipo de organização social em clãs e tribos e do atraso tecnológico das antigas gerações, fatores que certamente comprometeram, em muito, o desenvolvimento da humanidade, chegando até inibir seu progresso científico e crescimento populacional da espécie.
Sabemos que quando o homem aprendeu a plantar e trocou a vida nômade pela sedentária, houve uma radical mudança nas relações sociais, econômicas e culturais dos indivíduos e das comunidades, surgindo, por consequência, a necessidade de maior eficiência e efetividade nos processos de comunicação e cooperação entre as pessoas e os grupos. Certamente foram essas necessidades que inspiraram o homem a buscar meios para facilitar a sua própria locomoção e a de sua produção.
Assim, até onde podemos saber, uma das primeiras conquistas do homem pré-histórico foi capacidade de domesticar o cavalo e outros animais para utilizá-los como meio de transporte, assim como fazemos até hoje. Este meio de transporte foi de tal forma importante, que por justiça, a humanidade deve a ele, mais que a qualquer outro fator, a evolução que a levou ao grau de desenvolvimento dos meios de transportes experimentados na modernidade dos navios, das locomotivas e dos veículos automotores. Com o cavalo, o homem levou notícias, cultura e tecnologia;
transportou bens, alimentos e pandemias; fez a guerra e a paz; enfim, abriu as estradas para nos trazer até onde estamos hoje.
Em resposta às novas e grandes necessidades de locomoção das sociedades, o transporte fluvial, por sua disponibilidade, naturalmente deve ter sido o meio mais usado, posto que para facilitar o atendimento da necessidade vital de água, os grupos se estabeleciam sempre às margens de seus cursos. Assim, superada a fase nômade, os primeiros caminhos do homem foram as “estradas” fluviais, lacustres e marítimas.
Contudo, a chegada da idade moderna, trazendo consigo o crescimento populacional, que segundo Thomas Malthus se dá em progressão geométrica, obrigou a sociedade a buscar o desenvolvimento tecnológico para fazer frente ao aumento, quase que exponencial, das necessidades de sobrevivência dessa população.
Assim, ao lado do transporte fluvial, lacustre e marítimo, surgem outros dois meios tão importantes quanto esse, o transporte rodoviário e ferroviário, aqui trataremos do último.
A era dos grandes descobrimentos feitas pelos povos da Eurásia fez com que o homem alargasse seus conhecimentos e sua visão do mundo e despertou nele o desejo de percorrer grandes distâncias, descobrir novos mundos, quer seja por terra ou por mar. Essa mudança comportamental da sociedade foi um importante fator na indução do desenvolvimento do setor de locomoção e transporte da maioria dos países. Com o advento das revoluções industriais, que criou muito mais necessidades de movimentação de pessoas e cargas, o referido desenvolvimento atingiu níveis de crescimento inimagináveis.
O objetivo deste preâmbulo não é outro se não o de contextualizar o leitor no assunto central deste artigo, que é o de enfocar a história do transporte ferroviário no Brasil, abordando seu nascimento, seus primeiros passos e as causas e os interesses que construíram, diga-se a verdade, sua precoce decadência.
Quando em 30 de abril de 1854, D. Pedro II inaugurou, e o fez com toda a pompa que as circunstâncias recomendavam, o primeiro trecho dos 14 Km de linha da Estrada de Ferro Petrópolis, todos os brasileiros, que à época puderam ter conhecimento desse grandioso feito, pois boa parte do país só veio a saber do mesmo muito tempo depois, certamente experimentaram um enorme arrebatamento de orgulho e entusiasmo, que certamente despertou neles grandes esperanças e confiança num futuro grandioso da nação, não se podendo negar a justeza e coerência de tais sentimentos.
Considerando a situação peculiar em que se deu aquele feito histórico da construção da primeira ferrovia do Brasil e por obrigação de justo reconhecimento, os brasileiros não podemos regatear nosso agradecimento e nossa admiração a enorme coragem competência empreendedora de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, as quais o ajudaram enfrentar o grande desafio que o empreendimento representava à época.
A iniciativa do Barão frutificou e o Brasil viveu um período de grande desenvolvimento deste meio de transporte. Assim, já em 1858, tivemos a inauguração da segunda ferrovia do país, a D. Pedro II, que previa a ligação da cidade de Recife até o rio São Francisco, que embora não tenha atingido o seu objetivo final, trouxe grande progresso por onde passava. No mesmo ano, é implantada a Estação da Corte a Queimados, no estado do Rio de Janeiro, a terceira ferrovia do país, construída pela Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II.
Essa ferrovia passou por expansões ao longo dos anos e ganhou conexão com outras ferrovias em diversos estados. Com a proclamação da República, a ferrovia passa a se chamar Estrada de Ferro Central do Brasil.
Em 1867, o Barão de Mauá inaugura a The São Paulo Railway (SPR), a primeira estrada de ferro em solo paulista. Esta ferrovia que inicialmente ligava o porto de Santos a Jundiaí, sofreu grande expansão no correr dos anos. Em 1875, foram inauguradas no mesmo estado a Companhia Mogiana e Companhia Sorocabana;
em 1876, a Central da Bahia e em1880, a Santo Amaro, também no estado da Bahia; a Paranaguá a Curitiba foi inaugurada em 1883 no estado do Paraná e no mesmo ano, a Porto Alegre Novo Hamburgo no Rio Grande do Sul.
No alvorecer do Século XX, tivemos a implantação de outras tantas ferrovias como a Estrada de Ferro Vitória a Minas em 1903, a Ferrovia Madeira-Mamoré em 1912, a expansão das ferrovias no sul do país, ligando os portos de São Francisco do Sul e Paranaguá em 1917 e a ligação da cidade de Ourinhos-SP até Londrina-PR em 1935.
Veja o leitor que em um espaço de tempo relativamente pequeno, o Brasil conseguiu construir uma malha ferroviária importante, seguindo o exemplo dos Estados Unidos, Canadá e da maioria dos países da Europa e Ásia, que decidiram investir maciçamente no transporte ferroviário, pois sabiam eles que esta modalidade de transporte era crucial para o desenvolvimento da indústria, do comércio e da agropecuária.
Podemos afirmar que a evolução de nosso parque ferroviário durou apenas três décadas, tendo seu ápice nos anos 30 do século passado. Dos 14 km da Estrada de Ferro Petrópolis em 1854, a malha ferroviária brasileira foi ampliada para 15,31 mil km em 1900, chegando à marca de 28,12 mil km em 1919. E como o esperado, as regiões servidas por este meio de transporte experimentaram um grande desenvolvimento, sobretudo o estado de São Paulo onde se concentrou a maior parte das ferrovias brasileiras, cerca de 18 delas.
A partir da década de 30, começa o declínio do transporte ferroviário no país. Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, cresce a priorização das rodovias, jogando as ferrovias para segundo plano. Tentando evitar seu declínio, o Governo Federal inicia um processo de estatização da malha férrea, que até então era operada por empresas de capital estrangeiro. Contudo, a eterna falta de planejamento governamental acarretou a precarização das mesmas e a expansão passou a ocorrer a passos lerdos.
O desinteresse foi de tal ordem que a malha ferroviária do Brasil de hoje é de 30,12 mil km de ferrovias, o que dá uma densidade ferroviária de 3,1 metros por km², considerando as dimensões de nosso território, ela é uma das menores entre os países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Por exemplo, os Estados Unidos possuem uma densidade de 150m/km² e a Argentina 15m/km². Havendo ainda muitos fatores agravantes no planejamento e manutenção das linhas, como por exemplo: apenas 1,121 km são eletrificados, estão mal distribuídas e mal situadas, estando 52% localizadas na Região Sudeste.
A guisa de ilustração, veja a comparação do tamanho de nossa malha com a de alguns países: Estados Unidos, 293,56 mil km; China, 124,00 mil km; Rússia, 87,15 mil; Índia, 68,52 mil; Alemanha, 43,46 mil km; França, 29,64 mil km; Argentina, 36,91 mil km; cuba, 5,07 mil km; Suíça, 5,06 mil km.
O leitor atento deve se espantar com o fato de que de 1930 até hoje, o Brasil tenha conseguido expandir sua rede ferroviária em apenas 2 mil km.
Chegada a ditadura militar, começa o processo de desmonte do sistema ferroviário brasileiro. Por força da megalomania da “soldadesca”, criou-se a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima RFFSA, colocando em um “só saco” coisas diferentes, não levando em conta as peculiaridades, a importância e as necessidades do transporte ferroviário para cada região, situação que foi agravada pela falta de investimentos da União, que nem ligou para o velho ditado popular: “quem pariu Mateus que o embale”. Ao final do desmonte, coube ao Presidente Fernando Henrique dar o tiro de misericórdia no sistema com seu programa de privatização, que na realidade foi muito mais uma estratégia para o Estado ficar livre das ferrovias e beneficiar os donos do capital.
Os motivos que me impeliram a traçar este cenário é a intenção de mostrar, segundo minha opinião, alguns dos porquês do quase perpétuo atraso econômico e desenvolvimentista a que nossas elites submetem nosso país. Um deles é, com toda a certeza, a vergonhosa e irresponsável negligência como nossos governantes e empresários do ramo trataram o transporte ferroviário no Brasil. Depois de um início animador, os interesses políticos e privados e a eterna incompetência administrativa do país sepultaram o transporte ferroviário de passageiros e fizeram o de cargas retroceder ao Século XIX.
É preciso que mais brasileiros entendam que nesta discussão tem que se considerar que a opção pelo transporte rodoviário, burra por ser quase exclusiva, interesses mercadológicos, não só nacionais, contaram e contaram muito. Setores monopolistas como o do petróleo, das montadoras de veículos, das autopeças, da borracha, da construção, somados aos interesses particulares da elite governamental, econômica e industrial do país, tiveram papel decisivo na definição de nossa matriz de transporte. Pode-se dizer que aqui se cumpriu mais uma vez o ditado popular que diz “juntou a fome com a vontade de comer”. Os capitalistas internacionais, traquejados na arte de subornar encontram terreno fértil em nossos dirigentes que têm uma vontade ainda maior de ser subornados. Tal situação escancara as porteiras para negociatas, trocas de favores, traições e outras “cossitas mas”.
Nenhuma potência econômica e tecnológica do mundo, como também nenhum país desenvolvido prescindiu da construção de um sistema de transporte ferroviário eficiente, atualizado e que abranja todo o seu território. Entre nós, um certo governante, “muito sábio”, cunhou uma expressão que vez enquanto é lembrada até hoje: “Governar é fazer estradas” e ele se referia às estradas rodoviárias.
Fiz estas reflexões com a pretensão, mais uma vez, de despertar em outras pessoas o interesse pela investigação, com mais profundidade, a história oficial do transporte ferroviário do Brasil que a mídia e os livros didáticos nos contaram.
Termino retomando a afirmação do título; O Brasil, literalmente perdeu o trem.
Parece-me lógico que quem perde a condução chega atrasado ou não chega.
Omar dos Santos, professor aposentado. Mora em Brasília.
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