quinta-feira, 22 de abril de 2021

O direito não é a justiça

              Por Glaucia Dunley
              https://www.cartamaior.com.br/
Créditos da foto: (Reprodução/Biblioo/bit.ly/3squCvS)

Em tempos de traição, paixão e ressurreição por vir, nosso belo país, no qual a democracia se consolidava par e passo com maior justiça social, oscila revolto, entre acatamentos e desacatos. O Direito, que deveria ser justo, como um dos filhos ou nomes da experiência sempre trágica da Justiça, cega, castrada em sua onipotência de tudo ver e poder julgar, vive agora a sua hybris, sua desmesura, seu excesso, e nos arrasta para o desencadeamento de uma tragédia política e social que nos aproxima de forma surpreendente das origens trágicas do Direito na tragédia Antígona, de Sófocles. Creonte tinha lá suas boas razões, pois, como rei de Atenas, representava o poder de dirigir e de julgar, na nova polis, sendo responsável pela ordem na cidade e, quem sabe, por seu progresso. Manda sepultar viva a sobrinha Antígona que transgredira as leis do Direito incipiente, ou seja, as novas leis escritas pelo próprio Creonte, ao sepultar seu irmão morto. Antígona representava uma outra ordem, a do povo, que se aninha nas leis dos mortos, nas da família, nos valores humanos ancestrais de solidariedade e de comunhão, as leis não escritas.

Diante de situações indecidíveis como esta, e que o Direito precisou acolher desde suas origens, ao representar ordens de valores completamente diferentes, mas não excludentes, como fazer acontecer Justiça, agora, no Brasil? Certamente não na desmesura em que caiu o Direito, alavancada por nosso Édipo-Tirano, o Juiz Moro, que, de posse de seu grande saber jurídico, acha que pode tirar, com seus expedientes, a venda que cega constitutivamente a Justiça, eximindo-a da angústia imensa que existe no ato de julgar, apelando à vinda da Justiça. Tal como Édipo, na Antiguidade, o juiz Moro instalou um processo jurídico que vai lhe custar os olhos da cara (como custou a Édipo), e a tragédia do país (a peste de Tebas), e da qual serão cúmplices todos os ministros do STF que apóiam os expedientes ditos legais mas que não fazem Jus à Justiça. Para merecer este nome, ela deve estar para sempre destituída ou desapossada desta desmesura que ela agora vive, insuflada pelo seu filho poderoso, o Direito.

A Justiça tem outros nomes, ou filhos, que devem manter-se filiados a ela, empoderando-a, para minimamente tentarmos caminhar em sua direção, sem garantia nenhuma de atingi-la. Entre eles: a castração (do saber e do poder judiciário, e que vive na metáfora poderosa da cegueira), a mesura, a isenção, o limite, a prudência e a jurisprudência, a impotência dos juízes diante do indecidível de julgar e a angústia decorrente, as leis não escritas de Antígona, do povo e de seus representantes legitimamente eleitos e que não deverão ser os bodes-expiatórios (heróis trágicos) da experiência impossível de governar! Principalmente o Brasil, país devorado e espoliado pela corrupção de A a Z, desde tempos imemoriais. Mas que devem ser lembrados agora sob pena de uma repetição acéfala acontecer.

Portanto, que venha toda Justiça possível e impossível nessa hora crítica, hora em que a democracia está em risco, abandonada por muitos de seus filhos, excessivos em suas ambições de poder, e que agem em nome da Ordem, do Direito, da Razão e da Verdade para sustentarem atrocidades, como freqüentemente foi o caso na História da humanidade.

Precisamos então refletir, para tentar sair desta confusão, sobre a diferença entre Direito e Justiça, sua relação problemática, realizando este descolamento essencial entre os dois, a fim de não retroceder nos nossos ganhos democráticos, duramente adquiridos, e que atualmente petrificam-se , no seu excesso ou abuso de poder, não mais servindo ao povo, ao contrário, fomentando nossa desgraça, nosso dysmoron – ou seja, nossa falta de destino.

Trago aqui as belas e justas palavras de Jacques Derrida, em Força de lei, seu livro-tocha, para nos iluminar neste momento: “O Direito não é a Justiça. O Direito é o elemento do cálculo, enquanto a Justiça é incalculável, ela exige de nós que se calcule o incalculável: o que seria justo – a decisão justa a partir de uma experiência aporética que é indecidível por princípio. Momento este de extrema angústia, pois que a decisão justa nunca será garantida por uma regra, por uma lei. Ela, a Justiça é devida ao outro antes de qualquer contrato – ela lhe é devida como experiência da alteridade absoluta, e, sendo assim, não privilegia o conceito de homem, mas o de outrem, sempre desconhecido, o que nos coloca numa busca sempre infinita de Justiça, e nos remete à estranheza de perceber a Justiça como uma experiência impossível, incalculável. Entretanto, em lugar de nos paralisar, este saber diferencial, apontado por Derrida, nos impele a desejar participar da dimensão criativa e participativa da Justiça, propiciando as condições para que o universal da lei possa se particularizar, e mesmo se singularizar num determinado caso – sempre único –, no exercício do Direito em construção...Como então conciliar o ato de justiça, singular, com a regra, a norma, a lei que tem necessariamente uma forma geral? Pois é possível agir conforme o Direito objetivo, mas isso não nos garante Justiça. Quem pretenderá ser justo poupando-se da angústia?”

Com esta frase-tocha, iluminando a extrema dificuldade ou mesmo a impossibilidade em ser justo, em fazer uso de um Direito Justo, Derrida abre um momento de suspensão angustiante para que se possa pensar – e talvez colocar em ato – uma desconstrução transformadora do Direito, revolucionária, na qual se exige um aumento ou suplemento de Justiça no exercício do Direito. Intensamente, ele nos deixa ver nesta estranha experiência de inadequação, ou de uma incalculável desproporção entre o Direito e a Justiça, entre o universal da lei e o singular de uma decisão, uma ponte para que a desconstrução do Direito se dê ou se faça como possibilidade de Justiça.

Uma decisão que não enfrentasse a prova do indecidível não seria uma decisão livre, seria apenas a aplicação programável ou o desenvolvimento contínuo de um processo calculável. Ela seria legal, talvez, mas não seria justa...

Glaucia Dunley é psicanalista e escritora

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