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Créditos da foto: (Viktor Vasnetsov/Wikimedia Commons)
Introdução:
Na tradição cristã do evangelho profético de João, os cavaleiros do apocalipse eram quatro: a fome, a peste, a guerra e a morte. Os quatro podiam atuar separados, imagino que o quarto sempre com um dos outros, ou todos juntos. No cenário da Guerra dos Cem anos na Europa do século XIV, a pandemia da peste negra somou-se à fome que nunca deixou de ser um risco permanente para as comunidades camponesas e os miseráveis urbanos. O quarto cavaleiro, a morte, vinha sempre no rastro dos seus parceiros, ceifando as vidas dos famintos, pesteados e vítimas dos soldados dos muitos exércitos em choque.
A imagem destes quatro cavaleiros me veio à memória lendo os dados da expansão alucinada da covid, os aumentos descontrolados dos preços dos alimentos e as estatísticas de desemprego e subemprego no Brasil. Dois dos cavaleiros, a peste e a fome, estão galopando alegremente do Oiapoque ao Chuí e o terceiro, a guerra, está preparando o seu corcel para entrar na corrida. A morte cavalga atrás, colhendo vidas a torto e a direito.
Neste artigo tento mostrar como dois destes cavaleiros atuam em conjunto enquanto criam as condições para que o terceiro se junte a eles, para maior alegria e eficiência do maior deles, a morte.
A peste:
O coronavirus está montado no primeiro cavalo do apocalipse e em um ano já infectou, oficialmente, 12 milhões de brasileiros e levou a óbito pouco mais de 330 mil no momento em que escrevo este artigo, dia 7 de Abril de 2021. A aceleração da pandemia desde o início do ano leva a projeções catastróficas para o futuro próximo. Se as medidas de isolamento social, adotadas pelos governadores e prefeitos cujos Estados e Municípios estão com seus sistemas hospitalares em colapso ou próximos a isso, não surtirem efeito nas próximas duas semanas os números de casos e de óbitos vão continuar na trajetória de aumento geométrico, ou seja vão se acelerar a cada dia. Estamos com mais de 4000 mortos por dia e podemos chegar, segundo avaliações de infectologistas e de estatísticos, a 5 mil no final de abril. Isto significa que mais 135 mil brasileiros terão se somado aos atuais 330 mil mortos, em uma estimativa grosseira tomando como média para os próximos 30 dias o número de 4,5 mil óbitos por dia. E se o ritmo continuar em aceleração os números no final do ano podem alcançar a pavorosa marca do milhão de óbitos ou mais.
O presidente Bolsonaro adotou, muito tardiamente, a posição de apostar nas vacinas para deter a pandemia e continua ignorando e combatendo o uso de máscaras e o isolamento social, sobretudo as medidas que limitam a livre operação de diferentes setores da economia. O presidente chegou a ameaçar os governadores que estão se propondo a decretar o lockdown, ou seja, a completa paralização de todas as atividades e o confinamento da população em suas casas. Bolsonaro afirmou que o “seu exército” não vai apoiar estas medidas e vai garantir o direito de ir e vir dos cidadãos. Infelizmente, está muito claro, pelos exemplos de todo o mundo, que antes de uma muito ampla vacinação, hoje avaliada em 90% de toda a população, não haverá controle de casos, de hospitalizações e de óbitos. Apoiar vacinas sem adotar os controles rígidos de circulação de pessoas (além do uso de máscaras eficientes e uso de álcool em gel) não vai segurar a maré de mortos que ameaça colapsar os cemitérios.
Por outro lado, apoiar a vacinação quando o presidente sabotou a produção e/ou a importação de vacinas e nos colocou no fim da fila junto aos países e empresas produtoras é uma falácia. Vimos o ex-ministro Pazuello, o atual Queiroga e o próprio presidente Bolsonaro anunciarem a compra de centenas de milhões de vacinas de várias empresas, mas o fato é que a disponibilidade destas vacinas é incerta e os números no curto prazo vão sendo reduzidos a cada dia que passa. De concreto temos apenas a Coronavac chinesa, agora produzida no Instituto Butantã com insumos importados da China, que (se tudo der certo) entregará 15,93 milhões de doses em abril e um milhão de doses por dia a partir de maio. Em março a promessa era a entrega de 18,1 milhão de doses, mas efetivamente chegaram 16 milhões. A vacina da Oxford/AstraZeneca, produzida pela Fiocruz com insumos importados da Índia (mas de origem chinesa) está sob ameaça de atraso na entrega devido às exigências da vacinação naquele país. O combinado é a entrega de 27,3 milhões de doses em abril, mas já em março o laboratório não conseguiu cumprir o contrato de entrega de 20,7 milhões de doses, entregando apenas 3,8 milhões. O Ministério da Saúde já admite que não teremos mais de 25,5 milhões de doses em abril, quase tudo coronavac. É preciso lembrar que uma parte destas vacinas da coronavac terá que ser usada para administrar a segunda dose dos vacinados na segunda metade de março e na primeira semana de abril. É muito pouco para ter qualquer efeito na hecatombe em curso – as contaminações novas serão muito mais rápidas do que a vacinação.
O governo deveria estar fazendo gestões junto a governos e empresas para conseguir tudo o que for possível em matéria de vacinas, mas o lembremos que há pouco tempo atrás o ex-ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, instado a falar sobre a situação pandemia no Brasil em um foro internacional da OCDE, afirmou que as coisas não estavam tão ruins em uma frase ridícula e desconexa que deixou diplomatas e jornalistas perplexos. Trocou-se de ministro sob pressão dos “donos do PIB” e do Senado, até para facilitar as relações com chineses e americanos, várias vezes insultados pelo ministro. Tínhamos que estar batendo às portas de russos, chineses, americanos e até dos odiados (por Bolsonaro e sua clique) cubanos, que estão por lançar uma vacina considerada muito promissora por cientistas insuspeitos.
Por outro lado, enquanto não se conseguem vacinas e enquanto não se fazem lockdowns para valer (isto ainda não foi feito, nem de longe, aqui no Brasil) para fazer cair a curva de infecções e internações hospitalares vai ser preciso ampliar os hospitais, comprar insumos básicos como oxigênio e o chamado kit intubação, entre outros, no país ou no exterior. Mais complicado vai ser conseguir profissionais suficientes para assumir os novos leitos de UTI. Vai ser preciso pedir ajuda internacional e, muito provavelmente, pedir desculpas aos médicos cubanos pelo papelão da ruptura do programa Mais Médicos e a verdadeira expulsão de milhares de dedicados profissionais para ver se eles voltam para nos ajudar nesta situação dramática. Alguém imagina o governo Bolsonaro fazendo isso?
A situação no Brasil piorou muito em função do erro original do governo de “deixar rolar” a pandemia para chegar ao “efeito de manada”. Infectologistas indicam que este convívio entre pessoas já contagiadas, pessoas imunizadas por vacinas e pessoas sem qualquer imunidade adquirida de uma forma ou de outra facilita o processo de mutação do vírus para adquirir capacidade para driblar as defesas dos organismos ameaçados. Foi assim que surgiram as cepas mais agressivas no Reino Unido, na África do Sul e em Manaus, esta última conhecida como P1.
Agora que temos uma cepa do vírus para chamar de nossa, e uma cepa campeã, com duas vezes mais agressividade que as outras, o problema não é só vacinar todo mundo mas torcer para as vacinas existentes também controlarem a P1, que já é dominante na maior parte do território nacional. A P1 mostrou o risco destas adaptações ao contaminar de novo muitos sobreviventes da primeira onda em Manaus. Ou seja, a imunidade adquirida pela contaminação e cura não é uma garantia contra as mutações mais agressivas. Para evitar novas mutações que anulem as vacinas já desenvolvidas a ordem dos cientistas é cortar a contaminação de forma radical via lockdowns até que uma vacinação acelerada permita isolar o vírus antes de ele se adaptar.
Agora precisamos analisar a questão dos isolamentos sociais em aplicação em várias cidades e Estados no momento presente. Está gerando desespero o baixo índice de adesão da população de São Paulo às medidas de isolamento adotadas pelo prefeito Bruno Covas e o governador João Dória. São as medidas mais duras já adotadas naquela cidade desde o início da pandemia, mas a porcentagem das pessoas que ficam em casa chega, no máximo, a 43%. No ano passado, com uma situação menos grave e com medidas menos rigorosas este índice chegou a 55% no seu melhor momento.
Que está ocorrendo? A diferença está na ajuda emergencial que vigorava no ano passado e que agora simplesmente acabou, com promessa de renovação feita há 3 meses e que só vai se efetivar no mês de abril. Podemos esperar que com a nova ajuda os índices melhorem? Não creio. A ajuda emergencial do ano passado ficou entre 600,00 e 1200,00 reais e isto foi pouco para uma parte significativa dos 67 milhões de beneficiários. Para os mais pobres 600,00 reais era mais do que auferiam em seus miseráveis processos de sobrevivência, mas para os relativamente menos pobres não era suficiente para cobrirem as necessidades de suas famílias. Esta foi a razão maior da relativamente baixa adesão ao “ficar em casa”. Para muitos foi preciso “ir à rua” para ganhar um complemento à ajuda da forma possível, via biscates, serviços, venda do que quer que desse dinheiro. Isto significava aglomerar nos transportes sempre lotados de gente sem máscara. Além disso, mesmo para aqueles que receberam o que achavam suficiente, sair de casa era uma necessidade nem que fosse para comprar alimentos, gás de cozinha e outros produtos básicos. Nas periferias e favelas não existem supermercados ou delivery de produtos comprados por telefone ou computador.
No momento presente, sem qualquer ajuda, ficar em casa simplesmente não é uma opção para quem não tem o que comer. E a nova ajuda emergencial, reduzida a algo entre 150,00 e 375,00 reais segundo o caso, e para um público de 43 milhões ao todo, simplesmente não dá para garantir o mínimo para não morrer de fome.
O congresso votou a liberação de um gasto especial de 44 bilhões para esta nova ajuda emergencial, sob pressão de Guedes e a grita ensurdecedora dos “mercados” (forma usada pela imprensa brasileira para não nomear explicitamente os “donos do PIB”) pela manutenção da austeridade fiscal. Com estes recursos, de fato, não é possível pagar mesmo a insuficiente ajuda emergencial do ano passado e também não é possível incluir os mesmos beneficiários do ano passado, para não falar dos vários milhões de necessitados que ficaram de fora do benefício. Mas o congresso entubou esta pressão sem muito resistir, mesmo os representantes da oposição. Era preciso uma contrapressão com a mobilização da sociedade e esta não ocorreu como na votação da primeira ajuda em 2020.
No ano que passou gastaram-se 300 bilhões na ajuda emergencial e isto só fez evitar o pior durante algum tempo. Os isolamentos de meia sola ou meia boca diminuíram as taxas de transmissão, mas não conseguiram achatá-las e logo foram abandonados e o repique da contaminação ocorreu como previsto pelos técnicos. Fica valendo o velho adágio: quem gasta mal gasta várias vezes e agora estamos diante de uma situação ainda mais dramática que no ano passado e propondo medidas cheias de isenções para um ou outro setor da economia ou para igrejas ou até para a prática de esportes. Estas medidas de meia boca simplesmente vão levar ao fracasso a proposta de lockdown. Teremos pequenos recuos da pandemia e novos surtos logo que prefeitos e governadores voltem a abrir a economia.
É preciso ter claro que sem garantir a alimentação e alguns outros itens básicos como gás de cozinha, por exemplo, a fome vai vencer os esforços para controlar a pandemia. O segundo cavaleiro do apocalipse entra em cena para ajudar o primeiro.
A fome:
O custo da cesta básica de alimentos no Brasil era, no mês de fevereiro, de 630,00 reais em São Paulo. O que é uma cesta básica? Trata-se de um conjunto de 13 alimentos (a lista varia um pouco segundo a região e os hábitos alimentares) considerados o mínimo necessário para nutrir corretamente um trabalhador adulto durante um mês. Por outro lado, um beneficiário da ajuda emergencial recebendo 150,00 reais, é um cidadão (ou cidadã) solteiro e sozinho e este valor é apenas 24% do custo da cesta básica em São Paulo. Isto significa que, se ele ou ela usar todo o dinheiro para comer disporá de 5,00 reais por dia para se alimentar. Se o beneficiário for uma mãe responsável por crianças (o número é indefinido, pode ser uma ou várias) ela receberá 375,00 reais, ou seja, 60% do custo de uma cesta básica. Ocorre que esta mãe terá pelo menos outra boca a alimentar sendo que podem ser várias outras bocas. São 12,50 reais por dia. Estamos falando de uma situação que tecnicamente é chamada de “insegurança alimentar”, vulgarmente conhecida como fome.
Segundo o DIEESE, a cesta básica para uma família constituída de dois adultos e duas crianças deveria ser:
Açúcar – 3 kg
Arroz – 3,6 kg
Banana prata – 7,5 dúzias
Batata – 6 kg
Café moído – 300 gr
Carne – 4,5 kg
Farinha de mandioca – 3 kg
Feijão – 4,5 kg
Leite pasteurizado – 6 litros
Manteiga – 750 gr
Óleo de soja – 900 ml
Pão – 6 kg
Tomate – 12 kg
O valor desta cesta básica familiar é, aproximadamente, de 3 vezes o de uma cesta básica individual, ou seja, 1890,00 reais. Quem recebe um salário mínimo de 1100,00 reais, quer por estar empregado formalmente (um privilégio no Brasil de hoje), quer por ser um biscateiro informal ou um “empreendedor” (nome bonito dado a quem sobrevive vendendo o almoço para comprar o jantar) bem sucedido, precisará de 1,7 salários mínimos para comprar apenas a cesta básica familiar. Ou seja, mesmo em tempos pré pandemia, o salário mínimo já não cobria as necessidades alimentares mínimas de uma família pequena (2 adultos e duas crianças). Lembremos que o salário médio de 60% dos trabalhadores no Brasil é inferior ou era, antes da pandemia, a um salário mínimo e meio.
Se pensarmos nos que vão depender exclusivamente da ajuda emergencial para sobreviver, uma família de quatro pessoas recebendo 375,00 reais teria apenas 1/5 do necessário para pagar a cesta básica acima descrita.
Tomando outro indicador dos custos da alimentação, importante para trabalhadores formais ou informais que se alimentam na rua, o custo de um PF (prato feito) na cidade de São Paulo subiu, ao longo dos últimos 12 meses, cerca de 50%, chegando, em média, a 15,00 reais. Supondo que este trabalhador solteiro receba os 150,00 reais da ajuda emergencial, ele poderá comprar em um mês 10 PFs, ou seja, comerá uma vez por dia a cada três dias. Usando outro indicador mais familiar para a classe média, a ajuda emergencial permite comprar 7 BigMac em um mês.
Nem vale a pena discutir se esta cesta básica, definida na lei do salário mínimo (DL 399 de 1938), é a dieta mais indicada do ponto de vista nutricional (e não é; tem poucos legumes, verduras e frutas). Os valores da ajuda emergencial são tão baixos e mesmo o valor do salário mínimo é tão baixo que nenhum consumidor situado abaixo da linha de pobreza, ou nas suas redondezas, sequer sonha com o consumo dos 13 produtos. Ele comprará qualquer produto alimentar que seja o mais barato, só para “encher a barriga” e com isso irá engrossar o time dos desnutridos e subnutridos que hoje já devem compor a maioria da população. Estes produtos mais baratos são, em via-de-regra, os mais processados industrialmente e os mais pobres do ponto de vista nutricional e mais cheios de sal, conservantes e outros produtos químicos. Assim, quando o recurso para comer é pouco, troca-se arroz com feijão por macarrão (na sua versão mais barata e pobre em nutrientes) com salsicha em lata. A pobreza também está condenada a consumir muito açúcar que dá uma ilusão de saciedade, mas também é ruim para a saúde.
Esta situação de má qualidade alimentar de uma grande parte da população brasileira se explicita pela ocorrência de um fenômeno muito comum: a existência de pessoas com sobrepeso e obesidade e que sofrem de subnutrição e desnutrição.
Mas quantos são afinal os afetados pelas dificuldades em se alimentar? Estudo realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) em dezembro do ano passado, ou seja, ainda com o efeito da ajuda emergencial reduzida pela metade, indicaram que 116,8 milhões de brasileiros e brasileiras estavam em uma situação chamada de “insegurança alimentar”. Com o fim da ajuda durante os primeiros três meses deste ano este número só pode ter subido bastante. A nova ajuda no mês de abril pode, no máximo, aliviar muito pouco esta situação catastrófica.
Destes 116,8 milhões, 19,1 milhões vivem em estado de insegurança alimentar grave também conhecido como fome. Tecnicamente esta expressão indica que a pessoa em questão não pode se alimentar todos os dias de forma regular.
Outros 43,4 milhões estão em situação de insegurança alimentar moderada, quer dizer, tiveram que reduzir a quantidade de alimentos ingeridos a cada dia. Finalmente, 54,3 milhões padecem de insegurança alimentar leve, isto é, tiveram que trocar o tipo de alimentos consumidos por outros de pior qualidade nutricional.
A cesta básica e de modo geral a alimentação dos brasileiros não só está muito cara quando comparada com o salário mínimo e, mais ainda, com a ajuda emergencial, mas também o seu custo está subindo muito depressa. A tabela abaixo, organizada por categoria de produtos, mostra a variação de janeiro a novembro de 2020 e os índices de aumento não pararam de subir desde então:
Cereais, leguminosas e oleaginosas - 58%
Óleos e gorduras - 56%
Tubérculos, raízes e legumes - 32%
Carnes - 30%
Frutas - 27%
Hortaliças e verduras - 23%
Aves e ovos - 13%
Enlatados e conservas - 13%
Açúcares e derivados - 10%
A variação de preços de alguns produtos chave na dieta mais comum dos brasileiros permite entender melhor as categorias acima para o mesmo período indicado acima.
Óleo de soja - 88%
Arroz - 70%
Batata - 48%
Tomate - 76%
Leite longa vida - 20%
Feijão - 30%
Estes aumentos muito significativos apontam para uma inflação nos preços dos produtos agrícolas da ordem de 20% no ano de 2020, contra uma inflação em geral de 5,2%. Esta pressão dos aumentos dos preços alimentares sobre a taxa de inflação geral levou o Banco Central ao primeiro aumento da taxa de juros em vários anos com intuito de conter uma escalada de preços. Ocorre que isto não vai ter nenhum efeito prático porque a pressão sobre os preços alimentares tem por raiz fatores que não são controláveis desta forma.
Os economistas liberais e até os nem tão liberais têm uma avaliação aterrorizante sobre o futuro dos preços alimentares. Segundo estes sábios os preços vão se estabilizar em algum momento porque os mais pobres, por falta de dinheiro, deixarão de comprar certos produtos e com esta diminuição de demanda os preços pararão de subir. Muitos apontaram a ajuda emergencial do ano passado como a causadora da inflação de alimentos. O pior é que tudo isto é verdade. O custo do ajuste econômico entre oferta e demanda é um preço que impede o consumo alimentar regular e necessário de milhões de brasileiros. A lógica da economia é sempre assim: quem pode pagar come; quem não pode, come o que puder ou não come. O ajuste econômico tem como corolário a fome e desnutrição de milhões.
Mas a economia liberal também indica que altos preços convidam a maiores investimentos na produção dos alimentos e isto deveria fazer cair os preços, equilibrando oferta e demanda. Esta equação tem dois problemas. No caso da agricultura, o tempo de resposta destes investimentos pode ser de alguns meses para produtos de ciclo curto ou até mais de um ano. É preciso esperar a hora certa de plantar e colher e, enquanto isso, os preços ficam altos, os mais pobres ficam sem comer e a fome se espalha. O outro problema é que o pacote tecnológico aplicado na agricultura capitalista no Brasil e no mundo tem altos custos por depender de petróleo, fósforo, potássio, agrotóxicos, maquinaria e sementes de variedades sob controle de umas poucas empresas. Muitos destes produtos são importados, em particular os adubos e agrotóxicos, e o petróleo tem seus preços indexados no mercado internacional e no valor do dólar, ambos em alta contínua.
Em outras palavras, o custo de produção do arroz e do feijão está subindo em função da alta dos insumos usados pelo agronegócio. Este custo coloca um piso nos preços destes alimentos e este piso, por si só, deixaria boa parte dos consumidores mais pobres longe deste prato típico brasileiro e que representa uma base nutricional bastante razoável. Mas há agravantes: os preços de alguns produtos agrícolas no mercado internacional estão superaquecidos devido à demanda de países com capacidade de importação elevada, como a China e os Estados Unidos. Entre eles se encontra a soja e o milho, com preços que atraem todos os produtores brasileiros integrados no mercado internacional, o chamado agronegócio. Arroz e feijão no Brasil não podem competir com a demanda de soja e milho no mercado internacional e isto vem acontecendo há muito tempo. O resultado é que cada vez mais se convertem terras produtivas para estas duas culturas em detrimento de outras, voltadas para o mercado interno. Soja e milho são usados sobretudo para alimentação animal, aqui ou no resto do mundo. Por aqui a ração é usada sobretudo na criação de suínos e aves, que também são destinados, na sua maior parte, à exportação. A área plantada com soja e milho no Brasil já está perto da metade de toda a área de lavouras anuais.
Isto não é culpa de Bolsonaro, um raro caso em que ele não é o responsável por alguma desgraça. Desde que as exportações do agronegócio se tornaram o esteio do balanço de pagamentos do Brasil, por ocasião do Plano Real, esta lógica vem se afirmando e cada vez mais produtores se juntando às poucas cadeias produtivas mais rentáveis e abandonando as outras. Os governos populares tentaram dar maior força para a agricultura familiar, há 20 anos responsável por 70% dos alimentos colocados na mesa dos brasileiros. Programas como o PRONAF, financiaram estes agricultores para que eles produzissem mais alimentos, mas a orientação técnica adotada os levou a assumir os altos custos típicos dos grandes produtores e, com o tempo, eles foram se dando conta de que entrar na cadeia produtiva da soja e do milho era mais rentável e menos arriscado e a produção alimentar foi perdendo espaço.
Vários programas de compras governamentais buscaram fechar o buraco entre os parcos recursos dos mais pobres e os custos da alimentação, entre eles o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar. O problema é que estes programas operaram sempre em uma escala diminuta e não deram conta de manter uma produção alimentar em volume necessário para abastecer os mais pobres, mesmo com subsídios governamentais.
Resta como alternativa a importação de alimentos e sua distribuição subsidiada pelo Estado. É uma alternativa mais cara do que a produção nacional já que os preços de produtos como trigo, arroz e óleos vegetais não pararam de subir desde o início da pandemia e que a taxa de cambio muito negativa para o real também pressiona os custos de importação. Mas esta pode ser a única solução a curto prazo para enfrentar a fome que se espalha por todo o país.
3 – A guerra:
Não, não se trata de uma guerra convencional contra algum vizinho como a Venezuela, erigida como “ameaça à democracia”, por Bolsonaro e pela direitalha brasileira. Os nossos garbosos militares não precisarão se bater nas fronteiras. A guerra em questão é mais ao gosto e às tradições militares dos últimos 75 anos: é uma guerra interna, contra o próprio povo brasileiro.
O terceiro cavaleiro do apocalipse está preparando o seu ginete para juntar-se aos outros dois, abrindo caminho para a morte, o quarto e maior dos cavaleiros. Delírio? Lembremos que Bolsonaro desde sempre desprezou a democracia e defendeu a ditadura, a censura, controle do congresso e judiciário, repressão à oposição, prisões arbitrárias, torturas e assassinatos de detidos políticos. Ele nunca fez segredo de suas posições. Ao chegar ao poder pelas urnas ele pôs sob suspeição o próprio processo eleitoral. Desde a posse não se passou um dia sem que ele tentasse emparedar o Congresso e o Judiciário, em particular o STF. Bolsonaro prepara uma milícia de fanáticos armando-os com equipamento até pouco tempo atrás exclusivo das Forças Armadas. São 300 mil potenciais combatentes, sendo muitos ex-militares e ex-policiais.
Por outro lado, Bolsonaro se esforça diariamente para minar o controle dos governadores sobre as forças policiais de seus Estados. Já existe um movimento bolsonarista nestas forças e uma política de enfrentamento com os governadores que já levou a motins, greves e chantagens com o poder civil.
Finalmente, Bolsonaro deu ainda mais privilégios para o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, sobretudo para os oficiais. Ele não é benquisto pela generalada, muito embora ele seja o produto de uma bem sucedida manobra política dos altos comandos cujo objetivo era voltar ao poder de onde foram alijados em 1985. Os generais acharam que Bolsonaro seria um pau mandado e já se deram conta que não é assim que a banda toca. O suposto boneco de marionete se movimenta por vontade própria e acabou encurralando todos os que tentaram controlá-lo. Convidou 6000 oficiais da ativa e da reserva para cargos no governo federal ou empresas estatais, muito mais do que nos tempos da ditadura militar. Com isso neutralizou muita gente e ligou os faróis da ambição em muitos outros, criando apoios e buscando enquadrar os oficiais generais. Até agora não conseguiu, mas há um permanente ponto de interrogação no raciocínio de todos os observadores e atores desta tragicomédia: a quem obedecerão os oficiais subalternos (de tenentes a coronéis) se houver um confronto entre Bolsonaro e os oficiais generais? Bolsonaro trabalha para desestabilizar a hierarquia militar pois esta seria a única forma de reorganizar as Forças Armadas à sua feição e sob seu controle. Ele sabe, entretanto, que esta operação não é fácil.
Bolsonaro sabe que não tem como chegar ao seu sonho de poder pela via democrática. Apesar de se preocupar com relações no Congresso, apoiando-se no Centrão (do qual ele fez parte em toda a sua vida parlamentar e do qual disse cobras e lagartos nas eleições de 2018), Bolsonaro não vê nesta parceria mais do que uma conveniência ou inconveniência temporária. Ele não pretende se reeleger até porque já percebeu que dificilmente ganharia de Lula em um segundo turno, mas que Moro, Ciro, Mandetta e outros também podem batê-lo e que talvez nem sequer chegue ao segundo turno. Melar o jogo e evitar as eleições é a aposta principal de Bolsonaro. Mas isto não se faz a “seco”, vai ser preciso uma conjuntura apropriada.
É a gestação desta conjuntura apropriada que melhor explica a posição aparentemente de pura insanidade de Bolsonaro frente à pandemia. Ele semeia o caos e espera que ele ocorra para desestabilizar as instituições da República. Ao sabotar todas as medidas de controle da pandemia, inclusive definindo os valores da ajuda emergencial reduzidos a ¼ dos vigentes na primeira onda, Bolsonaro sabe que as pessoas terão que “sair de casa”, em desespero para buscar o que comer e com isso a pandemia vai continuar e se expandir. A fome e a doença vão se agravando e levando parte da população (pelo menos 45 milhões, mas provavelmente perto de 100 milhões de pessoas) a uma situação onde a sobrevivência de cada individuo e de sua família vai depender da caridade ou do saque. Quando esta situação explodir, com supermercados, feiras e armazéns assaltados por massas de desesperados, Bolsonaro tem à mão a solução: Estado de Sítio ou algo do gênero, para levar as Forças Armadas a intervirem em apoio às Polícias Militares, possivelmente já fora do controle de seus governadores. O caos levará os “donos do PIB” e as classes abastadas a uma gritaria pela “ordem” e “respeito à propriedade”, cobrando o uso da força contra os desesperados, e apoiando o voto de plenos poderes pelo Congresso. Se o Congresso não votar o que Bolsonaro pedir chegaremos no clímax de toda a crise pois o candidato a ditador terá que convencer os generais a se moverem para fechar o Senado e a Câmara. Se tal não ocorrer, sempre resta a “hora da verdade” em que Bolsonaro chama a tropa para segui-lo e os generais chamam a tropa para prendê-lo. Quanto a desestabilização das Forças Armadas terá avançado ditará o resultado deste confronto. Se os oficiais subalternos enquadrarem ou prenderem os generais ou se estes se dividirem, acabaremos com blocos armados em confronto e é aí que as polícias militares e os milicianos jogarão um papel auxiliar, mas importante para sustentar o bolsonarismo. O nome disso é guerra civil. Embora desarmada, a sociedade civil dificilmente vai assistir inerme este conflito e teremos uma terceira força em jogo. Ela dificilmente será uma força de combate, mas a ação política de massas já foi capaz de desarticular mais de um exército reacionário aparentemente poderoso. Basta ver a derrota do Xá do Irã em 1979, quando seus exércitos se enfrentaram nas ruas de várias cidades com massas desarmadas, mas dispostas a morrer protestando. As Forças Armadas do Xá dissolveram-se como gelo ao sol e a oficialidade só foi parar para refletir quando chegou a Nova Iorque, Paris ou Londres.
4 – O que fazer?
Este quadro trágico pode ou não se concretizar. Não está escrito nas estrelas o resultado. O que é importante reter é que Bolsonaro aposta neste caos e trabalha para provocá-lo. O que é importante é impedir que consiga levar a sociedade a este impasse. Para isso vai ser preciso batalhar para deter a pandemia e a fome que são as condições necessárias para a ação do bolsonarismo. Neste sentido, o esforço tem que ser em todas as frentes: congresso, judiciário, governos estaduais e municipais, organizações da sociedade civil. Estas últimas têm um papel fundamental na organização do auxílio alimentar para favelas e periferias, com apoio de governos onde isto for possível. Distribuir comida e organizar compras comunitárias deve ser a forma mais avançada de luta enquanto durar a pandemia. Educar para medidas de precaução é outra frente importante, assim como a distribuição de máscaras de qualidade. Lutar por uma ajuda mais ampla em público e maior em valor e pela distribuição de gêneros alimentícios de graça ou subsidiados pelo governo federal é outra frente importante. Mas sobretudo, vai ser necessária uma campanha nacional (que já começou) pelo lockdown nacional de três semanas. Fiquemos todos em casa menos aqueles que puderem contribuir para atuar nas favelas e periferias para distribuir alimentos, água, gás de cozinha, máscaras e, se possível, com alegria e muita criatividade.
Para resumir, enfrentar o problema da fome não será apenas distribuir um auxílio emergencial mais robusto, muito mais do que o liberado por Bolsonaro. Será preciso importar alimentos e isto não vai ser tão fácil dada a política de muitos países de reter a produção nacional para alimentar primeiro suas populações. Mesmo que se consiga importar arroz, feijão, trigo, batata e outros nas quantidades necessárias para dar de comer aos cem milhões que não terão como se sustentar durante os rigorosos lockdowns necessários para conter a propagação do vírus, o governo deverá subsidiar a distribuição de alimentos para adequar os preços aos recursos disponíveis pelos mais pobres. É um ajuste fino entre subsídios e auxílio emergencial.
Para sair do buraco no futuro o governo terá que retomar, aprofundar e corrigir os programas de produção de alimentos dos governos populares:
- Crédito para financiar a agricultura familiar sem burocracias, com três anos de carência e juro zero;
- Adoção da transição agroecológica tanto para economizar nos custos como para garantir sustentabilidade;
- Financiar a assistência técnica e extensão rural agroecológica;
- Apoiar as universidades e escolas técnicas que formam profissionais em ciências agrárias na linha da agroecologia;
- Garantir a compra dos produtos agroecológicos por programas como o PAA e o PNAE, mas bastante mais encorpados;
- Recriar estoques reguladores de produtos alimentares de base para evitar estas oscilações de preços que estamos assistindo;
- Importar os principais produtos de base alimentar – arroz, feijão, batata, trigo, com subsídios para adequar os preços à capacidade de compra dos mais pobres;
- Reter exportações de carnes, milho e de soja para garantir o abastecimento interno;
- Elevar a ajuda emergencial a valores capazes de cobrir os custos da alimentação das famílias que estarão em lockdown por muitas ocasiões antes de dominarmos a pandemia;
- Ampliar o número de assistidos pela ajuda pública para 100 milhões como indicam vários estudos sobre os graus de carência dos diferentes extratos da população brasileira.
É óbvio que o Brasil e seu atrasadíssimo sistema tributário não terá recursos para cobrir nem os gastos já realizados nem os que serão necessários nesta análise. Mas se o Estado é pobre, o país é bastante rico ou pelo menos tem uma pequena minoria muito rica. É esta gente que vai ter que assumir uma postura solidária para com a grande maioria da população, pagando uma taxa emergencial de financiamento da salvação nacional.
Não tenho muita fé na nossa elite endinheirada que prefere levar seu capital para Miami que ajudar a salvar o país. 10% da fortuna dos multimilionários e 20% da fortuna dos bilionários seria o suficiente para cobrir as necessidades mais prementes e, vamos e venhamos, não vão fazer falta no quotidiano dos ricaços. Mas se empresas e pessoas da classe A são capazes de doar por caridade aquilo que não faz nem cócegas no que é necessário, elas urrarão de ódio se o congresso votar esta taxa. Os donos do PIB pedirão a Bolsonaro o Estado de Sítio, o Estado de Defesa, o Estado de Calamidade ou simplesmente uma nova ditadura antes de se conformarem em fazer um “sacrifício” pelo bem do povo e a felicidade geral da nação. Como boa parte do Congresso faz parte do grupo a ser taxado a probabilidade deste voto acontecer é muito pequena e os cavaleiros do apocalipse continuarão sua trajetória de horror: a pandemia sem controle associada com a fome sem limites e com a violência institucional e o caos social. Apenas a mobilização da sociedade poderá constranger os poderes públicos e as forças da economia privada a fazer o que é certo.
Antes de terminar lembro que algumas tradições falam de um quinto cavaleiro que pode se juntar aos outros quatro: a peste, a guerra, a fome e a morte. Este cavaleiro é o Espírito da Omissão. Ele é sempre uma grande ajuda aos outros quatro, por desarmar qualquer reação através da disseminação da indiferença.
Vamos em frente! É o nosso país e o nosso povo que estão em jogo. Depois vamos ver o que fazer com as eleições de 2022. Até lá muita coisa pode acontecer, para o bem e para o mal.
Jean Marc von der Weid, 7/4/2021
Presidente da UNE entre 1969 e 1971
Fundador da ONG AS-PTA: Agricultura Familiar e Agroecologia
Membro do Coletivo Fernando Santa Cruz
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