
Urna eletrônica de contingência do TRE sendo preparada para envio aos locais de votação nas eleições municipais de 2020 (Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil)
por Luis Manuel Fonseca Pires e Pedro Estevam Alves Pinto Serrano
A defesa pela volta do voto impresso não serve para alcançar maior segurança ou agilidade – comprovadamente menores –, mas prepara uma alternativa a questionar o resultado das eleições.
Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força. Este é o slogan do Partido que domina o país Oceânia no universo distópico criado por um dos maiores escritores do século XX, George Orwell. Um Estado que domina pelo ódio, a destruição e a opressão – “O Grande Irmão está de olho em você”. O Ministério da Verdade, onde trabalha o protagonista, Winston Smith, é o órgão do governo que se anuncia responsável por divulgar notícias, educação e entretenimento, mas em realidade sua missão é produzir mentiras – afinal, “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”, outro lema do Partido. Uma diretriz associada ao Ministério da Verdade é o “controle da realidade” por meio da produção de mentiras – diríamos hoje, fakenews. A linguagem que se produz é a do duplipensamento: dois sentidos opostos que se abrigam no mesmo enunciado. O principal lema do Partido, reproduzido no início deste artigo, é bom exemplo.
No dia 13 de maio a urna eletrônica completou 25 anos. A sua estreia foi nas eleições municipais de 1996. Por todos estes anos os seus componentes (software) e equipamentos (hardware) foram aprimorados. Em nenhuma eleição houve mínimo indício de fraude. Mas o ganho não foi apenas com a confiabilidade na coleta e apuração dos votos, o que seria suficiente para reconhecer a sua importância. A agilidade no anúncio do resultado também se destaca. O sistema digital é incomparável ao do voto impresso. Ainda assim, o governo federal iniciou uma campanha de retorno ao sistema do voto impresso: muito mais sujeito a fraudes, lento na apuração dos resultados.
Se o presidente da república vencer a reeleição não discutirá o resultado – seja qual for o modelo adotado. Se perder, dois cenários são possíveis. Se a votação ocorrer em urna eletrônica não haverá muito espaço para questionar a legitimidade da apuração. Um quarto de século de urna eletrônica que se aperfeiçoa em cada ciclo e sem qualquer traço de fraude não permitirá ir muito além de acusações vagas, desconectadas da realidade. Mas se a votação for por voto impresso a derrota permitirá construir narrativas mais plausíveis porque são maiores as brechas de violações.
A lógica é estranha a quem procura coerência. Mas faz sentido a quem produz o caos. A defesa pela volta do voto impresso não serve para alcançar maior segurança ou agilidade – comprovadamente menores –, mas prepara uma alternativa a questionar o resultado das eleições. O Brasil mergulha nos paradoxos do duplipensamento. A guerra não tem trégua. Quase todos os dias um inimigo novo é indicado e perseguido pelo governo: jornalistas, indígenas, a China, a urna. Ideias ou pessoas, vivas ou mortas. Inimigos novos e outros reciclados porque o estado de exceção precisa, é o que importa, de inimigos para se manter – Guerra é paz. O Governo Federal ataca sistematicamente as medidas de restrição de circulação e de prevenção contra a Covid-19, recusou-se diversas vezes em 2020 a comprar vacinas, e assim age em nome da liberdade, mas a sociedade e a economia mantêm-se escravizadas à pandemia – Liberdade é escravidão. O Governo Federal defende obstinadamente a mudança do sistema de votação para o retorno ao voto impresso, muito mais sujeito a fraudes, inegavelmente mais lenta a apuração – Ignorância é força.
Vivemos em “1984” – quem controla o presente controla o passado...
Luis Manuel Fonseca Pires é juiz de Direito no Estado de São Paulo. Professor de Direito Administrativo da PUC-SP. Autor de Estados de exceção. A usurpação da soberania popular, ed. Contracorrente. Vice-líder do grupo de pesquisa Sistema de Justiça e estado de exceção da PUC-SP.
Pedro Estevam Alves Pinto Serrano é advogado. Professor de Direito Constitucional da PUC-SP. Autor de Autoritarismo e golpes na América Latina. Breve ensaio sobre jurisdição e exceção, ed. Alameda. Líder do grupo de pesquisa Sistema de Justiça e estado de exceção da PUC-SP.
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