Imagem: Wu Yi
Por JEAN PIERRE CHAUVIN*
A velha receita dos Estados Unidos para a América Latina.
“Muito se parecem entre si o terrorismo artesanal e o de alto nível tecnológico, o terrorismo dos fundamentalistas religiosos e o dos fundamentalistas de mercado” (Eduardo Galeano).
Quem conhece minimamente a Republiqueta em que sobrevive, apesar do empenho genocida do desgoverno atual, sabe que: (1) desde o final da Segunda Guerra, os EUA ditam o que vai na cartilha dos bancos e governos, como conduta “responsável” para os países da América Latina. (2) Cúmplices dos bancos e latifundiários, os governantes (civis ou militares) agem como capachos do Tio Sam e cobram a “conta” do povo, que, justamente enfurecido, resiste à brutalidade das “reformas” recomendadas pelos primos ricos. (3) Os governantes locais reagem com extrema violência aos protestos do povo, em nome da ordem e da fachada republicana. (4) Enquanto isso, os EUA continuam a monitorar a instabilidade dos países que comandam, felizes da vida por serem recomendados como a terra da liberdade, da democracia e do neoliberalismo.
O assunto não é novo; nem estou a reivindicar originalidade. Eduardo Galeano sempre nos alertou para as alianças escusas entre os países da América dita Latina com seus “conquistadores” europeus e, a partir do século XIX, com os Estados Unidos – “presidente do planeta” (O Teatro do Bem e do Mal, 2008, p. 17). “Em 1968 e 1969, a banca estrangeira avançou com o ímpeto: o First National City Bank, atualmente, conta com nada menos de 110 filiais semeadas em dezessete países da América Latina. O número inclui vários bancos nacionais adquiridos pelo City nos últimos tempos” (As Veias Abertas da América Latina, 2020, p. 296).
Para aqueles que condenarem As Veias Abertas da América Latina por ser um livro muito “antigo” (a primeira edição é de 1970), não se acanhem: há material mais recente sobre as boas-ações do Tio Sam. Os leitores, se os houver, poderiam consultar o capítulo “A Doutrina Monroe e o Pan-Americanismo”, de Bradford Burns, publicado em 2003. Ele revelou que, pelo menos desde 1823, o Brasil já estendia o tapete verde e amarelo para a pisada dos EUA, graças às maquinações do Barão do Rio Branco, sendo a “Doutrina Monroe” uma amostra eloquente disso: “Menos de dois meses depois do Presidente James Monroe recomendar aos europeus, em 3 de dezembro de 1823, que se afastassem dos assuntos internos do Hemisfério Ocidental, o governo brasileiro reconhecia a nova doutrina, e falava em uma aliança ofensiva e defensiva com os Estados Unidos” (A Aliança não Escrita, 2003, p. 185).
Dois anos depois, em Estados Unidos: o novo imperialismo, o escocês Victor Gordon Kiernan mostrou como funciona(va) a política neocolonialista da América-feita-para-os-[norte] americanos, colocada em marcha desde o início do século XX. Em Porto Rico, por exemplo, “a liderança e a política de assimilação dos EUA, com o presente da cidadania americana em 1917” resultava em que “além dos habitantes, o território também estava sendo americanizado. Companhias americanas possuíam a maior parte das plantations de cana-de-açúcar, que atingiam de 6 mil a 8 mil hectares” (Estados Unidos: o novo imperialismo, 2009, p. 281-282).
Dentre as pesquisas desenvolvidas no Brasil, destaco o incontornável estudo de Luiz Alberto Moniz Bandeira, editado em 2008, que descreve minuciosamente os métodos empregados para a derrocada de Salvador Allende em 1973: “A manobra para levar o Chile ao caos econômico, social e político começou em realidade logo após a eleição de Salvador Allende. O fato de ser ele o primeiro marxista eleito presidente da República, através de procedimentos legais, em um regime democrático, propiciou, decerto, o clima para o início de uma corrida bancária, incentivada pela CIA e magnificada pelo próprio ministro da Fazenda e Economia do governo de Eduardo Frei” (Fórmula para o Caos, 2008, p. 163).
Supondo que esses parcos exemplos não sejam capazes de sensibilizar o isentão para além do lixo que recebe pelas redes sociais -, talvez haja interesse em voltarmos os olhos para o Brasil. O historiador Carlos Fico mostrou os vínculos abjetos entre os militares daqui e os xerifes do norte, em obsessão por varrer a “ameaça comunista”, vide a política do Brother Sam, imposta durante o governo de João Goulart: “a avaliação negativa do governo de Goulart amplificou-se com a implantação do regime militar. Ele passou a ser identificado como o principal responsável por ter lançado o país na ditadura […] A identificação de suas atitudes como causas do golpe de 64 seria a base da tese do ‘contragolpe preventivo’, isto é, a suposição de que Goulart pretendia perpetuar-se no poder para além do prazo constitucional” (O Grande Irmão, 2008, p. 73).
Mais recentemente, Evaldo Vieira contou a história da invasão haitiana pelos Estados Unidos, confirmando a máxima de que só se pode ser nacionalista sob a bandeira do Tio Sam. Em “28 de julho [de 1915] desembarcaram no Haiti os primeiros 350 marines, vindos da base de Guantánamo, em Cuba. Sob o comando do almirante William Caperton, foi ordenado que cinco companhias ocupassem a capital haitiana. Em 7 de agosto já controlavam todo o território nacional, com as forças militares e policiais haitianas e seus quartéis, ocupados. O novo secretário de Estado, Robert Lansing, afirmou na ocasião que a ocupação era ‘a única coisa a fazer se pretendemos curar a anarquia e a desordem que prevalecem naquela república’.” (Haiti: dois séculos de história, 2019, p. 94-95).
Fizemos um breve passeio pelo continente; porém, se a questão ainda não estiver suficientemente clara, por obséquio, o leitor repare no que acontece com a Colômbia ao longo dos últimos dias, ainda outra vez. Por quê? Respondo: porque sim. O ciclo é antigo, perverso e bastante conhecido. Evidentemente, o Brasil nunca esteve imune a ele, apesar de se mostrar tão generoso para com os invasores, e hostil para com os daqui. Mas não nos preocupemos: em breve, a turma dos tucanos “moderados” e dos laranjas que “renovam” virá acomodar a situação doméstica, capitulando mais uma vez frente aos interesses dos EUA (e de quem mais quiser um quinhão desta terra de ninguém).
Salvo engano quanto ao prognóstico, os representantes mais escrotos de nossa “elite” (o que quer que isso signifique) repetirão as falácias de costume. Reinstalados em Miami, proclamarão ser patriotas e farão tudo em nome da “pátria-amada”: commodity de todos, menos nossa, Brazil.
*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicações e Artes da USP.
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