terça-feira, 15 de junho de 2021

A economia política da política econômica no Brasil contemporâneo


por Ricardo Carneiro e William Nozaki

O pano de fundo da economia e sociedade brasileira indicam uma configuração de classes e interesses, bem como de estruturação da política institucional e partidária, bastante desfavoráveis à adoção de projetos de desenvolvimento progressistas. Isso impõe desafios de diversas naturezas, o principal deles: como formular um projeto que articule um conjunto de interesses capazes de viabilizar um processo genuíno de transformação produtiva, social e institucional. Confira no novo artigo do Observatório da Economia Contemporânea

Para discutir os obstáculos e limites ao crescimento com inclusão social numa economia periférica e globalizada deve-se partir das seguintes questões essenciais: é possível estabelecer nesse tipo de economia um padrão de política econômica produtivista, que almeje um catch-up com economias desenvolvidas e, distributivista, melhorando a distribuição de renda e riqueza e o perfil do emprego, ambos viabilizados por uma ampliação da intervenção do Estado? Até que ponto, os percalços encontrados por governos populares no Brasil responderam a equívocos de operação, ou a limites estruturais expressos em determinados interesses de classe e coalizões políticas? Para tentar responder essas questões, este texto trata de duas dimensões distintas dessas perguntas: a primeira, relacionada à economia política da política econômica, ou seja, a sua clivagem de classes e interesses, e a segunda, atinente ao quadro político, ou seja, a correlação de forças institucional e partidária no presidencialismo de coalizão.

A aliança de classes

Da perspectiva da economia política, a questão mais geral se refere às relações de classes, ou seja, se é possível, nas condições brasileiras, atrair para um projeto de desenvolvimento do tipo social-democrata, ou melhor social-desenvolvimentista, parcelas das elites ou classes dominantes do país. Esse não é um tema novo na história contemporânea do Brasil. Ao longo das últimas décadas, o apelo a coalizões interclassistas assumiram várias formas; da aliança com a burguesia nacional, à associação com os capitalistas do setor produtivo e/ou industrial para se contrapor aos desígnios hegemônicos do capital internacional e, mais recentemente, do capital financeiro.

Após os percalços do experimento desenvolvimentista, nos governos do PT, cujo objetivo era exatamente atrair fração desses segmentos empresariais, é imperativo indagar até que ponto esses interesses são de fato incorporáveis num padrão alternativo e não estariam contemplados em padrões de acumulação mais patrimoniais e especulativos. Em outras palavras, cabe perguntar se a dimensão nacional e/ou produtiva da acumulação ainda é relevante no atual estágio do capitalismo brasileiro? E, se, na ausência de atores empresariais progressistas em setores econômicos relevantes, o Estado, enfraquecido pelo desmonte do arranjo econômico-institucional que viabilizou o Estado desenvolvimentista e o Estado social é ainda capaz de fazer face aos novos desafios?

Olhando a questão de uma perspectiva mais ampla, o tema a ser considerado é também o do papel das classes médias. Esquematicamente, a sociedade brasileira se organiza em três grandes grupos, cada um deles representando cerca de um terço da sociedade: em um polo, um grupo mais conservador, composto da classe média tradicional e da miríade de empresários e proprietários de todas as categorias e tamanhos; no outro polo, a classe trabalhadora organizada e os movimentos sociais; no meio, uma suposta “nova classe média”, um grupo anfíbio com aspirações de classe média e condições de existência de classe trabalhadora. Suas características são: elevada vulnerabilidade econômica, decorrente da associação entre padrões de consumo diversificados e estrutura ocupacional de baixa qualificação, associados a alinhamentos políticos e ideológicos voláteis.

Desde meados dos anos 1990, os deslocamentos políticos e a alternância de poder sustentados pela formação de maiorias sociais estão associados às movimentações dessa “nova classe média”; para um ou outro polo; motivadas em grande parte por fatores econômicos imediatos. Pragmático, esse grupo adere a um dos grupos polares e sustenta novas coalizões de poder. Os exemplos históricos são expressivos: a adesão aos governos fundados das políticas de liberalização no âmbito da crise do desenvolvimentismo, no início dos anos 1990; o abandono do suporte a esses governos de inspiração liberal e sua adesão a governos progressistas no início dos 2000 e, finalmente, o desembarque crescente dessa coalizão desde 2010 e que fica muito claro a partir de meados de 2013.

Do ponto de vista popular, o projeto dos governos do PT, preservou o apoio dos amplos setores de trabalhadores organizados e não organizados, em razão sobretudo da política social e do bom desempenho do mercado de trabalho. Mas ampliou-se a oposição da classe média tradicional, que não reconheceu os seus interesses nessas políticas – ditas assistencialistas ou distributivistas –, que trazem um componente de mudança social que rejeitam. Por sua vez, a chamada “nova classe média”, beneficiária do crescimento econômico com inclusão social, característico do período Lula – baixa inflação, moeda apreciada, aumento de salários e emprego etc, –, com o seu arrefecimento, desde 2011, abandona crescentemente o projeto.

Há dois traços estruturais no atual estágio da sociedade brasileira indicando que um modelo alternativo de desenvolvimento teria grandes dificuldades. Primeiro, numa sociedade complexa, na qual as classes médias têm um peso decisivo, o grau de arbitragem do Estado, e das suas burocracias, seria menor. Ademais, os interesses imediatos e aspirações dessas classes dificilmente têm sido conciliáveis com os projetos desenvolvimentistas apresentados. O acesso imediato ao consumo parece ser o valor absoluto que move esses grupos sociais e as esperanças abertas pela mobilidade social parecem despertar identidades muito maiores com “os de cima”, onde se pretende chegar, do que com os “de baixo”, de onde se partiu. Assim, o desejo de distinção social retroalimenta a desigualdade econômica.

Segundo, do ponto de vista estritamente econômico, ao contrário do período desenvolvimentista, o Estado não controla diretamente centros de decisões (empresas estatais e bancos públicos) suficientes para mover isolada e decisivamente a economia. Há obstáculos significativos também em instituições como Banco Central, que ganhou uma elevada autonomia reforçando a sua ausência de sintonia com projetos de desenvolvimento. Por outro lado, não haveria hoje um setor econômico/empresarial com identidade suficiente com o projeto para dar-lhe o apoio interclassista necessário. Isso porque os industriais são a pata fraca desses segmentos, seja por terem perdido peso ao longo da internacionalização, seja por estarem eles próprios financeirizados. Apenas as grandes construtoras parecem ser um aliado plausível, por interesses imediatos, ou seja, a sua dependência das obras públicas. O complemento dessas constatações é o de que carecemos também de uma burocracia estatal, ao estilo asiático e sobretudo chinês, capaz de fazer o papel de dirigente do processo de desenvolvimento.

A questão financeira e macroeconômica

Desde os finais dos anos 1980, na esteira da globalização financeira, o Brasil realizou um amplo movimento de integração à economia globalizada por meio de uma abertura crescente da sua conta de capital. Isso foi feito em dois sentidos: tanto do ponto de vista da absorção de vários tipos de capitais quanto da permissão para que residentes se tornassem investidores fora do país. Dada a posição que ocupa na hierarquia monetária e financeira internacional, essa integração financeira levou a que o Brasil perdesse, em grande medida, a autonomia na condução da sua política macroeconômica sujeitando-se às vicissitudes do ciclo de liquidez global engendrado nos países centrais e, em particular, no país emissor da moeda reserva global, os EUA.

A perda de autonomia tem várias implicações, mormente sobre o patamar e volatilidade das taxas de juros e câmbio, com consequências adicionais sobre a gestão da política fiscal. O montante líquido de capitais que entram ou remanescem nas economias periféricas depende exclusivamente da atratividade relativa dos papéis oferecidos. Assim, dado o risco que essas economias encerram vis a vis as economias centrais, o diferencial do retorno (yield) é sempre significativo e às vezes muito elevado. De alguma maneira, os prêmios exigidos dependem das condições domésticas, como a situação fiscal, lato sensu, mas sobretudo, da posição do ciclo de liquidez, ou seja, da política macroeconômica nos países centrais e da aversão ao risco dos agentes relevantes.

Para além da perda de autonomia da política macroeconômica, a abertura financeira com o seu padrão de taxas de juros elevadas e voláteis e taxa de câmbio com períodos contínuos de apreciação, possuem vários impactos na economia e sociedade. De um lado criam dificuldades a política fiscal, como o aumento da dívida pública decorrente do carregamento das reservas ou dos swaps cambiais. Dificultam, ademais, em razão da volatilidade dos preços macroeconômicos, a intermediação financeira elevando os spreads e custo do crédito, além de aumentar substancialmente o risco de financiamento de longo prazo. Ou seja, como ficou claro no ciclo recente, além do sistema bancário privado administrar preços/spreads, na fase expansiva, a sua postura de aversão ao risco nas fases de desaceleração é muito intensa. A pergunta que fica é até que ponto a substituição do sistema privado pelo público pode ser uma solução permanente? É possível negociar uma divisão do trabalho entre bancos públicos e privados varejistas para o crédito de curto prazo e entre o sistema público e o mercado de capitais, para financiar o desenvolvimento?

A combinação entre financeirização da economia global e abertura financeira da economia brasileira criou importantes constrangimentos para a operação desta última. Taxas de juros e câmbio “fora do lugar” constituíram incentivo ao rentismo e formação de grupos de interesse em favor das mesmas. As famílias de alta e média renda passaram a ter nos ativos financeiros e nas altas taxas de juros uma fonte relevante de sua renda, o que associado à sua baixa tributação contribuiu decisivamente para a concentração da renda e da riqueza e ao encolhimento relativo do mercado interno.

No que tange à taxa de câmbio há expressivos interesses na sociedade, que se opõem à desvalorização do real. Além do setor produtivo, com elevado coeficiente importado, ou endividados em moeda estrangeira, os consumidores, em geral, também possuem razões para se opor à desvalorização do real. Nesse caso, além da oposição difusa ante o aumento da inflação, pode-se identificar grupos, sobretudo da classe média – maior consumidora de bens e serviços importados, inclusive viagens internacionais – cujos interesses são mais contrariados.

A questão produtiva e industrial

A compreensão das possíveis razões do não funcionamento das políticas econômicas envolvidas num projeto social desenvolvimentista requer, necessariamente, compreender o contexto estrutural no qual operaram. No caso brasileiro isso significa pôr em destaque adicionalmente as características de um capitalismo crescentemente globalizado também na dimensão produtiva. Vale dizer, requer que se realce a crescente perda dos centros de decisão por parte da economia nacional bem como uma lógica distinta de operação dos agentes econômicos, especialmente das grandes empresas.

Um quarto de século de inserção passiva na economia globalizada promoveu mudanças profundas na estrutura produtiva brasileira, reduzindo a importância da indústria e ampliando o dos segmentos produtores de commodities que atualmente já possuem peso maior do que a primeira. Com isso, observou-se um deslocamento e internacionalização dos centros de decisão do investimento e da importância relativa dos mercados. Ademais, a manutenção por longos períodos de patamares de taxas de juros muito elevados deu origem a uma forma parasitária de financeirização. A busca por uma posição financeira líquida positiva se converteu em componente permanente da estratégia de rentabilidade das empresas reduzindo sua propensão ao investimento produtivo. Como consequência, as políticas econômicas pró crescimento – e.g. a queda nas taxas de juros – não produzem o resultado esperado, por conta de seus efeitos deletérios sobre a rentabilidade.

Para além de um crescente peso das atividades produtoras de commodities, o esgarçamento das cadeias produtivas, e a especialização regressiva da indústria nacional em direção a uma indústria baseada em recursos naturais, resultantes de uma rápida abertura nos anos 1990, combinada à apreciação duradoura da moeda também contribuiu para um padrão distinto de resposta das atividades produtivas, mormente a industrial, à política cambial. Ou seja, a elevação generalizada do coeficiente importado, tanto mais significativo quanto maior o grau de sofisticação tecnológica, tornou a indústria muito dependente das importações, seja de insumos ou de máquinas e equipamentos. De uma perspectiva microeconômica converteu os custos e preços industriais, com destaque para o preço do investimento, muito dependentes da posição da taxa de câmbio. Nessas circunstâncias, a desvalorização cambial tem como efeito de curto prazo tanto uma elevação de custos como o encarecimento dos bens de capital, com efeitos deletérios sobre a rentabilidade e as decisões de investimento.

Isso põe em relevo a composição da lucratividade das empresas no Brasil, muito dependente de receitas não operacionais, sobretudo as oriundas das aplicações financeiras. Traz à luz, também, o efeito contraditório que a taxa de câmbio tem no retorno operacional, para uma indústria largamente importadora de insumos e equipamentos. Põe em destaque, ainda, o efeito das desvalorizações sobre o estoque de dívida em moeda estrangeira das empresas que operam no Brasil, cujo crescimento foi expressivo no passado recente, induzido por um grau de abertura elevado, pelo ciclo de liquidez e longos períodos de apreciação do real.

Para entender as limitações de um modelo de desenvolvimento alternativo, convém destacar, ademais, a incapacidade do Estado em estruturar os grandes projetos de desenvolvimento. No modelo desenvolvimentista clássico, essa tarefa coube primordialmente às empresas públicas cujo peso encolheu sensivelmente nos governos FHC. Os governos do PT ainda tentaram criar algumas dessas empresas, e ampliar o investimento público, lato senso, mas esse esforço foi limitado, dado o patamar do qual se partiu. Ou seja, em qualquer modelo exitoso com características desenvolvimentistas – mesmo naqueles observados durante a globalização, como no chinês – a presença direta e indireta do Estado foi significativa. Portanto, se coloca com ênfase a questão de se ela foi adequada e suficiente, no experimento desenvolvimentista no Brasil recente, e qual a viabilidade de sua ampliação.

Os presidentes do Banco Central, Roberto Campos Neto, da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, o ministro da Economia, Paulo Guedes e o presidente da República, Jair Bolsonaro - (Foto: Antonio Cruz/ Agencia Brasil)

A questão distributiva e social

A melhoria da distribuição de renda, como por exemplo, aquela verificada nos governos do PT, fundava-se tanto nos ganhos salariais quanto na ampliação e direcionamento do gasto público. No que tange aos ganhos salariais, além dos aumentos reais serem expressivos tanto para o salário médio quanto para o salário-mínimo, a maior velocidade deste último indica o encurtamento do leque salarial e a melhoria da distribuição no âmbito da massa salarial. Entre 2003 e 2008, a estrutura de ocupações não muda significativamente, mas a dispersão salarial se reduz de maneira notável, caracterizando uma melhora na distribuição da renda dos assalariados, sem transformação estrutural significativa no perfil das ocupações. Esse mesmo padrão se intensifica entre 2008 e 2013, pois os setores de maior produtividade, como a indústria, têm o seu peso no emprego reduzido ao mesmo tempo em que a dispersão continua caindo, mesmo que a uma velocidade menor.

As indicações são de que a redução das desigualdades por meio do encolhimento do leque salarial esbarrou em limites da própria estrutura produtiva, ou seja, a preservação da sua heterogeneidade, incluindo aqui uma massa significativa de ocupados sem proteção social e em empregos de baixa produtividade. O desafio de incorporar um elevado contingente da força de trabalho, não só a empregos com proteção social, mas também de maior produtividade, é gigantesco. Reduzir a desigualdade apenas pela extensão da proteção social e ampliação dos ganhos salariais, quando os setores que se expandem mais rapidamente são os de menor produtividade, pode levar ao acirramento do conflito distributivo, mormente em períodos de desaceleração do crescimento, como observado após 2010, conduzindo a uma crescente oposição empresarial ao modelo.

Um fator importante, de redução nas desigualdades após a Constituição de 1988, foi o gasto social. Aliás, em países avançados as melhorias na distribuição da renda ocorreram mais pela via do Estado do bem-estar social, com aumento da progressividade na tributação e do gasto, e na ampliação da oferta de bens públicos, e em menor intensidade por mudanças no mercado de trabalho. No caso brasileiro, as transferências, em sentido estrito, e os gastos sociais, em sentido amplo, desempenharam um papel importante na melhoria da distribuição da renda, desde o governo FHC, ampliando-se nos governos do PT. Assim, a questão crucial é a do financiamento de gastos em elevação por uma carga tributária crescente e regressiva. A incidência da carga tributária é tão mais alta quanto menor é a renda. Ou seja, como os ricos pagam proporcionalmente menos impostos, o financiamento dos gastos sociais vem desproporcionalmente das camadas médias e populares. Desse ponto de vista, melhorar a distribuição de renda pela via do aumento da carga tributária encontra limites óbvios além de aguçar o conflito distributivo, pois desenvolve-se em parcelas das camadas médias da população a convicção de que as políticas distributivas se fazem em seu desfavor.

A questão política e institucional

Como se não bastassem os condicionantes econômicos, nacionais e internacionais, há ainda desafios políticos e institucionais que devem ser considerados para a tentativa de mudança no padrão de desenvolvimento econômico brasileiro, sobretudo para a realização das reformas progressistas necessárias para assegurar um novo modelo com sua aprovação no parlamento.

A última legislatura eleita no Congresso Nacional aumentou para 30 o número de partidos com presença na Câmara e para 21 o número de partidos com presença no Senado. Além do aumento da fragmentação partidária, a taxa de renovação foi a mais elevada desde 1994. Segundo o TSE, apenas 49% dos deputados se reelegeram e no Senado apenas 8 dos 32 senadores que tentaram reeleição lograram êxito. Pela primeira vez desde a redemocratização partidos com explícita inclinação conservadora e de direita conquistaram presença sólida na Câmara e influência ampliada no Senado. A atual legislatura tem o maior número da história de deputados que se autodeclaram representantes de grupos reacionários como a chamada bancada BBB, sigla que significa Boi, Bala e Bíblia.

O resultado desse conjunto de fatores é a construção de uma nítida “direitização parlamentar” em âmbito federal. O atual Congresso marca o fim da hegemonia de legendas oriundas da resistência contra a ditadura militar, como PT, PSDB e PMDB, e abriu lugar para a ascensão de agremiações como PSL, DEM, PRB, PR, além de outras siglas menores. Esse fenômeno, em um certo sentido, é o desaguadouro de uma coleção de transformações ocorridas no interior do próprio presidencialismo de coalizão trazendo mais e novas complexidades políticas para um cenário já marcado por profundos condicionantes estruturais de natureza econômica.

Dessa forma o avanço de medidas estruturais – como a reforma tributária, a reforma financeira, a abertura financeira, a reforma produtiva (incluída as questões relacionadas à política industrial e ao setor produtivo estatal) e a reforma da política macroeconômica (incluída as mudanças nas regras fiscais) – não pode ser tratado como resultado apenas de vontade política ou da composição de uma agenda pública, mas será, antes e sobretudo, o vetor resultante de uma correlação de forças política, econômica e social concreta. Nesse sentido é importante notar algumas dificuldades inerentes à própria trajetória de evolução do presidencialismo de coalizão no Brasil.

A ampliação sistemática do número de partidos ao longo do ciclo da Nova República impõe dificuldades crescentes para a consolidação de uma governabilidade estável. Enquanto o governo FHC 1 se iniciou com quatro partidos representados em seu gabinete (PSDB, PMDB, PFL, PTB), no governo Lula 1 esse número dobra para oito partidos (PT, PSB, PDT, PPS, PCdoB, PV, PL, PTB) e atinge o seu ápice no início do governo Dilma 2, com dez partidos compondo a base aliada (PT, PMDB, PSD, PR, PP, PDT, PCdoB, PRB, PTB, PROS).


Fonte: Abranches, Sérgio. Polarização radicalizada e ruptura eleitoral. In: Democracia em risco? São Paulo, Cia das Letras, 2019.>

Em função da ampliação e da dispersão partidária, os cinco maiores partidos da base aliada passaram a representar um percentual cada vez menor de parlamentares, impondo a necessidade de um arco de alianças cada vez mais amplo.


Um dos efeitos colaterais dessa configuração institucional se apresenta no aumento da dificuldade da “capacidade legislativa” do Poder Executivo. Cada novo governo tem mais dificuldades de transformar medidas provisórias, por definição transitórias, em leis permanentes.


Em contrapartida, a “capacidade Executiva” do Poder Legislativo se amplia com a expansão dos valores pagos em emendas parlamentares. Os parlamentares acessam um volume cada vez maior de recursos alocados a partir de critérios ad hoc e fisiológicos, subvertendo a noção de política pública e planejamento.

Fonte: Vianna, Luiz Werneck et. al. Dezessete anos de judicialização da política. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702007000200002

Para além da relação Executivo-Legislativo, do ponto de vista do Judiciário há um intenso processo de judicialização da política. Um número cada vez maior de atores sociais demanda o STF para arbitrar sobre matérias relacionadas à inconstitucionalidade. Mais ainda, há um processo também de politização do Judiciário. Os juízes do STF decidem mais individualmente do que no colegiado, com mais divergências do que consensos.


Esse conjunto de elementos desaguou, sobretudo a partir de 2015, em um cenário favorável para que o Legislativo, em muitas ocasiões contando com a anuência do Judiciário, avançasse na apresentação de um conjunto de “pautas bombas” que concorreram, por exemplo, para inviabilizar o segundo governo Dilma, resultando no impeachment.

As chamadas “pautas bomba” são proposições legislativas de caráter populista, geralmente mobilizadas pela oposição ao governo, que geram impacto nas finanças públicas e comprometem a gestão do Poder Executivo. Entre os anos de 2014 e 2016, essa expressão se tornou frequente na mídia nacional.

Atualmente, e independentemente dos deméritos da agenda ultraliberal de Bolsonaro-Guedes, as dificuldades de seu encaminhamento no Congresso são evidentes, exigindo inclusive a criação de um “orçamento paralelo” disponibilizado de forma secreta a parlamentares, como mecanismo de compra de apoio.

Observações finais

O pano de fundo da economia e sociedade brasileira indicam uma configuração de classes e interesses, bem como de estruturação da política institucional e partidária, bastante desfavoráveis à adoção de projetos de desenvolvimento progressistas. Isso impõe desafios de diversas naturezas, o principal deles: como formular um projeto que articule um conjunto de interesses capazes de viabilizar um processo genuíno de transformação produtiva, social e institucional. Há que se reconhecer todavia que, na atual conjuntura, para além dos óbices estruturais assinalados, a necessidade de constituir uma frente ampla para derrotar o autoritarismo cria dificuldades adicionais para avançar na construção de um novo modelo em razão da diversidade de interesses para além da defesa da democracia, que caracterizam essa coalizão.

Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

William Nozaki é professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

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O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento aprofundado da conjuntura internacional e da economia brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório, economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de diversas instituições, listados a seguir: Alex Wilhans, Alexandre Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio, Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar, Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clelio Campolina, Clemente Ganz Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy, Esther Dweck, Fabio Terra, Fernando Sarti, Giorgio Romano, Guilherme Magacho, Guilherme Mello, Isabela Nogueira de Moraes, Ítalo Pedrosa, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcelo Manzano, Marcelo Miterhof, Marcos Costa Lima, Marta Castilho, Maryse Farhi, Nelson Barbosa, Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Barros, Ricardo Carneiro, Tânia Bacelar e William Nozaki.

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