
Fontes: Rebelião [Foto: Escaramuza]
Jovens e pessoas racializadas, principais vítimas
Imagens do exército e da polícia operando em grande escala nas favelas estão se tornando mais frequentes e virais. O flash do assassinato em massa da líder feminista Marielle Franco, em março de 2018, ainda marca o cotidiano dos movimentos sociais brasileiros.
O Brasil é um dos países mais violentos do continente sul-americano. A América Latina, ao mesmo tempo, é uma das regiões mais violentas do mundo e responde por quase 1 em cada 2 vítimas - na verdade, 42% - dos homicídios em escala global, segundo dados de 2019 das Nações Unidas.
A violência no Brasil, além de ser um fenômeno social, se expressa com certas peculiaridades. Por exemplo, impactam principalmente os jovens negros. Isso é destacado pelo relatório Violência armada, violência policial e comércio de armas, elaborado pelo Instituto Brasileiro Sou da Paz e as ONGs Terre des hommes (Terra dos Homens) da Alemanha e da Suíça, divulgado recentemente.
Segundo pesquisadores, em 2019, o Brasil atingiu uma taxa de 21,6 homicídios por 100 mil habitantes. Embora signifique uma queda em relação aos dados de 2017, que foi um ano de pico, o impacto da violência ainda é muito alto. O estudo, por ora publicado apenas em alemão, analisa essas particularidades, apresenta casos emblemáticos e articula conclusões e recomendações dirigidas tanto ao Estado brasileiro quanto à comunidade internacional, fonte de abastecimento de parte das armas em circulação no país. ( https://www.tdh.de/was-wir-tun/themen-az/polizeigewalt/ )
O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime em seu relatório de julho de 2019, com dados atualizados até o final de 201, indicou que países como Argentina, Uruguai, Peru e Chile ficaram na parte inferior da tabela de percentuais da América do Sul. E ressaltou que o Brasil, entre 1991 e 2017, acumulou um número recorde de 1.200.000 homicídios ( https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/global-study-on-homicide.html ).
Principais alvos da violência
Jovens e negros são as principais vítimas dessa violência. Em 2019, 79% dos homicídios ocorridos correspondem à faixa etária de 15 a 29 anos. Nesse mesmo ano, 74% das vítimas eram pessoas de cor negra ou mestiça. 99% são homens.
A responsabilidade institucional por essa violência também é claramente demonstrada. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que uma em cada dez mortes violentas - exatamente 13% dos casos - foi, em 2019, resultado de intervenção policial. Em alguns estados particularmente problemáticos, como o Rio de Janeiro, chega a 30%. Tendência crescente, sem pausa, de 2013 até o presente.
Mais de 70% dos homicídios ocorreram com armas de fogo. O que leva os responsáveis pelo estudo a sublinhar a importância de se analisar "a dinâmica interna da circulação de armas" no país. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 106 mil armas foram apreendidas pelas diferentes forças policiais em 2019. A maioria delas: revólveres, pistolas e fuzis. 6% deles vêm de vários países europeus.
Um dado fundamental do relatório é o baixo índice de esclarecimento de homicídios no país, que segundo o Instituto Sou da Paz pode representar apenas 11% dos casos em alguns estados. Essa impunidade é alimentada por “discursos políticos populistas que relativizam ou mesmo incentivam o uso desproporcional da força por parte dos agentes do Estado”, enfatiza o estudo divulgado esta semana.
Impunidade, falta de investigação dos fatos e até mesmo ocultação de provas são algumas das preocupações que vários representantes da comunidade internacional têm repetido nos últimos meses.
Em maio, por exemplo, o Escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos expressou particular preocupação com a operação da polícia antinarcóticos na favela do Jacarezinho, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro (Brasil). Em seguida, a ONU denunciou possíveis tentativas das forças de segurança do Rio de Janeiro de impedir a realização de uma investigação independente sobre os fatos.
“Recebemos relatos preocupantes de que, depois do ocorrido, a polícia não tomou as medidas necessárias para preservar as provas na cena do crime, o que poderia dificultar a investigação desta trágica e mortal operação”, disse Rupert Colville, porta-voz do tempo da instituição. A ONU, então, solicitou que fosse realizada uma investigação independente e imparcial sobre este fato, levando em consideração os padrões internacionais.
Pelo menos 25 pessoas, incluindo um policial, perderam a vida nessa operação, a mais sangrenta da história do Rio de Janeiro. Segundo informações oficiais, a operação policial teve como alvo uma quadrilha que recrutava crianças e adolescentes para o tráfico de drogas, roubos, sequestros e assassinatos. A favela é a base do Comando Vermelho, principal grupo de narcotraficantes da cidade.
O escritório da ONU observou que a operação confirma "uma tendência prolongada de uso desnecessário e desproporcional da força em favelas, bairros pobres e marginalizados habitados predominantemente pela população afro-brasileira".
Operação policial na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Foto: Bruno Itan (TdH Suisse)
Expansão do mercado de armas
O governo federal, aproveitando um período de certa instabilidade na regulação do mercado de armas, publicou entre 2019-2020 vinte portarias sobre o assunto. Eles facilitaram um aumento de 65% nas armas registradas, chegando a 1.100.000 unidades. Nesse período, foi significativo o aumento das armas registradas por civis, que passaram de 346 mil para 595 mil. O cadastro de caçadores, colecionadores ou atiradores esportivos também aumentou 58% - de 351 mil para 556 mil. Hoje, um atirador esportivo pode comprar até 60 armas de fogo e 180 mil munições por ano no país sul-americano.
De acordo com o relatório elaborado pelo instituto brasileiro e ONGs europeias, a situação é ainda mais preocupante pelo fato de que essa flexibilidade no registro foi acompanhada por “retrocessos nos mecanismos de fiscalização e controle da circulação de armas e munições e de os mecanismos para enfrentar o crime organizado ”.
Não menos importante no relatório apresentado na primeira semana de junho é a análise do "discurso autoritário" que se intensifica desde a chegada de Jair Bolsonaro ao governo. O atual presidente afirmou em várias ocasiões em sua carreira política e em sua campanha presidencial que criminosos devem ser mortos e relativizou práticas como a tortura, afirma o relatório.
O “Pacote Anti-Crime”, elaborado pelo então Ministro da Justiça e Segurança, Sergio Moro, propôs ampliar a lista de circunstâncias em que os policiais poderiam ser isentos de qualquer pena de morte. Chegou a sugerir a redução pela metade das penas para o uso excessivo de violência policial em circunstâncias de “surpresa ou violência emocional”. A intensa mobilização da sociedade civil e de setores parlamentares contra essa proposta determinou sua rejeição legislativa. No entanto, no Congresso Nacional, iniciativas semelhantes estão em discussão.
Responsabilidade internacional
Em 2019, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública contabilizou mais de 106 mil armas em posse ilegal recuperadas pelas forças de segurança pública, o que representa o menor número dos últimos 3 anos - em 2015 eram 130 mil. O relatório do Sou da Paz e da Terre des hommes destaca “que a presença de armas estrangeiras é relevante, principalmente entre aquelas de maior poder ofensivo, como fuzis e submetralhadoras”.
Das unidades sequestradas cuja origem poderia ser individualizada - pouco mais de um terço do total - as armas originárias da Europa constituem entre 6 e 7%. Os originários dos Estados Unidos representam 5,3%. Da Argentina vem 1,9%.
A Áustria, com 5,1% das armas apreendidas que puderam ser rastreadas, é o maior fornecedor da Europa. 1,7% vem da Turquia e 1,3% da Itália. Embora com percentuais menores, há unidades da Alemanha, Pequena República, Espanha, Bélgica, Montenegro, Rússia, França e Suíça.
O relatório conclui com recomendações claras e exigentes. Lembra aos representantes estrangeiros - governos, empresas e organizações em geral - que a circulação de armas tem impacto direto no número de homicídios e na violência social. O que aumenta a violação do direito à vida, principalmente em setores específicos da população: negros, adolescentes e jovens.
Por isso o Sou da Paz e as ONGs Terre des hommes da Alemanha e da Suíça clamam por um controle maior de tudo que se refere ao comércio internacional de armas envolvendo o Brasil. Incorporar em cada transação uma avaliação minuciosa do risco e dos eventuais impactos negativos que esta atividade ou negócio possa acarretar no respeito dos direitos humanos.
Para matar Marielle Franco, uma líder feminista negra, uma líder LGBT e uma líder da oposição, no Rio de Janeiro em março de 2018, o pistoleiro usou uma submetralhadora alemã Heckler e Koch MP5. O assassinato requer um meio. Os mais usados são armas de fogo. A indústria armamentista européia e norte-americana produz, vende e facilita seu acesso, inclusive em países como o Brasil. Todos somos responsáveis por tudo, concluindo a denúncia - tácita - desse raio-x sobre a violência brasileira.
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