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Fontes: Jacobin América Latina [Imagem: A pobreza avança novamente no Brasil. Créditos: Andre Coelho / Getty Images, retirado da Jacobinlat]
O PIB brasileiro caiu 6,4% em relação a 2014. A última década foi perdida e a tão esperada recuperação econômica é um sonho cada vez mais distante em meio a uma pandemia descontrolada que ocorre paralelamente à ascensão da direita, alimentada pelo neoliberalismo autoritário e seus dogmas .
Sabe-se que o capitalismo no Brasil está passando por uma crise profunda - e prolongada. Seus efeitos são terríveis. Além de choques e fatores conjunturais específicos, os últimos dez anos podem ser inequivocamente definidos como mais uma "década perdida". E mais: os dados indicam que é a pior década em 120 anos. Houve, nesse período, duas fortes recessões históricas. Um durou de 2014 a 2016 e o outro teve início em 2020, ainda sem perspectivas claras de recuperação no curto prazo. A situação piorou devido à pandemia, que hoje está fora de controle.
De 2011 a 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu em média a uma taxa anual de 0,27%. A título de comparação, deve-se considerar que durante a "famosa" década perdida - de 1981 a 1990 - o crescimento anual foi, em média, 1,57%, ou seja, quase 6 vezes maior. Na mesma linha, naquela década perdida, o PIB per capita caiu 0,4%, enquanto no "nosso" - de 2011 a 2020 - a redução foi de 0,56%. Atualmente, o PIB brasileiro (segundo dados de 2020) é 6,4% menor do que em 2014, enquanto o PIB per capita é 10,8% menor. Em suma, somos mais pobres.
O Brasil está cada vez mais especializado como produtor de commodities , ou seja, produtos primários com pouco valor agregado e baixa intensidade em termos de tecnologia e conhecimento. Isso tem consequências óbvias em outros campos da vida nacional. Mudança econômica, mudança social e mudança política estão conectadas e não podem ser pensadas separadamente.
Um país que é desindustrializado
Para se ter uma ideia, a participação da indústria de transformação na economia, que hoje representa 11,3% do PIB (dados de 2020), atingiu seu menor nível na série histórica que se inicia em 1947, quando representava 19,9%, ou seja, , quase o dobro. Em 1985, a participação desse setor chegava a quase 36% do PIB brasileiro. Portanto, a parcela do PIB que a indústria representa é a menor desde o final da década de 1940. No geral, a produção industrial em 2020 é 12,4% menor em relação a 2011.
A participação dos grupos que utilizam média e alta tecnologia em nossas exportações industriais caiu de 43% em 2000 para apenas 32% em 2019, o menor nível desde 1995. Ou seja, o pouco que nossa indústria exporta concentra-se em produtos de baixo custo .complexidade tecnológica e valor agregado.
Consideremos, a título de comparação, o que ocorre em outro setor, a agricultura, onde parece ocorrer uma situação inversa. A participação das commodities nas exportações totais do país dobrou entre 2000 e 2020, com a China - que compra principalmente produtos primários - como primeiro parceiro comercial. Diante da conjuntura global, o Brasil se consolida como um «outro rural», na expressão do sociólogo Zander Navarro. A agricultura é marcada pelo avanço tecnológico, aumento da produtividade, concentração econômica e, conseqüentemente, desemprego massivo e migração do campo para a cidade. De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, apenas 2% dos estabelecimentos rurais se apropriam de 71% do valor bruto total produzido (no censo anterior, a proporção era de 63%). Nas palavras de Navarro:
a velha dupla segmentação entre grandes latifundiários que se dedicam à exportação e, em outro subsetor, médios e pequenos produtores que abastecem o mercado interno, vigente até os anos oitenta, está deixando de existir. É uma transformação ainda inacabada, mas sem volta [...]. Pequenos e médios produtores estão sendo encurralados [...].
É a última mudança da "questão social" do campo para as cidades. O cenário imediatamente anterior, de geração de empregos formais de baixa renda e redução de parte da pobreza extrema no Brasil durante os governos do PT, vem se revertendo desde 2014. A taxa de subutilização da força de trabalho passou de 14,9% em 2014 para 28,7 % em 2020 e o crescimento da miséria está à vista. O crescimento da informalidade também se verifica, com 39 milhões de brasileiros nessa condição em dezembro de 2020.
Neste contexto, em que os mercados financeiros, as instituições financeiras e as elites financeiras passam a ter um peso cada vez mais importante nas políticas económicas e nos seus efeitos, distribuem-se os ganhos e perdas económicas, como é sabido, de forma desigual entre diferentes classes e setores econômicos. De 2010 a 2019, o lucro anual dos quatro maiores bancos do Brasil juntos passou de 38.910 milhões para 81.510 milhões de reais, com um crescimento nominal de 109,4%.
Baixo crescimento, desindustrialização, reprimarização, financeirização e concentração econômica em diversos setores, com aumento do desemprego, precariedade, pobreza e desigualdade. Este é o Brasil que emergiu de nossa recente "década perdida".
O fracasso de programas, previsões e promessas
Em grande medida, a responsabilidade pela situação recai sobre as políticas económicas que dominaram durante o período - tanto de direita como de "esquerda" - e que se basearam sobretudo no dogma da "austeridade" . Essas políticas operaram, de forma sistemática e estrutural, para gerar um resultado oposto ao de sua promessa triunfante: o tão almejado crescimento econômico.
Apesar dos julgamentos anteriores, que não foram totalmente insignificantes, o período fundamental das políticas de austeridade se abriu em 1999 com a adoção do tripé macroeconômico, que se mantém até hoje: metas de inflação, câmbio flutuante e ajuste fiscal. Pouco tempo depois, em 2000, surgiu a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse pacote supostamente "modernizador", somam-se a abertura da economia e as privatizações, a liberalização financeira, o ajuste fiscal e as reformas previdenciárias e trabalhistas que se seguiram.
Por sua vez, aproveitando as margens proporcionadas pelo superciclo das commodities e os efeitos benéficos que teve na economia nacional, além das tímidas medidas de redistribuição de renda, das políticas de valorização do salário mínimo e da oferta de crédito popular, acompanhadas de Frágil recuperação do investimento público, o “desenvolvimentismo” do PT manteve o mesmo padrão. O projeto de consolidação do Brasil como um misto de alta tecnologia de plantio e uma plataforma de avaliação financeira, que garante ganhos de curto prazo para moedas fortes, foi mantida e, em alguns aspectos, até mesmo aprofundada. O mesmo se verifica no caso das políticas públicas implementadas no período, cujos efeitos sociais - embora, a esta altura, pareçam bastante frágeis e transitórios - não podem ser ignorados. No entanto, foram concebidos e implementados à luz desse modelo e de seus imperativos, sob a direção, em suma, da racionalidade financeira . Para citar outro aspecto significativo do roteiro, é preciso considerar que, pelo menos desde 2013, os superávits fiscais vêm sendo produzidos de forma sistemática.
Após reclamações e testes específicos e descoordenados de resistência a esse modelo, o ajuste fiscal agressivo no Brasil alcançou uma vitória definitiva em 2015, momento em que se cristalizou como o programa hegemônico das elites econômicas e políticas brasileiras. Para além da crescente articulação do poder de investimento e intervenção do BNDES e de empresas de economia mista como a Petrobras, o surgimento, num novo e mais sombrio contexto da política do país, consolidou-se em 2017 com a inclusão na constituição do governo federal do " Novo Regime Fiscal ”, cujas medidas incluem o draconiano e sufocante“ teto de gastos ”por um período de 20 anos. É uma medida sem paralelo no mundo que, sob o risco de inviabilizar o funcionamento material do Estado, Estimula a destruição de suas capacidades de intervenção econômica e social no dia a dia. As declarações escandalosas e desqualificadas do atual ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, bela flor e representante espiritual de parte significativa da citada elite, servem como ilustração didática desse ponto.
É verdade que a crise pandêmica de 2020 impôs um crescimento significativo dos gastos públicos, especialmente com as limitadas - embora relativamente relevantes - ajudas emergenciais concedidas pelo Estado, ao contrário dos desígnios do governo federal. Isso reabriu, em nosso território, a discussão de questões relacionadas à política econômica, gastos e estímulos do Estado e emissão monetária. Tudo isso está expresso nas recentes polêmicas entre economistas ortodoxos e heterodoxos, em que se destacam as discussões em torno da Teoria Monetária Moderna (MMT), dentro e fora do Brasil. Enfim, a frente ampla acima, a que me referi em outras ocasiões, agrupada em torno da austeridade, mantém-se firme na defesa do aprofundamento do programa no cenário pós-pandêmico. Na verdade, buscam redobrar a aposta: autonomia do Banco Central, PEC (Proposta de Emenda à Constituição) Calamidade, PEC Emergencial, reformas tributárias e administrativas e novas privatizações mais agressivas.
Em todo caso, é preciso dizer: pintadas de vermelho ou azul, verde e amarelo, a implantação, manutenção e intensificação contínua, ao longo deste período, dessas duras medidas de ajuste fiscal no Brasil revelou-se, pelos dados que apresentamos, insignificantes resultados em relação às metas propostas: um país estagnado e - o que contradiz ainda mais flagrantemente o discurso ortodoxo - uma dívida bruta que não para de crescer (de 52,29% do PIB em janeiro de 2011, atingiu quase 90% em março de 2021 ).
A nova era do capitalismo brasileiro e os desafios da política
Diante desse cenário nacional catastrófico, agravado politicamente pelo governo de extrema direita, o campo progressista experimentou diversas propostas para superar a estagnação e os efeitos que ela tem nas maiorias sociais e nas minorias políticas. A política econômica de austeridade é a principal culpada pela depressão que vivemos (que em certa medida, como vimos, é correta), e a partir desse diagnóstico tomam-se diferentes propostas desenvolvimentistas de "retorno do Estado". para cima .
No entanto, para compreender a viabilidade destas propostas é necessário analisar melhor o diagnóstico que, no caso referido, tende a subestimar ou simplesmente não considerar as causas e consequências sociopolíticas deste contexto económico. Quem erra na análise, erra na ação. Portanto, precisamos equilibrar melhor - isso só é mencionado de passagem, dados os objetivos e formato deste artigo - os limites dessa crítica em benefício de uma "nova economia" pós-pandêmica.
Em primeiro lugar, porque nossos colegas desenvolvimentistas ( hard ou soft ) tendem a dar pouca atenção aos problemas estruturais da estagnação brasileira: a inserção subordinada do país na divisão internacional do trabalho e da produção, ou seja, a dependência da produção e da produção. exportação de commodities de acordo com o capricho da demanda internacional, principalmente a China; falta crônica de investimento público e privado; produtividade estagnada e uma força de trabalho pouco qualificada que - aqui novamente, política! - é até certo ponto funcional para a reprodução da estrutura econômica e social que definimos.
Em segundo lugar, e talvez mais significativo, porque não consideram a dimensão social e política - de classe do Estado ou suas funções estruturais no capitalismo. Isso é palpável principalmente na situação brasileira recente, em que o dogma da austeridade continua sendo um poderoso instrumento ideológico no avanço da ofensiva política de certos setores e frações de classe. É o que chamei de "frente ampla" - que reúne bolsonaristas e não bolonarianos - e se organiza em torno do consenso básico sobre o programa econômico-econômico, com o objetivo de consolidar o modelo regressivo a que nos referimos e de que eles são uma parte diretamente interessada.
Na encruzilhada entre a economia, a política e a sociedade, este é o paradoxo que nos confronta mais uma “década perdida”: causa e consequência destas transformações, como já disse alhures , tudo parece indicar que as elites políticas e económicas deste país optaram por administrar pela força, sem muito espaço para novos testes de pacto social, uma sociedade em crise permanente, e compartilhar os “lucrativos” benefícios da estagnação, recessão econômica e miséria em uma “nova era” do capitalismo brasileiro.
Diante dessa situação, a questão fundamental é: quais são as classes, atores e setores sociais que podem servir de sustentação política para o tão almejado “retorno do Estado” em um Brasil pós-pandêmico? Pois bem, nossos importantes e necessários planos de ação econômica de resistência pouco farão para reverter esse quadro se não forem acompanhados e apoiados por uma (nova) campanha concreta de (re) organização das forças populares. Uma campanha que, pelas evidências, exige uma reflexão honesta e criativa sobre a crise generalizada da esquerda e suas formas de organização no Brasil e no mundo contemporâneo.
Este artigo é uma versão editada e reduzida do original, publicado no site da Fundação Lauro Campos / Marielle Franco
Tradução: Valentín Huarte, para Jacobinlat.
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