
Bolsonaro e o governador do RS, Eduardo Leite (PSDB) - Foto: Foto: Alan Santos/Presidência da República
Por Jean Wyllys*
A coragem de sair do armário - sobretudo quando se é um tipo que faz “straight acting” e é rico - é nada diante da coragem maior de ser solidário com os mais fracos de sua comunidade, e de usar seus privilégios para defendê-los
Em recente debate com a historiadora Lilia Schwarcz, respondendo a uma de suas perguntas, eu retornei a uma questão já tratada em meus dois livros mais recentes, “Tempo bom, tempo ruim” (2015) e “O que será” (2019): a relação profunda entre a subjetividade de LGBTQs e a homolesbotransfobia. Ou seja, desde a mais tenra infância, quando iniciamos e expressamos nossas primeiras identificações com as representações dos papéis de gênero atribuídos aos sexos biológicos, nós gays, lésbicas e trans somos submetidos a diferentes expressões da homofobia e/ou transfobia, começando pela sua expressão linguística: o xingamento, o insulto, a injúria: “viado, tome jeito de homem”, “sapatão, se comporte como mulher”.
Desse modo, a subjetividade de LGBTQs é inseparável dessa violência que a estrutura e lhe deixa com profundas feridas e traumas mais ou menos inconscientes. As mais graves dessas feridas são a vergonha e o ódio de si, e, por conseguinte, a vergonha e ódio daqueles que são como você.
Como toda psique quer sobreviver, gays, lésbicas e pessoas trans recorrem primeiro inconscientemente e, depois, conscientemente a diferentes recursos para se protegerem dessa violência que não cessa e que opera em dois sentidos: de fora para dentro e de dentro para fora. O mais comum desses recursos é o armário.
Na conversa com Schwarcz, eu citei o brilhante livro de Eve Kosofsky Sedgwick, “Epistemologia do armário”, em que a feminista diz que mesmo o mais orgulhoso e ativista de nós LGBTQs vai estar, até o fim de sua vida, marcado pela experiência de um dia ter estado no armário.
Outro recurso de sobrevivência é o enquadramento nas normas da sociedade heterossexista, incluindo aí o “straight acting” ou a imitação dos heteros, sendo a heterossexualidade, nessa economia psíquica, tomada como um modelo desejável inclusive em termos de libido sexual (daí haver tanto gay no Grindr querendo gays que “não sejam afeminados” ou “sejam machos). Os que conseguem se metamorfosear dessa forma; os que conseguem apagar ou esconder bem os traços identificáveis de sua homossexualidade – sua afeminação (no caso dos gays) ou masculinização (no caso das lésbicas) – quase sempre têm um comportamento elitista e discriminatório em relação aos que não conseguem esse feito e aos que não desejam fazê-lo. Buscam se distinguir destes; tratam-nos como inferiores, e, claro, são recompensados pela sociedade heterossexista com elogios e “aceitação”: “Você é gay, mas nem parece, parabéns!”; “Nossa, você é tão feminina, jamais diria que você era lésbica!”. Elogios quase sempre acompanhados do desprezo às “bichas afeminadas” e “sapatões masculinizadas”.
Essa expressão da homofobia quase sempre converte os gays e lésbicas premiados com a “aceitação” nos piores inimigos da comunidade à qual inevitavelmente pertencem apesar de todo “straight acting”. São os tipos que perpetram os insultos mais cruéis contra gays assumidos e travestis e os que, na política, tornam-se inimigos do movimento LGBTQ pelo direito à diferença e à emancipação da normativa heterossexista. Muitos adquirem um defeito de caráter e são capazes de viver às escondidas ou na “esfera privada” seus prazeres homossexuais, enquanto publicamente atacam de maneira vil gays, lésbicas e pessoas trans assumidas e organizadas que reivindicam a visibilidade.
Podemos chamar a homofobia dos heterossexuais que aplaudem esse tipo de gay e lésbica de “homofobia liberal”, típica da direita e da extrema direita e seus partidos.
Levando-se em conta que LGBTs também têm identidade de classe e cultural, os gays e lésbicas são mais “aceitos” ou tolerados pela sociedade heterossexista quando mais têm dinheiro ou status social. Por isso mesmo, LGBTs que se enquadram às normas comportamentais e estéticas dessa sociedade e/ou têm dinheiro quase sempre estão se lixando para o coletivo e para movimentos políticos da comunidade à qual pertencem inevitavelmente. São quase sempre de direita, mesmo que assim não se identifiquem. Pensam como indivíduos egoístas e não como um coletivo solidário.
Por isso, o movimento LGBT é feito historicamente pelas pessoas de esquerda, solidárias e preocupadas com o coletivo, pelos excluídos: as trans, as travestis, os gays afeminados, as bichas pobres, as sapatões caminhoneiras, amiúde mais ilustrados e com mais repertório cultural: são estes que quase sempre conquistam os direitos e a emancipação depois usufruídos por aqueles na forma de nicho de mercado.
Portanto, sair do armário ou permanecer nele é um dilema de qualquer LGBTQ, uma vez que nossas subjetividades estão assentadas nele, nós queiramos ou não. A coragem de sair do armário – sobretudo quando se é um tipo que faz “straight acting” e é rico – é nada diante da coragem maior de ser solidário com os mais fracos de sua comunidade, e de usar seus privilégios para defendê-los. Se, em vez disto, o tipo se junta aos algozes das pessoas mais vulneráveis de sua comunidade para obter lucros políticos e financeiros individuais, então ainda menos valor tem essa coragem de sair do armário.
Ver jornalistas da imprensa comercial, políticos de direita e LGBTs aspirantes à normalização heterossexista e desejosos de suas representações, ver essas pessoas elogiarem a coragem pequena de alguém incapaz da grande coragem só me faz concluir que ainda temos muito caminho pela frente na batalha contra os múltiplos disfarces da homofobia e do neoliberalismo.
*Jean Wyllys é jornalista, escritor, ativista LGBTQ e doutorando em Ciência Política na Universidade de Barcelona
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