quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Entrevista com Lilia Schwarcz, historiadora e antropóloga brasileira - "Bolsonaro não é um conservador, ele é um político retrógrado"

Fontes: elDiario.es [Imagem: Lilia Schwarcz. Créditos: página oficial, retirada de elDiario.es]

Historiadora e antropóloga, autora de inúmeros livros sobre a história do Brasil, Schwarcz analisa os atos de Jair Bolsonaro no Dia da Independência e o que o uso político dessa data significa para aquele país.

“Nosso presente está cheio de passado”, destaca a historiadora e antropóloga brasileira Lilia Schwarcz. Na terça-feira passada, o Presidente Jair Bolsonaro demonstrou nas ruas o seu poder político durante as comemorações do 199º aniversário da Independência do domínio português, no meio de ataques à Justiça e à imprensa.

Schwarcz, professor da Universidade de São Paulo e da Universidade de Princeton, analisa esse fenômeno a partir de uma perspectiva histórica. Entre as dezenas de livros que escreveu como 'Brasil: uma biografia', publicado em parceria com Heloisa Starling em 2015, ele afirma que não houve caráter político semelhante ao de Bolsonaro nos últimos 500 anos de história.

Ayelén Oliva.- A independência do Brasil de Portugal foi muito diferente dos demais países latino-americanos. Qual você acha que é a leitura predominante no Brasil nesta data?

Lilia Schwarcz.- Uma lenda de ouro foi criada em torno da Independência do Brasil. Uma visão que sustenta que o país tinha um destino de se transformar em uma monarquia cercada de repúblicas. A Independência do Brasil foi muito conservadora. A principal preocupação das elites era evitar a fragmentação do país e manter um sistema escravista. Aquela ideia de Independência em que D. Pedro I é retratado quase como um militar, foi uma construção tardia a partir de uma tela de Pedro Américo. Essa imagem foi muito utilizada no aniversário de 1972, em plena ditadura militar. Desde então, os militares assumiram aquela versão demasiado militar e associada à ideia da monarquia da nossa Independência.

Ayelén Oliva.- E como isso você descreve se conecta com o que vimos na terça-feira passada?

Lilia Schwarcz.- O que vimos no último dia 7 de setembro foi uma demonstração de como os militares podem manipular a Independência, mais uma vez, e a forma como Jair Bolsonaro aproveita esses momentos para instar as pessoas a participarem de atos profundamente antidemocráticos, machistas e violentos.

Ayelén Oliva.- Em 2022, o Brasil fará seu bicentenário. O que você espera dessa data?

Lilia Schwarcz.- Nós, brasileiros, temos que nos perguntar que bicentenário da Independência queremos ter. Se quisermos nos associar à imagem de uma parada militar ou à ideia de outro tipo de país.

Ayelén Oliva.- Como seria?

Precisamos ter uma visão mais ampla, plural e generosa da Independência. Na história do Brasil temos uma história oficial muito colonial, europeia e masculina. Temos que entender isso como um processo mais diversificado de Independência, entendendo que é um país muito grande. Mas também em outros protagonistas. Protagonistas negros, mulheres, gente totalmente invisível de mulheres como o caso de María Leopoldina a María Felipa de Oliveira, foram ambas grandes heroínas da Independência.

Ayelén Oliva.- Bolsonaro associou a ideia de Independência à ideia de liberdade. O que ele pensa sobre isso?

Lilia Schwarcz.- A presidente aproveitou a ideia de liberdade associada à liberdade de expressão e manifestação. A agenda bolonarista vem sequestrando sistematicamente os símbolos do país, como a bandeira ou o hino. Ninguém pode mais usar as cores verde e amarelo sem parecer um bolsonarista. Mas também sequestrou conceitos como liberdade de expressão. Para Bolsonaro, atacar outras instituições como o Supremo Tribunal Federal, inventar a história contra o voto eletrônico, contar notícias falsas é "liberdade de expressão". Não acho que isso seja liberdade de expressão. Bolsonaro usou o Dia da Independência para incentivar seus seguidores, que o chamam de "mito", por uma nova libertação. Libertação entendida como sua autonomia de, por exemplo, outros poderes do Estado.

Ayelén Oliva.- No discurso de terça-feira, Bolsonaro se referiu a seus seguidores como "patriotas". Que significado você acha que essa palavra tem para o presidente?

Lilia Schwarcz.- Não considero que Jair Bolsonaro seja um político conservador, acredito que Bolsonaro seja um político retrógrado. Um político conservador, que respeita a Constituição, é bom para uma democracia. O problema é quando o que se busca é refazer nossos direitos. Ele não admite direitos LGTBI, não admite religiões de base africana, não admite direitos das mulheres. Esse mesmo projeto retrógrado é o que ele quer para o país. O país que ele imagina é formado por homens, por evangélicos ou cristãos e supostamente heteronormativo. Essa é a pátria de Jair Bolsonaro. É um modelo muito retrógrado.

Ayelén Oliva.- Em um de seus últimos livros, o senhor argumenta que no Brasil existe uma versão amenizada da identidade brasileira que deixa muitas outras coisas de fora, como a questão do racismo. Quanto dessa outra parte da história silenciada do Brasil existe no tipo de liderança que o Bolsonaro representa hoje?

Lilia Schwarcz.- Começo com duas suposições. A primeira é que nosso presente está repleto de passado. A segunda é que, para quem viu com grande horror a eleição de Bolsonaro em 2018, digo a vocês que os brasileiros sempre foram autoritários. Não é uma novidade. Assim, ele recupera uma parte da nossa história que foi silenciada, até mesmo por este Governo, como a questão da escravidão, o racismo sistêmico que existe no país e a ditadura militar. O brasileiro não gosta de falar em conserto, as políticas de conserto nos custam muito.

Ayelén Oliva.- Se você tivesse que comparar o Bolsonaro com outro personagem da história do Brasil, qual seria?

Lilia Schwarcz.- Nenhum! É incomparável. Acho que é uma crise única em nossa história. Já tivemos presidentes extremistas, mas não há comparação. Bolsonaro só pensa em eternizar-se no poder.

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