terça-feira, 2 de novembro de 2021

Bolsonaro contra as cordas

Presidente brasileiro Jair Bolsonaro. (Andressa Anholete / Getty Images)

HUGO ALBUQUERQUE
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A recusa do presidente brasileiro de extrema direita em agir sobre a COVID-19 condenou o país a um número de mortos de 600.000. Nesta semana, o Senado brasileiro votou por colocá-lo em julgamento, com o qual ele deverá finalmente ser responsabilizado por seus atos assassinos.

Nesta quarta-feira, o Senado brasileiro decidiu que Jair Bolsonaro deve enfrentar processos criminais por sua gestão desastrosa da pandemia COVID-19. Por sete votos a quatro, a comissão do Senado que investigava as ações do presidente de extrema direita aprovou um relatório severamente crítico sobre suas decisões, embora uma versão anterior do texto que o acusava de "genocídio" tenha sido retirada. Os quatro senadores que votaram contra o relatório eram todos aliados próximos do presidente.

No entanto, embora os direitistas da comissão tenham tentado amenizar as críticas a Bolsonaro, o relatório final concluiu que seus ministros, autoridades governamentais e até mesmo algumas empresas foram responsáveis ​​por políticas que causaram centenas de milhares de mortes adicionais. Esse equilíbrio não é surpreendente, dada a incapacidade de Bolsonaro de tomar medidas preventivas e sua insistência em defender (e investir fundos públicos em) remédios charlatães ineficazes. Foi agravado por atrasos desnecessários na compra de vacinas, produto tanto da negação do presidente quanto da corrupção de funcionários do governo no trato com laboratórios.

No governo de Bolsonaro, o Brasil se tornou nos últimos meses o sétimo pior país do mundo em taxas de mortalidade por COVID-19. O total já se aproxima de 600 mil, e mais da metade dessas mortes ocorrerá em 2021, apesar da disponibilidade de vacinas. Entre os estados com as maiores taxas de mortalidade per capita do mundo, o Brasil é o único país de proporções continentais.

Agora os brasileiros querem ser responsabilizados pelo desastre. No entanto, outro aliado do Bolsonaro - Augusto Aras, procurador-geral do Brasil - decidirá o que fazer com o relatório e se levará alguma acusação ao Supremo Tribunal Federal. Mas mesmo que ele ou a justiça brasileira descuidem, o Tribunal Penal Internacional poderá julgar o caso, já que ali também foi apresentado o relatório do Bolsonaro. Aras também terá que decidir se abre uma investigação nas redes sociais do presidente, uma perspectiva que já gerou pânico no campo de Bolsonaro.

A decisão de seguir em frente com as acusações é uma dura derrota para o Bolsonaro, que ocorre pouco menos de um ano antes das eleições presidenciais de outubro de 2022. Ele enfrenta múltiplas crises, incluindo sua própria baixa popularidade, a recuperação das forças do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e um cenário econômico catastrófico marcado pela inflação e até aumento da fome.

Nada de novo sob o sol

Nada disso era inevitável. Embora o Brasil seja uma economia emergente, seu sistema público de saúde gratuito e universal tem sido elogiado internacionalmente. Na verdade, sob a liderança de Lula, ele teve a capacidade de imunizar mais de 80 milhões de pessoas contra o H1N1 em apenas três meses, o que o tornou um líder mundial. Depois que a comissão do Senado pressionou o governo e parou de boicotar o sistema de vacinação, o Brasil foi capaz de vacinar rapidamente milhões de pessoas, fazendo com que as taxas alarmantes de infecção e morte caíssem.

Incapaz de levar o crédito por essa melhoria na situação do Brasil, Bolsonaro está ficando mais fraco e, pela primeira vez, há apoio público da maioria para sua remoção. Enquanto isso, o ex-presidente Lula, libertado da prisão e com seus direitos políticos restaurados, lidera as pesquisas para a corrida presidencial marcada para o próximo outono. Com o reaparecimento de Lula, Bolsonaro intensificou táticas voltadas para intimidar a oposição, chegando a participar de grandes caravanas que a mídia brasileira comparou aos desfiles de Benito Mussolini por Roma.

Com a intensificação do confronto entre Bolsonaro e seu rival de esquerda, no dia 7 de setembro, o presidente tentou dar uma demonstração de força no aniversário da independência do Brasil. No entanto, a manobra terminou em fracasso, e as cenas de Bolsonaro olhando desanimado de um helicóptero para a multidão desastrosa certamente entrarão nos livros de história.

Mas também houve uma contra-ofensiva por líderes "normais" de centro-direita, que declaram sua oposição a Bolsonaro, mas aprovam sua principal agenda econômica e ainda o mantêm no poder hoje. O ex-presidente Michel Temer, que chegou ao poder após participar do golpe parlamentar de 2016 contra Dilma Rousseff, visitou Bolsonaro exigindo a retirada de sua retórica inflamada, e o presidente assinou uma capitulação.

Nesse caso, as cartas estavam claramente expostas. A oligarquia dominante do Brasil não quer uma ditadura comandada por Bolsonaro, mas também não quer derrubá-lo se isso significar fortalecer a esquerda e reverter as medidas radicais de austeridade adotadas no país nos últimos anos. No entanto, com o relatório do Senado sobre o manejo incorreto da pandemia, mesmo essas manobras da elite podem não ser suficientes para manter o status quo.

Cruzada antivacinas de Bolsonaro

No ano passado, quando os laboratórios estavam ansiosos para vender grandes lotes de vacinas para o Brasil, a resposta de Bolsonaro foi emitir declarações descartando a necessidade das picadas. Conforme evidenciado pelos primeiros depoimentos à comissão de inquérito do Senado, o governo brasileiro praticamente ignorou 53 emails em que a farmacêutica Pfizer oferecia ao Brasil vacinas pela metade do preço. En cambio, el gobierno de Bolsonaro se puso del lado de la administración de Donald Trump para bloquear cualquier ruptura de las patentes de vacunas, a pesar de que tal medida habría facilitado la producción masiva y de bajo costo de vacunas en Brasil y en todo el Terceiro Mundo.

A aliança entre Bolsonaro e Trump não parou por aí. O governo Bolsonaro, como o de Trump, também promoveu o uso da hidroxicloroquina, mesmo recebendo uma doação dos Estados Unidos com a qual se pretendia que os militares brasileiros produzissem maciçamente o remédio curandero. Isso foi adiante apesar das evidências esmagadoras de que a droga é ineficaz no combate ao COVID-19.

Pior ainda, de acordo com o relatório anual do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA para 2020, o governo Trump conseguiu persuadir o Brasil a não comprar vacinas russas:

Combatiendo las influencias malignas en las Américas: La OGA utilizó las relaciones diplomáticas en la región de las Américas para mitigar los esfuerzos de los estados, incluidos Cuba, Venezuela y Rusia, que están trabajando para aumentar su influencia en la región en detrimento de la seguridad Dos Estados Unidos. A OGA coordenou-se com outras agências governamentais dos Estados Unidos para fortalecer os laços diplomáticos e oferecer assistência técnica e humanitária para impedir os países da região de aceitarem ajuda desses Estados desonestos. Os exemplos incluem o uso do escritório do Adido de Saúde da OGA para persuadir o Brasil a rejeitar a vacina russa COVID-19 e a oferta de assistência técnica do CDC em vez de o Panamá aceitar uma oferta de médicos cubanos.

Por enquanto, a equivalente brasileira do FDA, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mantém a proibição da vacina russa Sputnik V, embora ela tenha comprovada sua eficácia e seja usada na Argentina, no México e em toda a América Latina. A vacina chinesa CoronaVac foi finalmente aprovada, mas apenas graças à intensa pressão de João Doria Jr, o conservador governador de São Paulo. Mesmo com essa aprovação, a produção foi prejudicada pela escassez de vários materiais importados da China.

Altos funcionários do governo Bolsonaro, incluindo o próprio presidente, continuam com ataques xenófobos contra a China e o povo chinês, sabotando a colaboração com Pequim. Isso é especialmente imprudente, visto que a única outra vacina produzida no Brasil, a AstraZeneca, também depende de importações chinesas. As palhaçadas de Bolsonaro renderam-lhe pelo menos um novo endosso de Donald Trump, no mesmo dia em que o Senado votou para avançar com as acusações.

A comissão do Senado denunciou ainda que membros do alto escalão do governo fraudaram o dinheiro dos acordos de vacina com uma empresa indiana, enquanto atrasavam a compra de vacinas de outros partidos. Na verdade, apesar de sua retórica anti-vacina explícita, parece que os funcionários do governo estavam principalmente tentando aumentar o preço dos subornos que tinham de ser pagos antes de lançar um plano nacional de vacinação.

Encurralado, mas ainda na luta

O péssimo histórico de Bolsonaro não é apenas uma questão de política pública ruim. É o resultado de decisões deliberadas, negligência e corrupção, que já mataram milhares de pessoas, algumas delas simplesmente enganadas pelos discursos oficiais ou mortas por falta de vacinas. Em uma de suas declarações públicas mais recentes, Bolsonaro chegou a dizer que as vacinas COVID-19 causam AIDS.

No entanto, o processo de vacinação avançou hoje, reduzindo as taxas de mortalidade e encontrando uma forte resposta dos brasileiros que desejam as vacinas. Graças aos esforços de seu sistema de saúde público universal e gratuito - um pedaço de socialismo que o movimento pró-democracia conseguiu criar por meio da constituição do país de 1988 - a pandemia está finalmente diminuindo. O Brasil mostrou mais uma vez que é maior que o Bolsonaro.

Mas é importante notar também que, além dos laços pessoais, Bolsonaro conseguiu chegar aqui porque sua agenda realmente se adaptou aos interesses econômicos de grande parte da elite brasileira. Eles não foram afetados por uma pandemia cujo número de mortos é em si um mapa das pronunciadas desigualdades do país. Enquanto os brasileiros ricos estavam seguros em suas mansões, fazendas e vilas na praia - ou mesmo fora do país - durante a pandemia, e a classe média alta trabalhava de casa, os pobres e a classe trabalhadora eram forçados a continuar trabalhando pessoalmente.

Mas quando a pandemia saiu do controle em 2021, tornou-se um problema para a elite brasileira e iniciativas como a comissão do Senado se tornaram realidade. Para isso, era preciso que o COVID-19 atingisse os setores mais ricos da sociedade, após sua disseminação pela classe trabalhadora já ter gerado um índice de quatro mil mortes por dia neste mês de abril. Além da pressão do Senado sobre o Bolsonaro, os elementos socialistas democráticos que ainda existem no sistema brasileiro agiram com rapidez, provocando o colapso de mortes e casos.

Recentemente, em gravações de áudio vazadas pelo site de notícias Brasil 247, André Esteves, um dos mais poderosos banqueiros brasileiros, admite que Bolsonaro seria o favorito da elite se ao menos conseguisse calar a boca. Esteves defendeu as políticas de austeridade assassinas do presidente, a deposição de Dilma Rousseff em 2016 e até o golpe militar de 1964.

Os comentários de Esteves foram a prova do que as elites econômicas brasileiras pensam, mas não gostam de dizer em público. É disso que se trata também a disputa de 2022 entre Lula e Bolsonaro. Apesar da liderança de Lula nas pesquisas, da crescente insatisfação com o Bolsonaro, e do desastre econômico que hoje produz crescente fome e desigualdade social no Brasil, a oligarquia que, no mínimo, tolerou um governo de extrema direita, lutará pela manutenção de seu privilégios. Bolsonaro e seus aliados são criminosos, mas certamente servem a seus interesses de classe. 

HUGO ALBUQUERQUE

Editor de Jacobin Brasil e Autonomia Literária, professor de Direito da PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

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