domingo, 7 de novembro de 2021

Princípios elementares da propaganda de guerra

Um livro de Anne Morelli
[*]

Élucid

Anne Morelli retoma, em dez “Princípios”, os grandes ensinamentos intemporais do pacifista Arthur Ponsonby (1871-1946). Estes princípios permitem explicar como os governos passados, actuais e futuros manipulam os povos e convencem a opinião pública do bom fundamento de uma guerra, da necessidade de travar um conflito ocultando sempre os seus objectivos reais: dominação económica e expansionismo. O presente texto é uma síntese da obra.

Plano da obra:

I. A sacralização da "nossa" causa

Nas sociedades modernas, o desencadeamento de uma guerra deve necessariamente ser aceite pela população. Além disso, é essencial dar uma justificação moralmente aceitável para um conflito armado, a fim de garantir a adesão da opinião pública. Nada pode ser empreendido se a população não tiver o sentimento de que o seu país se empenha numa guerra cavalheiresca, por uma causa nobre.

Princípio número 4: “Parece bem que a natureza humana queira que cada grupo se apresente como agindo pelo bem comum”.

Os Estados Unidos recorreram frequentemente a este princípio. Aquando da Primeira Guerra do Golfo, seu discurso caracteriza-se, na aparência, pela vontade de agir “pelo bem comum”: vamos em socorro de um pequeno país invadido (o Kuwait) e, não importa que este seja uma terrível ditadura, trata-se de defender o direito internacional e a liberdade dos povos! Da mesma forma, a “Guerra contra o terrorismo” permitiu-lhe justificar, sob a cobertura da exportação da democracia, a ocupação do Afeganistão ou do Iraque.

Naturalmente, as verdadeiras motivações são inconfessáveis: dominação geopolítica, económica, etc. Aqui, a propaganda desempenha portanto um papel crucial dissimulando as motivações reais da guerra para propagar a ideia de que se combate por nobres ideais, ao contrário dos nossos inimigos. Combate-se assim para preservar a independência e a honra do nosso país, até mesmo a de outros países, a exemplo da primeira intervenção americana no Iraque.

O recurso ao argumento religioso é um argumento clássico da propaganda para a guerra. Para tornar a guerra “uma cruzada”, ela é feita em nome de Deus. O princípio número 9 enuncia com efeito que “Deus patrocina muito imparcialmente todos os beligerantes”. Desde sempre, Deus assegura aos combatente uma “imunidade” moral e espiritual. Os exemplos históricos são numerosos.

Da Alemanha nazi ao messianismo americano passando pelas guerras de religião da Idade Média, um ponto comum a todos os beligerantes: Deus nos acompanha e deseja a vitória da nossa causa. Os combatentes desfrutam então de uma verdadeira vantagem psicológica, uma vez que são persuadidos ao mesmo tempo de participar de uma missão civilizadora e convencidos de que os crimes que cometerão para o seu cumprimento estão perdoados antecipadamente.

Entretanto, se bem que os valores religiosos sejam sempre utilizados como motivação, novos conceitos sacralizados apareceram: economia de mercado, democracia liberal e defesa da “civilização”.

Combatemos ao lado de minorias oprimidas, injustamente perseguidas. O móvel da guerra humanitária é assim um álibi moral de peso para a ingerência nos assuntos políticos dos países fracos. Com tudo isso, os fins públicos apregoados para promover o conflito junto à opinião pública (defender os direitos da pessoa ou a democracia) jamais são atingidos, ao contrário dos objectivos amorais: fins económicos, preponderância geoestratégica, etc. “As motivações não eram nem humanitárias nem altruístas, mas o essencial é ter feito a opinião pública nelas acreditar quando duvidava do bom fundamento do conflito”.

O conjunto da população deve ser mobilizado por trás da Causa Sagrada (quer ela seja fundamentada sobre a religião ou sobre argumentos modernos, como a defesa da democracia), em suma por trás do Estado. A propaganda repousa sobre a emoção, que deve ser suscitada por profissionais, artistas e intelectuais autorizados pelo Estado para dar a impressão de que toda a Nação apoia a guerra.

Princípio número 8: “É necessário que artistas e intelectuais conhecidos apoiem as iniciativas belicosas e que as apresentem de maneira positiva”.

O recurso aos intelectuais tomou diversas formas na história: intelectuais divulgaram pretensas atrocidades alemãs durante a Grande Guerra; artistas de Music-Hall trouxeram seu apoio às tropas francesas durante a Segunda Guerra Mundial; grandes programas de televisão, fazendo intervier artistas e intelectuais, foram difundidos em favor dos bombardeamentos da NATO durante a guerra da Jugoslávia; etc. Hoje, são as agências de comunicação que substituem a acção artística de propaganda.

O conflito deve ser exaltado: os cantores da guerra são amplamente difundidos e suas acções são valorizadas nos media, ao contrário dos que se opõem ao conflito que são marginalizados. E ai daqueles que ousassem por em causa as versões oficiais! Mesmo nas democracias modernas isso aparece como traição.

Não se hesita no recurso a procedimentos ditatoriais para amordaçar vozes dissidentes. Com efeito, conforme o Princípio número 10, “aqueles que põem em dúvida a propaganda são traidores”. Citemos o exemplo da Guerra da Jugoslávia ou do Afeganistão em que “os hesitantes foram rapidamente vítimas de ostracismo” quando não muito simplesmente arrastados na lama em praça pública.

Aquele que se interroga e que se interessa pelos argumentos das duas partes é logo considerado como cúmplice do inimigo. Os próprios media mainstream não podem assegurar um pluralismo real, sob o risco de passarem por traidores. A União Sagrada é obrigatória em tempos de guerra. Contudo, a razão exigira que se levantasse contra o seu Estado quando ele está errado.

II. A retórica do constrangimento

A guerra é impopular. Convém assim, para os decisores, dissociarem-se apresentando-se como grandes defensores da paz. As ditaduras agressivas tal como as democracias – presumivelmente pacíficas – procuram adornos virtuosos.

Para legitimar a acção armada ela é colocada numa retórica de constrangimento: não é culpa nossa que tenha estalado a guerra; não queríamos senão a paz e contudo fomos constrangidos a recorrer à força, sempre em nome da legítima defesa ou para respeitar – ou fazer respeitar – diversos compromissos internacionais.

Princípio número 1: “Se todos os chefes de Estado e de governo são animados por vontades de paz semelhantes, pode-se evidentemente perguntar porque mesmo assim se desencadeiam as guerras?

O exemplo mais impressionante continua a ser o da Primeira Guerra mundial em que cada um de todos os beligerantes rejeitam a responsabilidade pelo conflito. Aquando da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazi, igualmente, apresenta-se como vítima das potências aliadas (com uma hipocrisia notável tendo em vista a ausência de reacção destas diante das sucessivas anexações).

A propaganda então apresenta o inimigo como um agressor que não respeita nenhum compromisso, nenhum tratado e que, naturalmente, arca com a responsabilidade total pelo desencadeamento do conflito. Um vocabulário de “reacção” a uma “vergonhosa provocação” é frequentemente utilizado. Geralmente os beligerantes utilizam este mecanismo quer estejam ou não na iniciativa do enfrentamento. Esta propaganda é tanto mais eficaz porque a percepção que se pode ter do desencadeamento de um conflito muda em função do campo, porque todas as partes envolvidas num conflito se apresentam como vítimas de agressão e porque a determinação da qualidade de agressão permanece nublada.

O Princípio número 2 segundo o qual “Foi ele que começou” “foi muito amplamente aplicado pela propaganda ocidental: o inimigo nos despreza, não poderemos permanecer expectantes, vamos ser obrigados a mostrar-lhe a nossa força”.

III. A diabolização do inimigo

É preciso dar um rosto ao inimigo, personificá-lo. Os líderes inimigos constituem ferramentas perfeitas para este fim. Assim, são feitos aparecer como seres imundos e bárbaros, para por em causa sua legitimidade. Trata-se de diabolizá-los, por vezes comparando-os a Hitler tanto mentalmente como fisicamente! A técnica continua eficaz hoje em dia: o público tem necessidade de “bons” e de “maus”. Toda discussão ou interrogação calma sobre o bom fundamento do conflito é tornada impossível. A contestação de um conflito contra um novo Hitler é muito simplesmente proibida.

Segundo o Princípio número 3, “é preciso concentrar o ódio do inimigo sobre o líder adversário. O inimigo terá um rosto e este rosto será evidentemente odioso. Este espantalho dissimulará a diversidade da população que ele dirige, em que o simples cidadãos poderia encontrar os seus alter ego”.

Muito utilizado nas Duas Guerras Mundiais, o Princípio funcionou igualmente para as duas Guerras do Golfo, desde períodos de tensões com o Irão.

Toda guerra implica a perpetração de atrocidades. Naturalmente, para a propaganda de guerra, só o inimigo comete atrocidades de maneira voluntária e regular. Estas “Lendas negras”, estes horrores cometidos pelo inimigo, são frequentemente exagerados, até mesmo inteiramente inventados! Os governos têm interesse em deixar que lendas e rumores se propaguem, para instrumentalizá-los em favor de uma intervenção militar para exemplo. O, segundo o Princípio número 5: “as violências, de um campo ou do outro, podem certamente serem mais ou menos cruéis, desproporcionadas segundo as ordem dadas e as circunstâncias, mas a propaganda deve fazer-nos acreditar que elas são unicamente o feito do inimigo. Nós mesmos só podemos provocar erros por inadvertência ou por engano”.

Durante a Primeira Guerra mundial, a lenda das “crianças belgas com mãos cortadas pelos alemães” foi fortemente transmitida pelas propagandas dos Aliados. Ela foi particularmente eficaz para executar a diabolização das tropas alemãs, sobretudo em França.

Nossas tropas, pelo contrário, são irrepreensíveis, amadas por todos, mesmo pela população inimiga. De qualquer modo, sempre segundo a propaganda oficial, as democracias não podem cometer atrocidades ou fazer o mal senão involuntariamente. Mas, “ao contrário do que pretende a propaganda de guerra, não é de maneira cavalheiresca ou não que são conduzidas”.

Nunca se recorda suficientemente a importância do uso das palavras na propaganda de guerra: em nosso favor, utiliza-se uma linguagem asséptica, moderna e globalmente neutra como “deslocamento de população”. Mas quando se trata de descrever as acções do inimigo utilizam-se termos assustadores, “genocídio, carnificina, ocupação...”, mesmo quando aquilo nada tem a ver com a realidade. “As únicas atrocidades interessantes para a propaganda são aquelas que podem ser politicamente exploradas”.

A superioridade tecnológica determina a saída de um conflito. Pretende-se que a arma do inimigo não é legítima quando não é possuída pelo seu lado. Descredibilizar a legalidade dos meios inimigo permite sobretudo justificar, junto à opinião pública, o lançamento de “guerras preventivas”. O Princípio número 6 enuncia com efeito que “uma vez mais, a arma dos covardes é aquela de que não temos – ou não podemos ter – o uso...”

A aplicação mais recente deste princípio encontra-se na Segunda guerra do Golfo, com as famosas “armas de destruição maciça” de Saddam Hussein, completamente inexistentes, mas que permitiram legitimar a intervenção americana sobre este território.

IV. A importância de convencer das benfeitorias da guerra

Para manter o moral dos combatentes e da retaguarda, a propaganda minimiza as perdas e exagera as do inimigo. As perdas humanas e financeiras são minoradas, ao contrário, o conflito é apresentado como uma grande oportunidade económica. Além da minimização das perdas, pode-se fazer acreditar que os inimigos se rendem em massa aos nossos valorosos soldados...

Os media oficiais não hesitam em retomar maciçamente estes argumentos, sempre com o objectivo de promover o conflito e impedir a população de duvidar. Segundo o Princípio número 7, “[...] Quando parece difícil poder passar totalmente sob silêncio uma derrota magistral, a importância deste pode contudo ser claramente minimizada pelos media quase unânimes em difundir a versão oficial”.

Mesmo em caso de derrota absoluta, esta deve ser passada sob silêncio, a propaganda deve convencer do contrário, sempre para mobilizar a sua população e cortar rente todo embrião de debate ou de contestação sobre o assunto.

Pontos a reter:
Eis os dez mandamentos intemporais de Lord Ponsonby, desenvolvidos, analisados e actualizados na obra de Anne Morelli:Princípio 1: Nós não queremos a guerra.
Princípio 2: O campo adversário é o único responsável pela guerra.
Princípio 3: O inimigo tem o rosto do diabo.
Princípio 4: Nós defendemos uma causa nobre.
Princípio 5: O inimigo comete atrocidades deliberadamente.
Princípio 6: O inimigo utiliza armas ilegais.
Princípio 7: Nós sofremos muito poucas perdas.
Princípio 8: Os artistas e os intelectuais nos apoiam.
Princípio 9: Nossa causa é sagrada.
Princípio 10: Aqueles que põem em causa a propaganda são traidores.

Os beligerantes de todos os lados utilizam estes estratagemas para obter a aceitação pública do conflito. Trata-se de técnicas de manipulação utilizadas tanto por democracias como por ditaduras. Historicamente, nenhum Estado foi capaz de travar uma guerra sem o apoio da sua opinião pública. Embora as verdadeiras razões do conflito sejam sempre as mesmas – dominação económica e geopolítica, apropriação de recursos naturais – convém apresentar aos cidadãos motivos legítimos, drapejados de motivos humanitários e benevolentes. Em tempos de guerra, a propaganda deve ser usada para esmagar o espírito do povo e aniquilar qualquer espírito crítico por parte da população, que deve apoiar o seu exército, o seu país e os seus dirigentes sem reservas.

20/Outubro/2021

A obra pode ser encomendada à:

[*] Nascida em 14/Fevereiro/1948, é professora na Universidade Livre de Bruxelas (ULB) onde ensina crítica histórica e história das religiões. Começou a sua carreira de escritora e investigadora na década de 1970, declarando-se então de extrema-esquerda. Ganhou notoriedade com os seus Principes élémentaires de propagande de guerre (2001). Prosseguiu a seguir seu trabalho científico sobre as seitas. Recebeu o prémio “Femmes de Paix”, concedido pelo Senado belga, pela sua actividade como presidente das associação Femmes pour la paix.

Este artigo encontra-se em resistir.info

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