Diego Machado Ferreira e Ligia Ribeiro Paiva, ambos ex-metalúrgicos, trabalham hoje como entregadores terceirizados de uma transportadora que presta serviços para o Mercado Livre. FERNANDO CAVALCANTI
“Sou o terceirizado, do terceirizado, do terceirizado do Mercado Livre”. É assim que Diego Machado Ferreira, de 34 anos, explica sua situação trabalhista. Demitido da Ford em 2019, o ex-metalúrgico tem uma rotina semelhante à do personagem principal do filme Você não estava aqui, de Ken Loach. Sai às 6h da manhã para encarar a fila de entrega do galpão localizado no Parque São Lourenço, extremo Leste da capital paulista. Quanto mais pacote ele consegue despachar, mais ele recebe, o que significa comprometer o almoço e, com frequência, contar com uma ajudante para acelerar as entregas. A diferença entre ficção e realidade é que, ao contrário do personagem do filme, Ferreira não comprou a ideia de que ele é seu próprio patrão por ter aberto uma microempresa. “Não me sinto empreendedor.”
Ferreira faz hoje parte do grupo de trabalhadores jovens, altamente escolarizados e frustrados com as expectativas de emprego e melhoria de condições de vida, que o sociólogo Giovanni Alves chama de precariado. Essa classe social foi forjada pela promessa de ascensão social por meio da educação e do emprego. Porém, o futuro que se projetava para o país durante dos governos petistas ―com uma política industrial voltada para fortalecer e modernizar empresas nacionais― , não se concretizou. “Está em curso no Brasil um processo de desconstrução do sistema de segurança e saúde do trabalho que visa atender à demanda de um novo projeto econômico em desenvolvimento”, explica o cientista social Fausto Augusto Júnior, diretor técnico do Dieese.
O acirramento do processo de desindustrialização no país é um sintoma dessa mudança. Em setembro, a norte-americana Ford fechou a fábrica da Troller em Horizonte, região metropolitana de Fortaleza (CE), deixando 446 trabalhadores desempregados. Essa medida finalizou a saída da empresa do Brasil, anunciada no começo do ano. Com a transferência de sua produção para a Argentina, foram fechados também suas unidades em Camaçari (BA) e Taubaté (SP) com a demissão de 5.000 pessoas. E a Ford não foi a única. Nos últimos dois anos, as montadoras alemãs Mercedes Benz e Audi, as farmacêuticas Roche (Suíça) e Eli Lily (EUA) e a empresa de eletroeletrônicos japonesa Sony também anunciaram sua saída do Brasil.
Dados do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) mostram que o setor manufatureiro atingiu mínimas históricas na pandemia. A indústria de transformação (que enolve tecnologia para transformar matéria prima em produto final) caiu de uma participação de 11,79% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2019 para 11,30% do PIB em preços correntes em 2020, o menor patamar desde 1947, quando se dá início a série histórica das contas nacionais calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O auge da comparação da indústria de transformação aconteceu em 1985, quando chegou a representar 24,5% da economia do país. No terceiro trimestre deste ano, o peso do setor voltou a subir um pouco, chegando a 12,5% da geração de riquezas do país, mais como um soluço do que como retomada consistente. “A pandemia atingiu a indústria com significativa capacidade produtiva ociosa devido às perdas industriais de 2014-2016 e a crise político-institucional aguda de 2015 e 2016. Apesar da recuperação no triênio 2017-2019, o produto manufatureiro em 2019 ainda era 14% inferior ao de 2013″, informa o Iedi. O saldo de 2021 é negativo, segundo a entidade, que considera que “a segunda onda da pandemia para a indústria ainda não terminou.” Só o setor de alta tecnologia teve queda de 7,6% entre julho e dezembro.
Um fenômeno contrário aconteceu com o agricultura, que ganhou espaço mesmo no desafiador ano de 2020. O setor alcançou uma participação de 6,8% no PIB nacional em 2020 ― com uma leve alta em relação ao ano anterior, quando representou 6,5%, conforme dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A expectativa é que a peso da agricultura no PIB chegue a 7,9% neste ano e matenha uma trajetória de crescimento até 2022, quando chegará a 8,3%. “A partir de 2023, [a participação] deve cair de volta para a média da série histórica, algo próximo a 6%”, afirma Renato Conchon, coordenador do Núcleo Econômico da CNA. Estes dados ainda serão revisados a partir do ajuste feito pelo IBGE nos dados trimestrais.
Brasil perde 28.000 indústrias em seis anos
A Pesquisa Industrial Anual (PIA) 2019, divulgados neste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra em números o tamanho do estrago: de 2013 a 2019, o país perdeu 28.700 empresas e 1,4 milhão de postos de trabalho. Em 2019, o país tinha 306.300 indústrias, um encolhimento de 8,5% em relação ao seu auge seis anos antes. Essas empresas empregavam antes da crise sanitária 7,6 milhões de pessoas, uma redução de 15,6% sobre 2013. O salários do setor, geralmente mais elevados do que em outros segmentos, também sofreram perdas. Na indústria extrativa, a remuneração saiu de uma média de 5,9 salários mínimos (s.m.), em 2013, para 4,6 s.m., em 2019. Nas indústrias de transformação a redução foi de 3,3 s.m. para 3,1 s.m.
A situação do setor se complicou ainda mais com a crise sanitária. “A pandemia da covid-19 foi a pá de cal na indústria brasileira, que já vem perdendo espaço desde 2005, com o boom de commodities e valorização do câmbio”, explica o economista José Luis Oreiro, professor da Universidade de Brasília. O primeiro segmento afetado pelo processo de desindustrialização foi o de bens intermediários, ou seja, aquelas que produzem insumos para a própria indústria. Oreiro afirma que de 2005 a 2015, os elos da cadeia industrial brasileira começaram a sumir. Foi um período de substituição de compra de matéria-prima da cadeia brasileira por produtos importados. A partir de 2014, o que começou a desaparecer são as indústrias de bens finais, como as fábricas de automóveis. Fora da Indústria 4.0
O Brasil vive um fenômeno diferente do que aconteceu em países desenvolvidos que tiveram a chamada desindustrialização positiva, fruto do amadurecimento de suas economias. Esse fenômeno foi marcado pelo abandono de atividades que já não interessavam ao plano de desenvolvimento, como a indústria extrativa ―terceirizada aos países pobres―, para focar em alta tecnologia. Trata-se de uma tendência que tem como base a utilização de novas tecnologias, como robótica, inteligência artificial, internet das coisas.
Augusto explica que o reposicionamento da economia pelo Governo Bolsonaro segue o caminho contrário. O caso da indústria naval é um exemplo. Foram anos de investimento para formar mão de obra especializada e ter um desenvolvimento tecnológico capazes de permitir a construção de plataformas de alta profundidade. “Hoje temos o esvaziamento desses estaleiros, teoricamente, com a Petrobras em busca de melhores preços no mercado internacional. A alternativa que se discute é trazer para o país a indústria de desmontagem de navios, mais comum em países como Bangladesh e Índia. É uma indústria suja, que polui e mata trabalhadores”, explica o diretor do Dieese.
A expectativa é que novas ferramentas trazidas pela chamada Quarta Revolução industrial ―ou Indústria 4.0―, tornem as atividades industriais mais produtivas, mas também mais sustentáveis, uma nova demanda dos consumidores. Estados Unidos, Europa, Japão e China vem investindo nessas mudanças nos últimos dez anos. “Quem não se adaptar, está fora do comércio internacional, fora do investimento produtivo”, afirma Oreiro. “As fábricas estão indo embora do Brasil porque o país não está mudando. Vivemos um período de transformação no paradigma tecnológico: em alguns anos só teremos transportes elétricos, por exemplo”, analisa o economista.
No entanto, o Brasil, que já foi líder em produção de automóveis menos poluentes, não soube aproveitar essa vantagem competitiva. “Temos zero política para transformar o parque automotivo brasileiro num transporte sustentável. O Governo segue uma agenda ultrapassada e não consegue visualizar a nova revolução industrial que está acontecendo no mundo”, diz Oreiro.
Reconstrução das cadeias produtivas
Segundo Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), a pandemia trouxe de volta à esfera internacional a questão da reconstrução das cadeiras produtivas com o objetivo de evitar a interrupção na oferta de insumos estratégicos, como aconteceu com produtos da área médica na primeira fase da crise sanitária. “Esses temas entraram na agenda de política de desenvolvimento dos países. China, União Europeia e EUA estão alocando recursos para incentivar indústrias consideradas estratégicas”, afirma.
Cagnin defende que este também deve ser o caminho para o Brasil. O problema é que o país ainda tem questões antigas para resolver paralelamente aos novos desafios. “Temos problemas seculares, saneamento é deplorável, o restante do mundo resolveu essa questão no século XIX. Imposto de valor adicionado foi tema dos anos 80 no resto do mundo. Não temos mais espaço para fazer remendos, precisamos de reformas profundas que mudem o ambiente empresarial da água para o vinho”, defende.
Segundo o economista do Iedi, mesmo em relação à política industrial houve muito equívoco no que foi feito no passado. “O que o Brasil vem fazendo desde os anos 90 é uma política industrial compensatória, que não resolve os problemas. A estrutura tributária completamente disfuncional que temos hoje não será resolvida com política industrial”, alerta. De acordo com ele, muito do que passou como política industrial eram apenas subsídios. “Política industrial mira as tendências de desenvolvimento do que temos que apostar, não é para cobrir buracos e suprir deficiências cuja origem está em outra esfera, como na tributação”, afirma.
Diego Machado Ferreira prestando serviços para o Mercado Livre. FERNANDO CAVALCANTI
Flerte com a fome e sonho de voltar ao mercado formal de trabalho
Filho de um ex-metalúrgico, Diego Machado Ferreira organizou sua vida profissional em torno da indústria. Fez curso técnico no Senai, graduação de gestão em produção industrial e pós-graduação em logística. Entrou na Ford em 2007, na véspera da crise financeira internacional. Achou até que perderia o emprego por conta do rebuliço na economia mundial, mas lembra que nunca mais trabalhou tanto quanto naquela época. “Foi quando o [ex-presidente] Lula baixou o IPI”, afirma, referindo-se à redução de imposto sobre produtos industrializados para automóveis e eletrodomésticos da chamada linha branca, como geladeiras e fogões. “Trabalhávamos sábado e domingo direito, entrando uma hora mais cedo e saindo uma hora mais tarde”, recorda-se.
Foram seis anos de chão de fábrica até ser transferido para a área de logística. “Não tinha uma vida luxuosa, mas conseguia ter um carro bom e um convênio médico para a família”, diz. Com o fechamento da fábrica em São Bernardo, não conseguiu se recolocar em sua área de atuação. Chegou a montar um negócio próprio, uma academia de crossfit, porém, perdeu o investimento por conta da pandemia da covid-19. Assim como diversos de seus companheiro de trabalho, luta para manter seu padrão de vida. O trabalho de entregador cumpre a função de atender necessidades imediatas. Em dias bons, chega a ganhar 200 reais de diária, valor compartilhado com a amiga Ligia Ribeiro Paiva, também ex-Ford, que ajuda nas entregas. “Digo que hoje flerto com a fome. Todo dia ela pisca para mim e diz que se eu vacilar, ela entra na minha casa”, lamenta o entregador.
Ferreira culpa a reforma trabalhista realizada no Governo Michel Temer pela situação precária em que trabalhadores terceirizados vivem atualmente. Conta que a partir de 2017, a reforma afetou até mesmo a relação dos trabalhadores com a indústria. "Antes da mudança na lei, o produto final tinha que ser feito por um funcionário da Ford. Isso mudou. Aí aparece presidente na TV para falar que a lei vai gerar milhões de empregos, mas são empregos para ganhar pouco, 1.500, 1.400 reais", afirma, lembrando que o salário de muitos profissionais da Ford ultrapassava os 5.000 reais.
Trabalhadores por conta própria, como Ferreira, são o segmento que mais cresce no país, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE. No trimestre encerrado em julho, os autônomos atingiram o patamar recorde de 25,2 milhões de pessoas, um aumento de 4,7%, com mais 1,1 milhão de pessoas, em relação ao trimestre anterior.
Ferreira diz que vai continuar na entrega de compras, que dá mais estabilidade do que trabalhar de Uber, como fazem alguns de seus amigos, mas que espera conseguir um emprego CLT no próximo ano. Nada como aquele que ele tinha na indústria, ele lamenta. "A Ford era uma mãe, eu vivia em uma bolha."
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