Imagem: Alex Fu
Por ANTÔNIO SALES RIOS NETO*
A democracia é essencialmente um modo de viver, não de governar
“Escrevemos frequentemente a palavra Democracia.\ No entanto, nunca é demais repetir que essa é uma palavra\ cuja essência ainda dorme, imperturbada (…)\ É uma palavra notável, cuja história ainda não foi escrita, eu suponho,\ porque essa história ainda está para ser interpretada.\ Ela é, de certa forma, a irmã caçula de outra palavra notável\ e frequentemente usada, Natureza,\ cuja história também está à espera de um escritor.” (Walt Whitman)
A história já demonstrou que em momentos como o atual, em que os autoritarismos estão recrudescendo e assumindo o modo de fazer e de conduzir a política, a loucura humana sempre agudizou de um modo muito insuportável e autodestrutivo. Mesmo assim, a humanidade, nas muitas ocasiões em que se viu envolvida nesses momentos de impasse civilizatório, conseguiu desviar-se da rota de autodestruição, reorganizar-se e abrir-se a novas conformações políticas, acolhendo novas experiências democráticas, ainda que sempre muito insuficientes, restritas e limitadas às condicionantes impostas pela cosmovisão hegemônica de cada época histórica.
Estamos, hoje, vivendo a turbulência de mais uma transição de época histórica que, assim como as que ocorreram no passado, é marcada pela sensação de profunda intranquilidade, descontinuidade, desorientação, insegurança e vulnerabilidade diante dos acontecimentos em curso. A visão de mundo tecnoeconomicista predominante na atualidade, que tem no poder do capitalismo de plataforma sua expressão política mais forte, ainda deve prevalecer por algum tempo nesse interregno histórico. Embora alguns analistas políticos estejam inclinados a acreditar que um Estado revigorado, sob os auspícios de uma espécie de iliberalismo high tech, guiará a nossa próxima fase histórica, assim como o liberalismo industrial guiou os últimos 250 anos, há muitos indícios que apontam que não é esta a perspectiva mais provável (e desejável) para a humanidade.
As profundas desigualdades sociais, os desarranjos ambientais em curso e a ebulição sociocultural, que vêm se exacerbando desde o final dos anos 1960, dão alguns sinais de que a cosmovisão que poderá emergir, já nas próximas décadas, tenderá a um novo entendimento de realidade convergente com os aportes teóricos formulados ao longo do século XX. Aprendemos por meio de Thomas Kuhn que, no embate dos paradigmas e das interpretações do mundo, ciência e filosofia sempre caminharam atreladas às cosmovisões, ora influenciando, ora sendo influenciadas. Entre esses aportes mais recentes estão: relatividade (Einstein, 1905), incerteza (Heisenberg, 1927), complementaridade (Bohr, 1928), acaso e necessidade (Monod, 1971), auto-organização (Atlan, 1972), Gaia (Lovelock, 1972); pensamento complexo (Morin, 1973), autopoiese (Maturana e Varela, 1974), neguentropia (Prigogine, 1977), ordem implicada (Bohm, 1980), fractais (Mandelbrot, 1983), caos (Gleick, 1989; Lorenz, 1996), catástrofes (Thom, 1989), lógica fuzzy (Kosko, 1995), dentre outros (esta lista está longe de ser exaustiva). Como bem constatou, por volta dos anos 1990, o Nobel em Química (1977), Ilya Prigogine, “assistimos ao surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações simplificadas, idealizadas, mas nos põe diante da complexidade do mundo real”.
A lógica econômica rapinante dos atuais agentes políticos – que existe desde antes de o homem inventar a propriedade privada e o excedente de produção –, e o anacronismo institucional que conduzem à anarquia geopolítica vigente, seja pelo lado do capitalismo liberal crepuscular do Ocidente, seja do lado do capitalismo iliberal ascendente da Ásia, ou ainda do capitalismo subserviente e reprimarizado dos países periféricos espoliados do Sul Global, dada a sua incapacidade de resposta às crescentes convulsões sociais e ambientais globais em curso, cederão, pouco a pouco, espaço para novos atores sociais cuja visão de mundo ampara-se na percepção de que o real está mais associado a atributos fluidos e relacionais como interdependência, pluralidade, alteridade, diversidade, comunidade e diálogo.
Diante das acirradas tensões geopolíticas desse mundo multipolar, que estão marcando a transição de época atual, se a humanidade não sucumbir a um dilúvio de bombas atômicas e, na sequência, a um longo inverno nuclear que inviabilizaria a vida na Terra como a conhecemos, a cosmovisão emergente provavelmente aceitará que a realidade será melhor compreendida como um processo adaptativo complexo. Surgirá uma nova compreensão de que o mundo real é governado pelo acaso e pela necessidade, por um misterioso emaranhado de relações, e não exclusivamente pela vontade humana de dominação e controle que imperou nas cosmovisões anteriores, e que desencadeou o antropocentrismo que está arrastando a civilização para o abismo.
Ao mesmo tempo, esse contexto histórico agônico poderá criar as condições para irrupção de convivências democráticas mais ampliadas e aprofundadas. Mas até que esses novos atores ganhem massa crítica suficiente para reverter a cosmovisão atual, teremos que sobreviver, literalmente, com os três subprodutos mais devastadores da expansividade capitalista excludente, predatória e beligerante, que afligirão a humanidade nas próximas décadas: a desigualdade social abissal, a sombria iminência de um colapso ambiental e a ameaça contínua de uma conflagração nuclear terminal.
Olhando para nosso longo e sofrível processo histórico, torna-se difícil imaginar que a saída dessa fase de profunda regressão que se desenha num horizonte próximo não contemple a perspectiva de resgate de uma democracia de natureza fractal – um novo modo de convivência humana em que a democracia se propaga em todas as escalas e em todos os espectros de espaços políticos –, exatamente porque a crise sistêmica atual, que muitos já chamam de crise existencial, é resultado de uma lógica imperialista que também tornou-se fractal. O ser conflituoso que caracteriza o homem civilizado parece aproximar-se do seu ápice, criando as condições de sua própria negação e, assim, tornando insuportável a própria existência humana. Os elevados e crescentes índices de depressão e de ansiedade estão aí para evidenciar esse fato. Chegamos a uma situação que foi bem expressada pelo ecologista Garrett Hardin: “tendo eliminado todos os outros inimigos, o homem é agora o seu pior inimigo. Ao terminar com todos os seus predadores, o homem é o predador de si mesmo”.
Para vislumbrarmos tal perspectiva de um resgate aprofundado da democracia, que nos permita sair dessa crise sistêmica, partiremos do pressuposto de que o que alimenta o anseio democrático que acompanhou boa parte da história da civilização é um impulso inerente à natureza do animal humano, seja qual for a adversidade de sua circunstância, de seguir sempre um modo de viver em participação, inclusão, cooperação, compreensão, acordo, respeito mútuo e, sobretudo, em parcimônia com o seu meio ambiente. O estado de permanente conflito psíquico que caracteriza o comportamento do homem dito civilizado não é um dado constitutivo da natureza humana, com o qual estaríamos irremediavelmente condenados a conviver. O conflito humano deriva de um componente cultural, e não biológico, como sustenta o neurobiólogo chileno Humberto Maturana: “a pertença a uma cultura é uma condição operacional, não uma condição constitutiva ou propriedade intrínseca dos seres humanos que a realizam”.
Logo, democracia e convivência (o ato de viver diariamente uns com os outros e com o meio ambiente, incluindo-se todas as contingências inerentes a essas relações), será abordado aqui, como conceitos inseparáveis, não só de um ponto de vista reduzido às ciências sociais, mas que abrange também as ciências da natureza. Tal entrelaçamento explica, inclusive, a coexistência da imensa diversidade de modos e formas de vida e a sustentabilidade da complexa teia de relações que manteve a evolução da biosfera terrestre por bilhões de anos. Portanto, essa indissociabilidade foi, como veremos ao longo dos textos subsequentes, o que também sustentou a longa evolução das diversas linhagens de primatas, que culminaram na do Homo sapiens.
Seguiremos, então, um padrão de pensamento que tenta buscar convergências entre a filosofia, as ciências sociais e as novas ciências da natureza, desenvolvidas nas décadas mais recentes, conforme os novos aportes teóricos elencados antes. A democracia será tratada aqui, portanto, a partir da perspectiva da fenomenologia da biologia entrelaçada à da cultura, duas vertentes indissociáveis para a compreensão dos seres vivos, segundo o entendimento do renomado neurobiólogo Humberto Maturana, que será a nossa principal referência.
Utilizaremos como ponto de partida as reflexões que Humberto Maturana desenvolve sobre democracia num texto seminal intitulado Conversações Matrísticas e Patriarcais, que é parte integrante do livro Amor y Juego – Fundamentos Olvidados de lo Humano desde el patriarcado a la democracia (1993), escrito em parceria com a psicóloga alemã Gerda Verden-Zoller.
Vale ressaltar, no entanto, que ao longo da história, muitos pensadores notáveis, desde os democratas atenienses (Sólon, Clístenes, Péricles e outros), passando por nomes expressivos como Spinoza, Rousseau, Tocqueville, até os mais recentes, Karl Popper, Hannah Arendt, Amartya Sen, Umberto Eco, Boaventura de Sousa Santos, dentre muitos outros, também deram sua contribuição nesse mesmo sentido. Todos eles se dedicaram a compreender e a interpretar as diversas formas de convívio social, oferecendo melhores argumentos para o modo de viver na democracia. Todos eles pensaram a democracia a partir de pressupostos que superassem os condicionamentos impostos pelo padrão patriarcal, dominador e controlador das realidades, que caracterizou e forjou todo o percurso civilizatório.
Depois das notáveis descobertas de Charles Darwin no campo das ciências da natureza (Teoria da Evolução das Espécies – 1859), Maturana talvez tenha sido quem melhor conseguiu ampliar a compreensão acerca da dinâmica da vida, inclusive alcançando, por meio da chamada “biologia da cognição”, uma compreensão ampliada também acerca do comportamento humano e da vida em sociedade. Contrariando a primazia da razão que sempre orientou a compreensão filosófica e científica acerca dos fenômenos naturais e do comportamento humano, Maturana entende que “a história da humanidade seguiu e segue um curso determinado pelas emoções”, e que “nossos desejos e preferências surgem em nós a cada instante, no entrelaçamento de nossa biologia com nossa cultura e determinam, a cada momento, nossas ações.”
Ao investigar o entrelaçamento entre os processos biológicos que sustentam os seres vivos e a dinâmica social que ampara a vida em sociedade, Maturana parece ter desvendado, ou, pelo menos, ter dado os primeiros passos em direção ao que Walt Whitman, considerado o pai da poesia estadunidense e poeta da democracia, desejou 200 anos atrás, conforme exposto na epígrafe que inicia estas reflexões.
As descobertas de Maturana no campo da biologia, e especialmente da biologia da cognição, permitiu-lhe extrapolar para novas compreensões no campo do comportamento humano, representando um grande avanço no sentido de estabelecer os vínculos entre a fenomenologia da política e a fenomenologia da biologia e, assim, podermos perceber como o biológico e o cultural se imbricam, por uma condição inerente à natureza dos seres vivos, e como, no caso dos seres humanos, essa relação se dissociou no curso do processo civilizatório, contrariando os princípios que regem os metabolismos constituintes da vida e, por consequência, inviabilizando também a convivência democrática e a vasta teia de relações que sustenta a vida do planeta Terra.
Sabemos que não é incomum observar em boa parte das pessoas e sobretudo nos extratos sociais mais elevados, que compreende os atores políticos das mais variadas correntes ideológicas, as autoridades de Estado, os dirigentes de instituições governamentais, e até mesmo de grandes corporações, defenderem a democracia com unhas e dentes, mas não vivê-la em suas relações diárias com os outros, seja na família, nas suas comunidades, na empresa, na escola e em qualquer outro espaço de convivência. As instituições ocidentais, em especial, são reconhecidas como guardiãs da democracia, mas na prática estão contaminadas por relações patrimonialistas, autoritárias, excludentes e antidemocráticas. Nossa civilização, em boa medida forjada pela arrogância eurocêntrica, padece de um grande paradoxo: deseja e defende firmemente a democracia no âmbito da retórica, no entanto, a nega continuamente no âmbito da vivência.
O mesmo se reflete na relação do ser humano com o meio ambiente. Nunca se propagou tanto a necessidade de construirmos sociedades sustentáveis, mesmo assim, continuamos presos a um padrão de vida consumista, excludente, predatório e insustentável. No fundo, estabelecemos uma relação utilitarista com a democracia, assim como fazemos com a Terra. Sem percebermos, nos comportamos e agimos como seres contraditórios e conflituosos, por estarmos cegamente imersos numa cultura patriarcal que, por ser milenar e, portanto, constituinte do longo processo de formação da nossa civilização, consideramos ser o modo natural de viver dos humanos.
Se a democracia deve se constituir como um modo de viver em participação, inclusão, cooperação, compreensão, acordo e respeito mútuo, há muitas formas de fazer isso. Logo, há muitas expressões de vida democrática, por isso é que ela não é defensável, e sim deve ser vivida conforme as circunstâncias e os contextos de cada indivíduo, de cada comunidade, de cada povo e de cada país. A democracia é essencialmente um modo de viver, não de governar. As experiências que tentaram impor a outras sociedades um sistema de governo que se auto reconhece como democrático, seja de qual for a matriz ideológica, invariavelmente terminaram por negar e destruir ricas tradições culturais ancestrais, muitas vezes conquistadas a duras penas, gerando assim mais e mais guerras, conflitos e violências entre os povos.
Portanto, trataremos também sobre como, tanto a nossa vida cotidiana quanto a história da humanidade, estão repletas de exemplos que demonstram o quanto a imposição de comportamentos e ideais ditos democráticos resultaram em variadas formas de relações opressoras e tiranias implacáveis. E não só contra a condição humana, mas também influenciaram e alimentaram as muitas dinâmicas que forjaram o curso da civilização, arrastando-a para a profunda degradação social e ambiental que vivenciamos hoje.
Estamos falando aqui da perspectiva de um resgate neomatrístico, como sugerem Maturana e outros. O resgate de um tempo em que a democracia ainda não existia na forma de conceitos ou regras na linguagem do Homo sapiens, porque ele não precisava de diretivas e normatizações a serem impostas uns aos outros. Simplesmente havia modos de viver coexistindo de uma forma mais adaptada e integrada à complexidade do mundo natural e às suas contingências do que o nosso modo de viver patriarcal milenar. Usando as palavras de Maturana, um tempo em que “a vida cotidiana era vivida numa coerência não-hierárquica com todos os seres vivos”.
As tragédias em curso neste início de milênio, apontando para uma avassaladora e insondável destruição social e ambiental, em escala global, tenderão cada vez mais a desafiar a nossa condição de sobrevivência como espécie. Um mundo cada vez mais intratável coloca-se bem à nossa frente. Considerando que a história tem nos mostrado que “a humanidade não suporta muita realidade” – lembrando aqui o poeta inglês Thomas Eliot e sua apurada acuidade sobre o comportamento humano –, o fluxo dos acontecimentos parecem indicar que se aproxima o tempo de revivermos uma democracia do dia a dia, como outrora, sem precisarmos de apropriações e distorções para defendê-la, alimentando e mantendo as tiranias, em especial a do capital e a dos algoritmos, que estão arrastando a civilização para o precipício.
*Antônio Sales Rios Neto, servidor público federal, é escritor e ativista político e cultural.
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