Foto Embrapa
O Brasil já está entre os maiores produtores e consumidores mundiais de biodiesel, atras apenas dos EUA e da Indonésia.
Desmonte das Políticas Públicas e Crise Internacional: Biocombustível, a Vítima da Vez
por Tereza Campello, Miguel Rossetto e Arnoldo de Campos
A crise internacional decorrente da pandemia do COVID-19, agravada pelo conflito que ocorre na Ucrânia, tem afetado fortemente os mercados de alimentos e energia, com graves desdobramentos sobre a segurança alimentar e energética global. Como se não bastasse, a crise climática e a urgência por soluções sustentáveis batem à porta. Uma tempestade perfeita se formou, e o Brasil vem sendo um dos países mais afetados devido à falta de planejamento e gestão.
Impactos destas crises já fazem parte do dia a dia do brasileiro, e se refletem nas bombas de gasolina e de diesel, nos preços dos alimentos, na volta da fome e nas vítimas dos eventos climáticos extremos.
Neste contexto, por incrível que pareça, os biocombustíveis também vêm sofrendo por conta da incompetência do atual Governo Federal. Os biocombustíveis poderiam ser parte da solução para enfrentar a crise energética e climática global. Entretanto, eles têm sido tratados como parte do problema, e padecem com diversas medidas que estão enfraquecendo o setor, desorganizando os mercados, prejudicando a indústria, a agricultura em geral e, em particular, a agricultura familiar.
No caso específico do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), que se tornou um caso mundial de sucesso brasileiro, o desmonte começou ainda em 2020, e se intensificou no ano passado, sob a justificativa da crise dos combustíveis. O Programa parece estar a caminho da UTI com as medidas recentemente anunciadas pelo Governo.
O biodiesel é um combustível novo no país. Foi adicionado à matriz energética nacional há pouco mais de 15 anos, e vinha crescendo e se consolidando no mercado nacional, legitimando o país como ator relevante no cenário internacional, pela escala que estamos adotando na substituição dos combustíveis fósseis pelos renováveis. O Brasil já está entre os maiores produtores e consumidores mundiais de biodiesel, atras apenas dos EUA e da Indonésia.
Não são poucos os benefícios deste biocombustível. Segundo a Embrapa, uma mistura de 20% de biodiesel ao diesel pode reduzir as emissões de CO2 em até 70%, contribuindo de forma significativa para mitigar a crise climática, motivo pelo qual o PNPB é parte dos compromissos assumidos pelo Brasil na agenda ambiental internacional.
O biodiesel contribui para a reduzir a poluição nas cidades, diminuindo a incidência de doenças decorrentes da queima de combustível fóssil. O uso do biodiesel reduz as emissões do monóxido de carbono (CO), do material particulado (MP), do óxido de enxofre (SOx), dos hidrocarbonetos totais (HC) e de grande parte dos hidrocarbonetos tóxicos, que apresentam potencial cancerígeno. Segundo o estudo “Impacto na saúde humana pelo uso de biocombustíveis na Região Metropolitana de São Paulo”, realizado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a utilização do biodiesel misturado ao diesel de petróleo nos veículos do sistema de transporte público evita internações hospitalares por várias doenças respiratórias e até salva vidas.
Este biocombustível, diferente do etanol, tem sinergia muito positiva com o setor de alimentos, uma vez que as oleaginosas que são base da sua fabricação, como a soja, têm como produto mais importante o farelo, que é utilizado na fabricação de ração para produção de carnes, leite e ovos. Por conta disso, o Programa tem contribuído para viabilizar maior agregação de valor no mercado interno, fortalecendo a indústria nacional em detrimento da exportação de grãos no mercado internacional
Por fim, o PNPB inovou ao construir um modelo que simultaneamente fortaleceu a indústria nacional e abriu espaço para a inclusão produtiva da agricultura familiar, que tem participação garantida pelo Programa nas cadeias de produção do biodiesel através do Selo Biocombustível Social.
Estavam integradas às indústrias de biodiesel, em 2020, 74,2 mil famílias de agricultores, que faturaram com a comercialização de oleaginosas, R$ 5,9 bilhões neste ano. A relação entre as usinas e a agricultura familiar é feita por meio de contratos prévios de garantia de comercialização e recebimento gratuito de assistência técnica e extensão rural, financiadas pelas usinas de biodiesel.
Desde 2004, quando o PNPB foi lançado, o Brasil passou a adicionar percentuais crescentes de biodiesel ao diesel consumido no país, diversificando e tornando a matriz energética nacional mais sustentável e inclusiva.
No seu lançamento, em 2004, foi estabelecida uma rampa que partiu de uma mistura de 2% e chegou a 5% em 2010. Com o amadurecimento do setor e a maior capacidade instalada de produção, propiciada pelos investimentos feitos pelas empresas e pelos agricultores, uma nova rampa foi estabelecida em 2014. Em 2018 atingimos 10% de mistura. Todas as metas foram alcançadas e cumpridas, sem impactos nos preços dos combustíveis.
Devido aos bons resultados do programa, as respostas positivas do setor, a necessidade de reduzir a dependência dos combustíveis fósseis e as importações de diesel, o Brasil atualizou o marco legal do Programa em 2018 e foram definidas novas metas. Até 2023 deveríamos chegar a 15% de mistura de biodiesel ao diesel, o que contribuiria também para a descarbonização do setor de energia.
Novamente, os empresários e agricultores ampliaram seus investimentos e a produção para atender as novas demandas estabelecidas pelo Governo.
Em 2021, quando já se estava utilizando 13% de biodiesel na mistura com o diesel, o governo decidiu retroceder e reduzir a mistura para 10%, o que pegou o setor no contrapé, criando uma ociosidade nas usinas, que haviam se preparado para abastecer o mercado de 15%.
Seria uma medida temporária, mas acabou sendo mantida durante praticamente todo o ano passado e agora será permanente, segundo anunciado recentemente pelo Governo. Esta situação levou o setor a uma ociosidade ainda maior nas indústrias de biodiesel, que já se aproxima de 50%, o que é insustentável.
O desmonte do PNPB não parou por aí. O Governo Bolsonaro começou a adotar medidas que enfraqueceram o programa, as indústrias, e tendem a excluir a agricultura familiar da cadeia produtiva de biocombustíveis. A primeira delas foi acabar com o mecanismo dos leilões, organizados pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), instrumento utilizado para comprar biodiesel. Era um mecanismo que assegurava transparência e concorrência no mercado, segurança jurídica e previsibilidade para os agentes econômicos e produtivos. Simultaneamente, o Governo excluiu a Petrobrás da intermediação da comercialização entre os produtores de biodiesel e as distribuidoras de combustíveis, deixando o mercado nas mãos de mais de trezentas distribuidoras, sem a devida fiscalização e controle sobre a mistura obrigatória. Todos conhecem os desafios do funcionamento do mercado de combustíveis no Brasil.
Não satisfeito, como parte do desmonte e enfraquecimento da Petrobrás, foi colocada a venda a Petrobras Biocombustível, que desempenhava papel importante nas cadeias de biodiesel e etanol.
Agora, mais recentemente, foi anunciada a intenção de retirar os impostos e liberar as importações de biodiesel e, ao mesmo tempo, mudar as regras do Selo Combustível Social, medidas que podem levar a falência de muitas usinas e decretar a exclusão e perda de renda de dezenas de milhares de agricultores familiares que participam do programa em todas as regiões do país.
A liberação das importações de biocombustível, que tem concorrentes que utilizam práticas de subsídios e medidas desleais de concorrência no mercado internacional, ameaça o parque industrial brasileiro, já ocioso pela redução abrupta e não planejada dos percentuais de mistura, no caso do biodiesel.
Corremos o risco de assistir a morte prematura de inúmeras indústrias recém-construídas, com perdas que podem ser irreversíveis, na contramão do que o país precisa. As consequências recairão, inclusive, sobre o setor de alimentos, uma vez que haverá redução na produção de óleo no mercado interno, o que acarretará redução proporcional na produção de farelo, base essencial da produção de carnes, ovos e leite.
O governo sustenta esta decisão irresponsável na promessa de redução nos preços dos combustíveis nas bombas, o que é notoriamente falso, uma vez que os biocombustíveis não são responsáveis pela elevação dos preços. O problema vem lá de fora, por conta do aumento nos preços do petróleo, e decorre, principalmente, da política equivocada de paridade de preços de importação praticados pela Petrobras por orientação do Governo, modelo esse contrário aos interesses do Brasil.
Segurança alimentar e energética são grandes desafios estratégicos para todos os países do mundo. Sairão na frente, os países que conseguirem avançar, aliando estes desafios à transição verde. O Brasil poderia estar liderando esses processos. Com o Governo Bolsonaro estamos fazendo o inverso, e caminhamos rapidamente de volta ao passado. A destruição do parque industrial de biodiesel é mais um passo rumo ao retrocesso.
Tereza Campello – Titular da Cátedra Josué de Castro/USP, Ex-Ministra do Desenvolvimento Social e Ex-Presidenta do Conselho de Administração da Petrobrás Biocombustível
Miguel Rossetto – Ex-Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ex-Presidente da Petrobrás Biocombustível
Arnoldo de Campos – Ex-Secretário Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e Ex-Coordenador do Selo Combustível Social
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