terça-feira, 3 de maio de 2022

Quando os interesses individuais subjugam o sentido do público

Imagem: Amanda Perobelli/Reuters

Por Magda Barros Biavaschi

No dia 1º de novembro foi publicada a Portaria nº 620, do Ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, proibindo despedir empregados que se recusam a tomar a vacina contra a Covid-19. Segundo seu texto, verdadeira contradição em termos, a não apresentação do cartão de vacina não pode caracterizar justa causa, tratando como prática discriminatória a obrigatoriedade desse certificado tanto no processo seletivo de admissão de empregados quanto na despedida por justa causa. E, rompido o contrato “por ato discriminatório”, segundo a Portaria, terá o empregado direito à reparação por dano moral e a optar entre ser reintegrado ao emprego, com ressarcimento do período de afastamento, ou receber em dobro a remuneração do período.

A crítica à Portaria, em boa hora suspensa pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso , remete a questões jurídicas importantes apontadas em densos textos.[2] Mas, também, à discussão sobre a liberdade ou não dos indivíduos se negaram à vacinação; isto é, se essa decisão é uma escolha individual ou se a transcende, inserindo-se no tema da saúde pública, visando à proteção da vida dos cidadãos e, mais amplamente, da vida do planeta. A vacinação é preconizada, em nível mundial, como a via que a ciência oferece, até o momento, para enfrentar a ameaça que ronda o planeta. Nesse sentido, a questão que se coloca é se estamos diante de um direito individual de escolha ou de um direito da coletividade, bem maior a ser protegido.

Em Hobbes [3], a liberdade pode ser compreendida como sendo a capacidade de cada indivíduo usar seu poder, de fazer o que seu julgamento e sua razão indicam como adequado; portanto, uma “liberdade negativa” [4]. Já em Rousseau, a liberdade adquire dimensão social e histórica, uma “liberdade positiva” como se verá. No entanto, mesmo em Hobbes, os interesses do outro impõem ao indivíduo limites ao exercício de sua liberdade. Para ele, o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir; já a lei determina ou obriga a uma dessas coisas. No estado de natureza, sendo cada um governado por sua própria razão, todos têm direito a todas as coisas. Levados por suas paixões, os homens precisam conquistar as comodidades da vida que lhes resultam em prazer. E como o egoísmo é natural, a inclinação é constituída por um perpétuo desejo de mais e mais poder. Enquanto isso perdurar, não poderá haver segurança de viver o tempo que a natureza geralmente permite. É regra geral da razão que todos se esforcem pela paz, na esperança de consegui-la. No entanto, não a conseguindo, poderão procurar todos os recursos para a guerra, sendo lícito empregá-los. E como entre os indivíduos “sem espadas”, o recurso à violência generaliza-se em uma guerra de todos contra todos, o estado natural exige uma saída com base no próprio instinto de preservação da vida.

Guiados pela razão, esse instinto e o desejo de paz levam os indivíduos a estabelecerem pactos, renunciando ou transferindo direitos a uma ou mais pessoas, sendo intransferível o direito à vida. Só que os pactos sociais, para serem legítimos, pressupõem um ato de vontade entre iguais; já os realizados entre desiguais, iníquos e artificiais, esses não asseguram a paz. A única maneira de instituir um poder que garanta segurança suficiente para viverem satisfeitos é conferir força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens que reduzam as diversas vontades em uma só. A autoridade do soberano é dada pelos indivíduos que, reunidos, transferem-lhe seus direitos para que promova a paz, pois pactos sem espada não passam de palavras. [5] Ao soberano, guardião do pacto e contra o qual também ele não se pode insurgir, compete obrigar os indivíduos a cumpri-lo, sob pena de retorno ao estado de natureza, à guerra de todos contra todos, com ensina Marques Neto em Hobbes e as Paixões. [6] Hobbes mostra ser impossível a sobrevivência dos homens em uma sociedade de indivíduos sem leis racionais que os organizem; ao contrário, é força bruta.

Essas reflexões levam a Rousseau [7] que, nascido no limiar do século XVIII, introduziu a ideia de “liberdade positiva”, imbricada na práxis social e nos direitos e deveres que regulam a vida em sociedade. A liberdade adquire dimensão social e histórica. Ainda que tenha gênese natural, atualiza-se pela práxis social, manifestando-se mais como processo do que como estado; essa dimensão permite que se entenda o significado político da liberdade como pressuposto e resultado da sociedade gerada pelo contrato social legítimo. Liberdade essa distinta daquela dos liberais em que os direitos de liberdade garantem ao indivíduo uma esfera privada. Daí que os direitos de liberdade típicos do liberalismo, sendo pré-estatais, são insuscetíveis de interferência do Estado. Já em Rousseau o princípio da liberdade é constituído como norma. Trata-se de direito e dever, não apenas de negação ou ausência de impedimentos. Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, é negar o valor universal da dignidade e da personalidade humanas. Sobre a origem da desigualdade mostra os caminhos que a humanidade percorreu visando à igualdade e o faz, como Hobbes, passando do estado de natureza para o civilizado. Na dinâmica dessa trajetória, mostra suas contradições e antagonismos, legado fundamental para se distinguir entre liberdade negativa e positiva. E afirma ser contra a lei da natureza que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, que um punhado de pessoas nade no supérfluo enquanto aos esfomeados falta o necessário.

Rousseau, olhando para o processo de socialização, mostra que, em função de suas alternativas e vicissitudes, os homens combinam diferentemente suas pulsões. Impulsionado pela ideia de igualdade e liberdade e desejoso de uma formação social em que ambas estejam articuladas, percebe nas sociedades individualistas, fundadas na desigualdade, que os homens subordinam o amour de soi ao amour propre, tornando-se egoístas. Mas quando impera a vontade geral, o amour de soi é temperado pela pitié e eleva-se à virtude, consagrando predomínio do interesse público sobre o privado. Essa compreensão, encontrada em Coutinho [8] , demanda leitura dos dois textos, articulados em unidade dialética: O Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade e o Contrato Social, de 1755 e 1762; [9] ou seja, as obras apresentam dois tipos de contratos: no Discurso, o contrato iníquo, expressão da desigualdade e origem de um Estado a serviço dos ricos; no Contrato, o pacto legítimo, gerador da sociedade igualitária, base da ordem política fundada no interesse comum.

Ainda alerta no Contrato Social: mesmo o direito dado ao soberano sobre seus súditos pelo pacto social não ultrapassa os limites da utilidade pública, competindo-lhe fixar princípios de sociabilidade sem os quais não é possível ser bom cidadão e súdito fiel. Quem não aceita ou desrespeita os princípios dessa ordem moral comunitária pode ser banido; não como ímpio, mas como insociável, incapaz de amar sinceramente as leis, a justiça e sacrificar a vida ao dever. Quem finge aceitá-los, mas os viola, que seja punido. Quando o vínculo social afrouxa e o Estado enfraquece, interesses particulares influem: então, a vontade geral não é mais a vontade de todos. Em meio às contradições, torna-se muda e, sob o nome de leis, são aprovados decretos iníquos, tendo por fim o interesse particular. Esse atualíssimo alerta de Rousseau fornece pistas para se olhar um Brasil em que, por vezes, a via do “consenso” ganha força como apta a democratizar e “harmonizar” a desigualdade que costura o tecido social.

Voltando à Portaria liminarmente suspensa, Hobbes e Rousseau são relevantes para se definir caminhos que, na esfera das relações sociais, levem à concretização dos princípios incorporados pela Constituição de 1988. Ambos oferecem luzes à compreensão dos processos históricos e, colocando em relevo a historicidade do homem, permitem desvendar as idiossincrasias de sociedades fundadas no individualismo. Representando dois momentos indissociáveis de uma tradição que busca entender o papel dos indivíduos e do Estado diante das condições de vida na terra, inserem-se na discussão sobre liberdade e seus significados em voga na agenda de humanistas preocupados com sociedades justas e que não tenham a desigualdade como fundante.


Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada, pesquisadora do CESIT/IE/Unicamp, professora, membra da AJD.

Notas:

[1] Desembargadora aposentada, pesquisadora do CESIT/IE/Unicamp, professora, membra da AJD. 

[2]  Na ADPF 898, em sede liminar, suspendeu os dispositivos impugnados, ressalvando contraindicação médica. Decisão submetida ao plenário virtual: https://www.jota.info/stf/do-supremo/barroso-suspende-portaria-do-governo-que-proibe-demissao-de-quem-recusa-vacina-12112021.

[3]  HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).

[4] BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: UnB, 1981, p. 133. 

[5] HOBBES, op cit, op. 103. 

[6] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho, “Hobbes e as Paixões”, Empório do Direito, 4 abril, 2015, Em: http://emporiododireito.com.br/leitura/hobbes-e-as-paixoes-por-agostinho-ramalho-marques-neto.

[7] Considerações em: BIAVASCHI, Magda B. O Direito do Trabalho no Brasil – 1930-1942: a construção do sujeito de direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2007. 

[8] COUTINHO, Carlos Nelson. “Crítica e utopia em Rousseau”. Lua Nova 38, O Individualismo e Seus Críticos, dez/1996. Disponível em https://www.scielo.br/j/ln/a/pCDtnnCQ5kCbbXRkL83Tn4L/?lang=pt.

[9] ROUSSEAU. Jean Jacques. Discurso sobre os fundamentos e origens da desigualdade entre os homens. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os pensadores); Idem, Do contrato social: ou princípios do Direito Político. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 22-145.  

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