sexta-feira, 3 de junho de 2022

Adeus à paz


Por FLÁVIO AGUIAR*

A bandeira da paz está em situação crepuscular, enquanto a aurora de dedos cor-de-rosa faz a da guerra levantar-se no horizonte

“Eu sei que a noite não é igual ao dia” (Ernest Hemingway, Adeus às armas).

“Nós estamos abandonados feito crianças, e somos experimentados como os velhos, somos brutos, infelizes e superficiais – eu acho que estamos perdidos” (Erich Maria Remarque, Nada de novo da frente ocidental).

O que seria do Velho Mundo sem uma guerra de quando em quando? Perderia sua identidade e o elo com seu passado? Bem, a situação é diversa daquela do líder do Novo Mundo, os Estados Unidos que, pelo visto, precisam de uma guerra sempre.

É verdade que estes espaços geopolíticos protagonizaram movimento pacifistas de porte no passado. Na Europa, pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, quando intelectuais de diferentes origens se refugiaram na Suíça e fundaram alguns dos movimentos de vanguarda da arte de então. Naquele momento a paz também se tornou uma bandeira dos movimentos comunistas internacionais. Mas estes eram vistos por outros como traidores lesa-pátria de todos os lados do conflito.

Nos Estados Unidos o movimento pacifista cresceu enormemente durante a Guerra do Vietnã, embora já existisse antes, desde o tempo dos beatniks, nos anos 1950. O mesmo aconteceu na Europa Ocidental durante os anos da Guerra Fria, e o temor da eclosão de uma guerra nuclear potenciou os movimentos de ambos os lados do Atlântico. Desta conjuntura nasceram os Partidos Verdes no continente europeu, aliando a bandeira da paz entre os Estados nacionais a uma pacificação das relações humanas com a natureza circundante. A social-democracia europeia agitava a bandeira de uma “terceira via” de compromisso entre preocupações com o coletivo e as liberdades individuais, navegando no mar tempestuoso dominado pelas potências armadas da Guerra Fria.

Do lado oficial, nunca houve uma renúncia à guerra. Países do Ocidente europeu, como a França e Portugal, se viram diretamente envolvidos nas guerras coloniais, e do lado opressor. Os Estados Unidos se envolveram direta ou indiretamente na repressão a movimentos de libertação nacional e/ou socialista na América Latina, na Ásia, na África e no Oriente Médio, além de manterem uma vigilância constante sobre no cenário europeu, ajudando movimentos de extrema direita como o da ditadura grega, e a longa duração dos regimes franquista e salazarista, além de colaborar para impedir movimentos esquerdistas em outros países, como na Itália. Aqui, ali e acolá tiveram o apoio de aliados valiosos, como a Austrália e o Reino Unido, enquanto este liquidava o que restava de seu Império onde o sol jamais se punha e abria espaço para o estabelecimento de alguns santuários fiscais no Caribe.

Necessário é reconhecer que estas águas eram mesmo tempestuosas, pois por cima da Cortina de Ferro espiava sempre o perigo comunista, através da União Soviética e do Pacto de Varsóvia, além dele crescer desmesuradamente na China Continental e arredores e perigosamente no quintal norte-americano, em Cuba. Por isto mesmo o democrático império norte-americano se viu na circunstância sempre presente de apoiar, estimular e financiar ditaduras sangrentas pelo mundo afora, chegando a treinar seus agentes de baixo, médio e alto escalão em técnicas de tortura, assassinato e desaparecimento de cadáveres inconvenientes. Não que do outro lado da Cortina de Ferro se vivesse num paraíso dos direitos humanos: o inferno era semelhante, e vez por outra os tanques soviéticos faziam sua aparição para sufocar movimentos perigosamente libertários, como em Berlim Oriental em 1953, na Hungria em 1956 e na Checoslováquia em 1968.

Na Europa, a Pax Americana mantinha seu braço armado, a OTAN, sempre vigilante: desde há muito o Velho Mundo se transformou num protetorado militar de Washington com alguns laivos de autonomia. Ao contrário de atenuar, a dissolução da União Soviética e a derrocada do mundo comunista aumentaram a intensidade destes laços protetores. A paz prometida, a seguir, pela progressiva fundação da União Europeia foi sempre acompanhada pelo traço guerreiro da presença protetora da OTAN, manifesta, por exemplo, nos severos bombardeios durante a Guerra nos Balcãs, ajudando a destruir de vez o que restava da agonizante e não-alinhada Iugoslávia.

E a OTAN foi estendendo sua ação, chegando ao norte da África e ao Afeganistão, além dos Estados Unidos estenderem sua intervenção ao Iraque. Embora com algumas dissidências, em geral os partidos social-democratas europeus se submeteram à Pax Americana e à OTAN. Um pouco mais relutantes, e também com exceções, os Partidos Verdes foram se alinhando no mesmo brete. Simultaneamente o mundo social-democrata europeu aderiu de vez ao neo-liberalismo triunfante e a seus planos de austeridade social e desregramento financeiro que se espalharam pelo mundo, notadamente depois da militância Reagan-Tatcher e da cruzada anti-comunista de João Paulo II.

O nascimento do chamado “terrorismo islâmico” só veio reforçar as tendências beligerantes que cresciam no “Ocidente”, que foi se transformando num véu de limites nebulosos e incertos por falta de um inimigo concreto e mais próximo. Ainda que este “terrorismo islâmico”, ajudado pelos Estados Unidos quando os movimentos que lhe deram origem combatiam a finada União Soviética, fosse o inimigo perfeito, oculto nas sombras, com seu potencial de intervenções tentaculares e imprevisíveis em toda parte.

Mas o inimigo concreto e mais próximo logo renasceu das cinzas da antiga União Soviética: a Rússia sob a liderança de Vladimir Putin. Houve uma simbiose: Putin, ele mesmo, ex-chefe da KGB, também renasceu das cinzas da finada URSS, retrabalhadas pelo pró-Ocidente Boris Yeltsin, que acabou por afundar o antigo conglomerado na pior crise econômica, social e humanitária de sua história recente, com proporções dramáticas: a queda, inclusive, da expectativa média de vida da sua população.

Assentado sobre um dos dois maiores arsenais nucleares do mundo, sobre todo o cabedal de conhecimento amealhado pela KGB, apoiado nos quadros remanescentes dela, que se transformou na FSB, Federal Sluzhba Bezopasnosti, e em métodos de atuação bastante “crus”, se comparados aos “bem cozidos”, praticados pelas agências ocidentais, como a CIA e os britânicos MI5 e MI6, além de outras agências não menos brutais, Vladimir Putin se dispôs a liderar o restabelecimento da agora Federação Russa como uma potência mundial.

Tornou-se o inimigo palpável (o ’terrorismo islâmico” era eficaz neste papel, mas impalpável) que organismos como a OTAN e o também impalpável “Estado Profundo” dos EUA precisavam para se manter vivos e em expansão. “Estado Profundo”: o conglomerado de inteligência, serviço secreto, think-tanks privados, National Security Agency mais suas empresas de terceirização que, junto com antigo complexo industrial-militar, passou a ditar os termos da política externa norte-americana para democratas e republicanos.

O cerco contra a Rússia veio substituir o cerco contra a antiga União Soviética. A islamofobia, com seu conteúdo fóbico veladamente racista e sua fobia cultural, parecia uma prima do sempre-vivo antissemitismo tradicional e por isso pouco atraente para social-democratas, verdes e liberais, mobilizando mais e melhor o extremismo de direita em defesa da Europa “cristã”. Mas o inimigo russo mobilizava a antiga russofobia, revivia a sovietofobia e estava ao alcance da mão, irmanando-se à sino ou chinofobia, alimentada também pela dependência econômica crescente do mundo inteiro em relação aos ex-comunistas chineses, hoje capitalistas avançados a ponto de fazer inveja a Wall Street.

Além disto mobilizava também o mesmo DNA soturno da “Europa cristã”, pois Vladimir Putin, mais que o enigmático mundo chinês, tornou-se a caricatura perfeita do demônio ameaçador, com seu estilo que mistura a cara de pau de um jogador de pôquer, a sutileza agressiva de um enxadrista e a grossura manifesta de um lutador de vale-tudo. Qualquer dúvida, consultem o Lúcifer de O paraíso perdido, de John Milton, Livro II. Fantasiado com valores iluministas e iluminados, o Velho Mundo medievo renasceu de sua velhice: a guerra na Ucrânia assumiu os ares de uma luta de Davi contra Golias, e de uma Cruzada contra o blásfemo.

A condenável invasão da Ucrânia foi a cereja deste bolo confeitado que deu nova vida à Guerra Fria que ameaçava mofar-se dentro do armário. Fria? Abriu as portas para uma Guerra Quente por parte da OTAN, dos Estados Unidos e do Reino Unido, mas terceirizada: estes três contendores mostram-se dispostos a lutar até o penúltimo (não o último) ucraniano.

Penúltimo: porque o principal desta guerra é o enfraquecimento da Rússia de Vladimir Putin. Se a Ucrânia for completamente destruída, aquele objetivo naufraga. Putin, para defender-se, pôs-se debaixo da asa chinesa. Não padece do isolamento que o Ocidente lhe desejava, mas levou uma tunda na votação da ONU que condenou a invasão, tanto devido aos 140 e tantos votos contrários a ela, quanto, e sobretudo, pelas quase quarenta abstenções e ausências de tradicionais aliados, como a própria China.

Como no caso das armas de destruição em massa (inexistentes) em 2003, justificando a invasão do Iraque, a parte domesticada da mídia mainstream do Ocidente, que é maioria, acorreu célere, adotando as balizas de seu parti-pris: demonização da Rússia, com a linha de denunciar apenas os supostos (ainda carecem de comprovação, na maioria dos casos) crimes de guerra por parte das forças russas; fazer vista grossa sobre os possíveis (também carecem de comprovação, na maioria dos casos) crimes de guerra das forças ucranianas; cobrir com o véu do esquecimento ou da minimização os vínculos de batalhões como o Azov e o Aidar, com símbolos e práticas nazistas, bem como os crimes cometidos pelos neonazis durante e depois do golpe de 2014 contra esquerdistas e os russofalantes da região do Donbass; descrever desde sempre a ação russa como derrotada; enaltecer o “heroísmo” do ponta-de-lança do Ocidente na empreitada, o comandante Zelensky e seu cuidadoso jogo-de-cena visual, como arma eficaz e necessária contra o demônio do outro lado da fronteira. Além disto, eximir a OTAN e os Estados Unidos de qualquer responsabilidade pela formação do clima favorável ao conflito armado e bater na tecla da necessidade de fornecer armas e mais armas para o governo de Kiev.

A guerra quente está num impasse, com a Rússia estabelecendo seu predomínio sobre a região fronteiriça do Donbass e da Crimeia, o que compreende o controle sobre os portos ucranianos; a guerra híbrida na mídia vai de vento em popa, conquistando corações e mentes para a nova beligerância que galopa de crina solta sobre o continente europeu. Muita gente que até um ano atrás ia para manifestações cantando Bella Ciao ou lembrando de Where have all the flowers gone cobriu olhos com as cores da bandeira ucraniana, entupiu seus ouvidos com a pregação belicosa de Volodymyr Zelensky e encheu sua boca com a “necessidade” de enviar armas e mais armas para Kiev

A paz e a diplomacia perderam ações neste mercado de almas, enquanto o investimento no espírito da guerra capitalizou ganhos e dividendos extraordinários. Críticas ao comportamento da OTAN, dos Estados Unidos e de seus aliados, como o encarniçado Reino Unido ou os veementes governos do Báltico e o abertamente autoritário da Polônia, passaram a ser vistas como “linhas auxiliares do jogo sujo de Putin”. No mínimo o que se ouve é “não é hora de fazê-las”, se não se sente o cutucar do dedo duro apontado para o “traidor”.

Em resumo, a bandeira da paz está em situação crepuscular, enquanto a aurora de dedos cor-de-rosa faz a da guerra levantar-se no horizonte. Há manifestações pela paz, sim, e pelo fim desta guerra macabra que está destruindo a Ucrânia, com a suspensão mútua da beligerância. Na Alemanha foi publicado um manifesto corajoso de 400 intelectuais que vai nesta direção; artigos e declarações valentes têm saído por parte de tradicionais pacifistas e críticos de todos os imperialismos. Seus autores e signatários vem sendo estigmatizados como “traidores” ou no mínimo “ingênuos”, lembrando os velhos tempos em que criticar o imperialismo norte-americano implicava o rótulo de “inocente útil”. Na Europa recrudesceu um “eurocentrismo híbrido”, em defesa de seus “valores ameaçados”. Híbrido? Sim, porque tem entre seus alicerces o assentar-se sobre a militar pax norte-americana, recheada de seus soldados no continente europeu.

De longe, mas com um olhar muito próximo, a impassível esfinge chinesa a tudo assiste. Afinal, até o momento, é a única vitoriosa neste conflito que esfarrapou a bandeira da paz.

PS: Por favor, ninguém venha me dizer que estou defendendo a invasão. Jogador de pôquer, enxadrista, ou karatê-kid, ou ainda tudo junto, Vladimir Putin tinha razão em queixar-se da expansão provocativa da OTAN; perdeu-a, ao responder a provocação com a investida militar contra a Ucrânia.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

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