segunda-feira, 27 de junho de 2022

O Estado, as caravelas e a re-existência Kaiowá e Guarani


por Kuna Aranduhá Kaiowá [Jaqueline Gonçalves Porto] e Danielle Tega

Com este texto, somamo-nos no esforço de denunciar a violência e a repressão do Estado e de seus associados, que marginalizam, devastam e destroem a vida, nossos corpos e territórios

Desaparecimento, tortura, assassinato. Palavras que parecem saídas de testemunhos sobre a ditadura militar ganham cada vez mais força no Brasil governado por Bolsonaro, que já manifestava seu caráter fascista antes mesmo de ser eleito presidente. Lembremos que, em 2016, quando, ainda como deputado federal, votou no processo de impeachment em “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Roussef”. Ustra, o torturador, autor do “livro de cabeceira” do atual chefe do executivo.

O trágico desfecho nas buscas pelo indigenista Bruno Araújo Pereira e pelo jornalista Dom Phillips é mais um de tantos casos que reacendem nossa demanda por justiça. Recebeu grande repercussão midiática, inclusive internacional, sobretudo pelo fato de o jornalista ser inglês. “Queremos justiça”, clamamos diante das cotidianas violências do Estado e de seus comparsas criminosos. Há quanto tempo Genivaldo de Jesus foi torturado e assassinado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF)? Quando houve a chacina na Vila Cruzeiro, comandada pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope) e pela mesma PRF? E o massacre de Jacarezinho? Marielle Franco e Anderson Gomes, quem mandou matar e por qual motivo?

Com este texto, somamo-nos no esforço de denunciar a violência e a repressão do Estado e de seus associados, que marginalizam, devastam e destroem a vida, nossos corpos e territórios.

Escrevemos do chamado cone sul de Mato Grosso do Sul, terra de luta e resistência dos povos Kaiowá e Guarani. Aqui, os territórios indígenas foram (e continuam sendo) invadidos pelo Estado “adjetivado” que, longe de mera abstração, reverbera sua concretude racista-colonial e hetero-cis-patriarcal em corpos explorados, mutilados, estuprados, executados.

Antes, o arrendamento de grandes extensões de terra à Companhia Mate Laranjeira. Depois, a pecuária. Em seguida, a monocultura da cana-de-açúcar com a agroindústria sucroalcooleira. Agora, a produção de commodities como soja e milho, que dissemina sementes transgênicas e agrotóxicos. “O agro é pop”: expropria a população indígena de suas terras, desmata e inviabiliza atividades tradicionais, ataca os povos e seus territórios, empreende até mesmo a reversão de terras já homologadas.

Nessa região, encontra-se a Reserva Indígena de Dourados (RID), a mais populosa do país, formada pelas aldeias Bororó e Jaguapiru. Visitando essa cidade de Dourados em fevereiro de 2018, Bolsonaro prometia que, se eleito, não teria “mais um centímetro para terra indígena”. Assim, diferentes experiências históricas se reatualizam. Durante as ditaduras militares latino-americanas, a “Operação Condor”, uma aliança entre Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia, com suporte dos EUA, brindava os militares desses países com o livre trânsito nas fronteiras para perseguir, torturar e matar militantes que lhes faziam oposição. Hoje, os corpos indígenas são perseguidos, violados, assassinados, “desaparecidos” em diferentes lados das fronteiras. Como ocorreu com o jovem Alex Vasques Ricarte Lopes, de 18 anos, assassinado em 21 de maio por fazendeiros enquanto buscava lenha nas proximidades da Reserva Indígena Taquapiry. Alvejado com seis tiros, seu corpo foi deixado no lado paraguaio da fronteira.

Nessas trincheiras, circulam mais que corpos. A união entre mercado financeiro e agronegócio, dois setores que dão sustentação ao atual governo, também impõe suas forças: o “império agropecuário do Itaú Unibanco tem face explícita no Paraguai”, como demonstrou a série de reportagens produzida pelo observatório “De olho nos ruralistas”. Difícil ignorar que essa cadeia produtiva internacional se alimenta do sangue indígena.

Dentre as formas de resistência adotadas pelo povo Kaiowá e Guarani estão as “retomadas”, nas quais são feitos acampamentos para reocupar suas terras ancestrais. As violências que recaem a quem se encontra nessas áreas são constantes e brutais, como comprova o relatório feito pela Kuñangue Aty Guasu [Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani] e pela OKA [Observatório da Kuñangue Aty Guasu], publicado dia 8 de junho de 2022, após uma visita feita à retomada Guapo’y Mirin Tujury no dia anterior.

O documento informa que a retomada, localizada próxima à região conhecida como Sertãozinho da Reserva Indígena de Amambai, tinha como objetivo recuperar parcela do território originário. No entanto, a população foi violentamente expulsa do local e recuada para uma área limítrofe à reserva. Foram recolhidos projéteis e bombas pela comunidade, incluindo balas de fuzil sem registro nem data de validade, ou, ainda, balas riscadas e vencidas – o que demonstraria, de acordo com o relatório, uma ação combinada entre policiais e fazendeiros locais.

No dia seguinte, como detalha o material, “duas meninas seriam sequestradas, estupradas e desaparecidas […]. A comunidade entrevistada relata [ter escutado] gritos repetitivos com voz de menina implorando por ‘socorro!’ e ‘mamãe!’, provenientes do galpão dos fazendeiros e jagunços. Atônitos e sem saber como reagir, supondo que aquilo poderia se tratar de uma armadilha para levar a comunidade de madrugada, no escuro, até o local para possivelmente os atacar e matar, o relato comunitário expressou enorme peso e tensão com a permanência das ameaças. Três dias depois do desaparecimento das meninas, uma delas foi encontrada com vida em região de mata relativamente distante da retomada. A outra menina não apareceu até o momento.”

A esses fragmentos avassaladores, outros exemplos podem ser somados. Em outro relatório, essas duas organizações já haviam denunciado a perseguição aos espaços sagrados, aos ñanderus e às ñandesys, que são anciões, anciãs e rezadeiras das comunidades Kaiowá e Guarani. Em levantamento inédito, o documento aponta que, desde 2014, 17 casas de reza foram queimadas – 12 delas a partir de 2019. Os casos de intolerância religiosa e de racismo religioso são resultados de métodos, ideologias, relações políticas e sociais, “características mais marcantes das formas de violência evangelizadora perpetradas pela tríade Estado-Igreja-Empresa”.

Assim, não parece mera coincidência que, em meio às investigações sobre a morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, Bolsonaro tenha visitado a capital amazonense para participar de “eventos religiosos”. A colonização se reatualiza também com essa nova “caça às bruxas” da religião dos karaí [não indígenas brancos], que desarticula laços comunitários e fragmenta a luta.

Se cada período histórico possui estreita relação com as práticas missionárias no interior das aldeias, “a catequização agora segue com regras e doutrinas mais rigorosas ainda, como as que são vindas da pentecostal ‘Deus é amor’, junto aos discursos do governo brasileiro que segue contribuindo para o divisionismo entre povos indígenas – processo expresso na máxima ‘Deus acima de tudo, Brasil acima de todos’”.

Vale dizer que a Kuñangue Aty Guasu já havia difundido uma série de violências contra meninas, jovens, mulheres e ñandesys, no relatório “Corpos silenciados, vozes presentes”. Lançado em novembro de 2020, o material foi a primeira sistematização coletiva do “mapa da violência”, realizado somente por mulheres Kaiowá e Guarani.

O relatório denuncia diferentes violências “internas”, como espancamentos, torturas psicológicas, violência física e violência moral. Ressalta, contudo, a violação de direitos dos povos indígenas pelo Estado brasileiro, enfatizando a não demarcação de terras indígenas e a destruição que a tese do Marco Temporal, em andamento no Congresso Nacional, causaria às populações. Como assegura a ñandesy dona Adelaide, da aldeia Limão Verde, na cidade de Amambai: “Não recuaremos nem um palmo de nossas conquistas, não estamos falando de favor, estamos exigindo a garantia de nossos direitos reconhecidos na Constituição Federal de 1988. Temos água e eles o veneno, temos a terra e eles o dinheiro, viemos para preservar e eles para destruir.”

“Terras e almas indígenas sempre estiveram em disputa no Brasil”, diz o antropólogo Ronaldo de Almeida. Corpos-territórios de mulheres indígenas sobretudo, poderíamos acrescentar. Terras, almas, corpos, territórios invadidos por caravelas, pelos arrendamentos, pelo agro, pelas igrejas, pelo Estado.

Neste cenário de devastação, que tenhamos vida e coragem para exigir justiça a Bruno e Dom, como também aos povos em luta e resistência. Como reforçam as mulheres Kaiowá e Guarani em suas falas e nos finais de seus documentos, “enquanto houver o som do Mbaraka e do Takuapu haverá luta!”.

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