sexta-feira, 24 de junho de 2022

PAULA REGO (1935-2022) - B. a vomitar a pátria


por Gilberto Carvalho de Oliveira

Numa época em que certos segmentos da atual extrema-direita fazem despertar o espectro do salazarismo – crentes na possibilidade de um Estado homogeneizado, avesso à diversidade, unificado sob uma bandeira moral e religiosa conservadora, sustentada em uma organização familiar convencional, hierárquica e forte, onde todos obedecem ao governante máximo, visto como pai e salvador da nação –, a crítica aos projetos de poder patriarcais, chauvinistas, racistas e sexistas e à mistura de pietismo religioso com política reveste-se de crucial importância

I

No dia 8 de junho, aos 87 anos, Paula Rego morreu. A artista portuguesa – radicada na Inglaterra desde os anos 1970, onde se casou e assumiu sua segunda nacionalidade – pintou o que dava “rosto ao medo”, o que lhe “doía” e “arranhava”.[1] Produziu, assim, uma obra potente, radical, contestadora, profundamente recheada de críticas ao patriarcado, ao abuso de poder, ao puritanismo religioso e moral, à opressão social e política, ao fascismo, à guerra, ao colonialismo, à hipocrisia, às injustiças contra as mulheres e a um certo nacionalismo sexista contra o qual se insurgiu desde a sua juventude. Em 1960, quando tinha apenas 24 anos, a artista ousou pintar o ditador português, António Salazar, a expelir pela boca, em golfadas, nada mais nada menos do que a pátria.

“Salazar a vomitar a pátria” é uma pintura abstrata, ainda que se possam perceber no quadro algumas formas orgânicas. O que se vê é mais ou menos isso: uma figura curvada no canto inferior esquerdo a verter um jato de bílis amarelo-esverdeada por um orifício que poderia ser uma boca; no centro, uma espécie de fruta amarela, que sugere uma vagina, com um testículo logo abaixo, cheio de pelos; no outro canto da tela uma forma animalesca, indefinida, pintada em tons fortes de amarelo, vermelho e verde; o fundo é preenchido em azul marinho. A composição, em seu conjunto, parece grotesca, incômoda, desagradável, em grande medida em razão das formas caricatas e das pinceladas brutas de tinta deixadas na tela. A repugnância ao fascismo surge, portanto, dessa combinação entre os elementos pictóricos e o incômodo sensorial que eles despertam, potencializada pelo título descritivo dado à obra, sem o qual, talvez, o quadro não tivesse alcançado a dimensão política que até hoje guarda.

Nessa tela, comenta Maria Manuel Lisboa, as imagens da propaganda salazarista – centradas na trilogia “Deus, Pátria, Família” e nos decretos oficiais que estabeleceram que, sob o Estado Novo, a “domesticidade, a castidade, a obediência e a submissão ao marido como chefe oficial da família, a Salazar como Chefe de Estado e a Deus como Pai Universal formavam o tripé da educação nacional”[2] – são radicalmente subvertidas por Paula Rego. Ao representar o ditador como um “espectro ganancioso, vampiresco, quase canibal, vomitando a pátria que ele presumidamente havia acabado de banquetear”,[3] Paula Rego não disfarça o sentimento de repulsa ao regime salazarista – e ao nacionalismo sexista que ela sempre buscará denunciar.

Quando foi pintado, esse quadro teve sua exposição recusada em Londres, onde Paula Rego morava – havia “muitos falos” na pintura, alegou Victor Musgrave, proprietário da Gallery One, que admirava o trabalho da jovem artista, mas considerou o quadro demasiadamente radical.[4] A tela só viria a ser mostrada publicamente mais de dez anos depois, em 1972, curiosamente em Portugal, ainda durante o Estado Novo, que só cairia dois anos depois com a chamada Revolução dos Cravos. Para burlar a censura, o quadro foi exibido na Galeria S. Mamede, em Lisboa, com o título em inglês, apenas com a inicial do nome de Salazar: “S. Vomiting the Homeland” – e assim passou a ser geralmente referido em português: “S. a vomitar a pátria”.

II

A obra de Paula Rego passou por várias fases. Das abstrações e colagens experimentais de cunho explicitamente antifascista dos anos 1960, suas composições assumiram características figurativas nas representações de cenas tiradas de obras literárias, como “Mulher-Cão”, “Crime do Padre Amaro” ou “Branca de Neve”, até as pinturas da maturidade, que colocaram a pintora entre as principais referências do realismo figurativo inglês, ao lado de pintores como Francis Bacon ou Lucian Freud.

Ao longo dessa trajetória, suas pinturas “conduzem-nos em uma viagem de vingança e autoafirmação”, afirma Elena Crippa na abertura do catálogo da retrospectiva da artista na Tate Britain, em 2021, “à medida que moças tomam o poder, caudas de cães são cortadas, meninas pintam homens mais velhos, criadas pobres matam suas patroas ricas, e meninas vítimas de abusos são protegidas por um anjo que por elas faz justiça”.[5] Há muito sofrimento representado nessas obras, principalmente relacionado à invisibilidade, ao silenciamento e às injustiças contra as mulheres, mas esse sofrimento não é passivo. É um sofrimento que se traduz em imagens de forma revoltada, vingativa, provocadora, subversiva.

A série sobre o aborto, pintada por Paula Rego em reação a um evento político específico em Portugal – a rejeição, impulsionada por influência da aliança entre igreja e Estado, à descriminalização do aborto no referendo realizado em 1998 –, mostra de forma emblemática essa tensão entre sofrimento e revolta. As mulheres são pintadas de forma realista, em posições que indicam momentos que antecedem ou sucedem a um aborto, em camas ou cadeiras improvisadas, com os utensílios usados na operação. Suas feições expressam algum tipo de dor. Mas o que se destaca em muitas dessas pinturas são os olhares desafiadores das figuras femininas, em alguns casos cheios de ira, dirigidos contra alguém à sua frente, que não se vê na tela, mas que se supõe ser o seu violador, a pessoa que faz o aborto ou o próprio espectador da obra que, confrontado pela crueza da imagem e desafiado por seus próprios princípios morais e religiosos ou pela omissão política, não têm como fugir do sentimento de responsabilidade e culpa pela situação ali representada.

Pintando com palavras uma cena grotesca que se poderia ver em seus quadros, Paula Rego, que assume ter realizado inúmeros abortos em sua juventude, diz o que pensa sobre essa questão em uma de suas entrevistas:

“O aborto era uma coisa que existia muito, todos os dias, várias vezes ao dia. Era proibido, mas muito fácil de arranjar. Em Inglaterra também era proibido, mas legalizaram muito mais cedo. Em Portugal, não. Uma coisa de uma hipocrisia total. As mulheres sofriam e morriam. Atiravam os corpos ao mar e elas davam à praia inchadas como vacas.”[6]

Há nas palavras de Paula Rego, que se traduzem em pinceladas na série sobre o aborto, uma dor elaborada como revolta que confronta, livre de sentimentos de pecado, o aparato repressivo da moral patriarcal e religiosa, rejeitando a sujeição feminina. Essa série de pinturas teve uma repercussão estrondosa durante a primeira metade dos anos 2000, sendo amplamente reproduzida nos meios de comunicação portugueses, o que contribuiu de forma significativa para alimentar o debate público que levou, finalmente, em 2007, à descriminalização do aborto em Portugal.

III

A pintura de Paula Rego foi construída, assim, como uma crítica às estruturas e culturas de dominação. Ainda que se notem fases distintas em sua produção artística, sua obra sempre se manteve ancorada nesse compromisso, expondo e desconstruindo a moralidade hipócrita, o nacionalismo sexista e os mecanismos de supressão do desejo que fazem parte de todo projeto autoritário.

Numa época em que certos segmentos da atual extrema-direita fazem despertar o espectro do salazarismo[7] – crentes na possibilidade de um Estado homogeneizado, avesso à diversidade, unificado sob uma bandeira moral e religiosa conservadora, sustentada em uma organização familiar convencional, hierárquica e forte, onde todos obedecem ao governante máximo, visto como pai e salvador da nação –, a crítica aos projetos de poder patriarcais, chauvinistas, racistas e sexistas e à mistura de pietismo religioso com política reveste-se de crucial importância.

Não há como ignorar que uma onda conservadora tem levado a uma sobreposição entre populismo, autoritarismo de direita e novas formas de fascismo,[8] que se tem proliferado e amplificado em diversas partes do mundo, tentando legitimar projetos políticos que defendem o estabelecimento de Estados etnicamente homogeneizados, a reversão de conquistas por igualdade e a supressão de direitos já conquistados pelas mulheres, por minorias raciais e de gênero e por outros grupos sociais marginalizados.

Nesse mundo que parece andar para trás, a obra de Paula Rego torna-se especialmente atual e necessária, colocando-nos diante de uma experiência estética transgressora, que nos desafia a enfrentar o grotesco, a brutalidade, a violência estrutural e simbólica que legitima e materializa várias formas de injustiças e opressão.

IV

Agora mesmo, neste país tropical, enquanto escrevo este pequeno obituário de Paula Rego, ligo a televisão e lá está B., em suas práticas discursivas quase diárias de violências simbólicas, tentando legitimar violências estruturais, que não raras vezes ecoam entre agentes do Estado e segmentos de sua militância como um salvo conduto para episódios de violência física e direta. Dou um rápido mergulho em algumas elocubrações teóricas: esse triângulo de violência simbólica-estrutural-direta faz parte de todo projeto autoritário, pois serve aos propósitos de disciplinamento, controle e dominação.

Olho novamente para a televisão e B. permanece lá, sob os aplausos de sua claque, a vomitar a pátria. Há nessa cena, que se repete com frequência, uma aura de perversidade, brutalidade e hipocrisia que, disfarçada em bons costumes, em ideais ascéticos, em moralidades e religiosidades seletivas, rouba de muitas flores a oportunidade de um dia se tornarem frutos… B. continua a vomitar a pátria, enquanto peço a Paula Rego, em meus pensamentos, que me autorize a parafrasear o título do seu quadro. Tenho certeza que ela consente, pois o que está a acontecer por aqui nos dói e arranha – e nessa matéria, ela certamente nos é solidária.


Gilberto Carvalho de Oliveira é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra e professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ

[1] Conforme declarou em entrevista concedida a Anabela Mota Ribeiro, inserida no livro: Paula Rego por Paula Rego. Lisboa: Ed. Temas e Debates, 2016.

[2] Lisboa, Maria Manuel. Paula Rego’s Map of Memory: National and Sexual Politics. London: Routledge, 2003, p. 11.

[3] Ibid., p. 24.

[4] Citado por: Alfaro, Catarina; Oliveira, Leonor. Order and Chaos. Paula Rego, Victor Willing, Eduardo Batarda, Bartolomeu Cid dos Santos. Cascais: Fundação D. Luís I – Casa das Histórias-Paula Rego, 2014.

[5] Crippa, Elena. Paula Rego. London: Tate Publishing, 2021.

[6] Ribeiro, Anabela Mota. Paula Rego por Paula Rego. Lisboa: Ed. Temas e Debates, 2016.

[7] Apesar do seu conservadorismo-liberal, é Francis Fukuyama que, recentemente, tem chamado a atenção para o renascimento do salazarismo como modelo para certos intelectuais da extrema-direita nos EUA (ver: Liberalismo e seus Descontentes. Lisboa: Ed. Dom Quixote, 2022, p. 138; “Salazar é um modelo para alguns conservadores nos EUA”. Entrevista concedida por Fukuyama ao jornal português “Público”, em 4 de Junho de 2022 (https://www.publico.pt/2022/06/04/mundo/entrevista/francis-fukuyama-salazar-modelo-conservadores-eua-2008693)

[8] Mason, Paul. Como Travar o Fascismo – História, Ideologia, Resistência. Lisboa: Objectiva, 2022.

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