Daniel Vaz de Carvalho
2 - O confronto político
Afirmar que a guerra só termina quando a Rússia for derrotada significa que não há lugar para a diplomacia. Contudo, deveriam explicar como pensam vencer um país com os meios militares convencionais, espaciais e nucleares como a Rússia. Se os políticos da NATO e da UE não explicam como vão derrotar a Rússia militarmente, a derrota política está longe de acontecer, ao contrário do que anunciavam. O apoio a Putin na Rússia excede 80%. Das 195 nações da ONU, 165, incluindo Índia e China, recusaram-se a aderir a sanções contra a Rússia, deixando os EUA, não a Rússia, relativamente isolados do resto do mundo.
A paz mundial está seriamente ameaçada, induzida na mente das pessoas como facto consumado. O confronto está de novo instituído: na Europa a NATO declara que a Rússia é uma ameaça à paz e estabilidade; no Oriente a NATO declara que a China é uma ameaça à sua segurança. Porém, à Rússia, considera ter sido forçada a ações militares para defender a sua segurança, o seu povo e o do Donbass, durante oito anos vítima de agressão pelo regime de Kiev e seus neonazis, com a proteção total do Ocidente em armas e conselheiros militares. O alargamento da NATO à Suécia e Finlândia representa não o reforço da segurança, mas coloca a Europa no centro do agravamento da situação internacional.
O discurso de Putin no Fórum Económico de S. Petersburgo perante as 90 nações representadas, formalizou a criação de um mundo multipolar, centrado na aliança entre a Rússia, China e aliados, face aos EUA/NATO e aliados. Ou seja, a não aceitação da supremacia ocidental e das regras ditadas pelos EUA. Significa uma alteração geoestratégica global, estruturada num poder territorial, demográfico, económico e militar, superior ao do ocidente. De facto, a "comunidade internacional" que o ocidente assume, é algo do passado: o G7 representa 770 milhões de pessoas, os BRICS 3 200 milhões.
A China chama às relações com a Rússia de "novo modelo" para todo o mundo. A era do mundo unipolar acabou. Neste contexto confrontacional, o novo bloco resultante da aliança entre a Rússia e a China procura fortalecer-se e autonomizar-se. Irão, Argentina, Egito, Indonésia, Cazaquistão, Nigéria, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Senegal e Tailândia foram adicionados aos cinco membros do BRICS, enquanto se procede à criação de uma nova moeda de reserva global, independente do dólar.
A Rússia e a China, estão assim a definir um mundo não dominado pelos EUA, fundamentado na Carta da ONU. Putin foi aliás muito cuidadoso ao vincular a operação militar da Rússia sob o artigo 51 da Carta das Nações Unidas que rege a autodefesa. Que as coisas mudaram, lembra o ministro dos Negócios Estrangeiros indiano aos europeus, ao dizer que "os seus problemas não são os problemas do mundo inteiro". No Mar Cáspio, Rússia, Irão, Cazaquistão, Azerbaijão e Turcomenistão concordaram que forças militares de outros Estados não podem aí entrar. (Intel Slava Z – Telegram em 3/6 e 29/6) É de facto um "grande recomeço", mas não da forma que o ocidente tinha delineado...
Esta situação foi criada pela arrogância do ocidente ao desprezar os interesses de outros Estados. Na visão de apagamento da História recente, a NATO não assume responsabilidade por nenhuma das decisões que tomou, como a expansão para Leste, as misérias criadas pela "terapia de choque" neoliberal na Rússia, por motivar o separatismo da Chechénia, sabotar os acordos de Minsk, fazer um golpe de Estado na Ucrânia contra a ligação à Rússia, fomentar e financiar grupos nazis tendo como referência o SS ucraniano Stepan Bandera, responsável pela morte de mais de um milhão de judeus soviéticos, levado à categoria de "herói nacional da Ucrânia". Como não se responsabilizam pelas 14 000 mortes dos ataques à RPL e à RPD após 2014.
Para a NATO a Rússia (e a China) são uma ameaça a espaços que considera seus, como se todo o mundo tivesse de lhe pertencer e subordinar-se à sua esfera de interesses, fazendo tábua rasa de que desde o século IX até 1991, no todo ou em parte, a Ucrânia inseria-se na Rússia/URSS.
A lógica da NATO, de que se um país desejar pertencer à Aliança trata-se de uma decisão soberana e ninguém tem o direito de interferir, não passa de um sofisma. O princípio da OSCE é que nenhum país tem o direito de aumentar a sua segurança, à custa da segurança de outros. Mas para os EUA/NATO a sua zona de segurança é o mundo inteiro! Colocarem bases da NATO nas fronteiras da Rússia é medida de defesa, a Rússia fazer manobras e deslocar tropas no seu território era agressão.
Os filósofos do século XVIII, consideraram que um princípio só é moral se a sua aplicação puder ser universal – não há que confundir hábitos com ética... Se aquele princípio de soberania da NATO é moralmente válido, então os EUA teriam de aceitar que Cuba, Venezuela, Bolívia, Nicarágua ou México pudessem por decisão soberana instalar no seu território bases militares russas ou chinesas. Será o caso?!
A fachada de unanimidade da NATO e UE contra a Rússia e da China, não disfarçam as contradições resultantes de objetivos tão ilusórios quanto perigosos. Para além das palavras de apoio a Zelensky há sinais tanto nos EUA como na UE que face às realidades o desvario tem tendência a acalmar-se. Macron disse que a Ucrânia deve negociar com a Rússia decidindo a possibilidade de concessões territoriais. No mesmo sentido se pronunciou o secretário de Estado Blinken. (Intel Slava Z – Telegram em 15/6) Henry Kissinger no discurso em Davos disse que Kiev deve negociar com a Rússia nos próximos dois meses.
As declarações contraditórias variam entre o total apoio à Ucrânia e negociações com concessões territoriais da Ucrânia. Mas isto é uma questão ultrapassada: para a Rússia as cedências já foram e estão a ser feitas. A posição da Rússia é de indiferença: "Quando se ouvem vozes do Ocidente sobre a necessidade de negociações, isso é apenas um disfarce para organizar uma pausa operacional temporária, para que as Forças Armadas da Ucrânia possam respirar e a NATO proceda ao rearmamento intensivo da Ucrânia para retomarem as hostilidades. A Rússia não ganhará nada com negociações que não resolvam fundamentalmente o problema ucraniano". (Intel Slava Z – Telegram em 15/6)
O nervosismo com que está a ser encarada esta guerra no ocidente reflete a forma como a hegemonia dos EUA foi posta em causa. A Rússia bloqueou os objetivos dos EUA na Ucrânia, como já o tinha feito na Síria, porém, nos EUA a oposição à guerra parece ser mais forte que na UE.
O New York Times considerava que o objetivo delineado na Ucrânia não pode ser alcançado, e que "não é do melhor interesse da América mergulhar numa guerra de total esforço com a Rússia, mesmo que negociar a paz possa exigir aos ucranianos tomarem decisões difíceis". "Uma vitória decisiva para a Ucrânia na qual retome os territórios que a Rússia retomou desde 2014 não é um objetivo realista, a Rússia permanece muito forte..." "Os Estados Unidos e a NATO estão profundamente envolvidos, militar e economicamente. Expectativas irrealistas podem arrastá-los ainda mais para uma guerra cara e demorada".
Na Câmara de Representantes 57 republicanos e no Senado 11, votaram contra o recente pacote de armamento e "auxílio à Ucrânia". A opinião pública dos EUA permanece a favor do envolvimento na Ucrânia, mas diminuiu de março a maio de 60% para 45%. À medida que a estagflação se for instalando o descontentamento crescerá e um desastre eleitoral poderá acontecer em 2022 para o Partido Democrata [NR] e em 2024 para Biden.
Na publicação The American Conservative, escrevia o coronel aposentado Douglas Macgregor, um veterano de combate e autor de vários livros: “Os media ocidentais fizeram um grande esforço para dar à defesa ucraniana a aparência de ser muito mais forte do que realmente era. Observadores notaram que os mesmos videoclipes de ataques a tanques russos foram mostrados repetidamente. Os contra-ataques locais foram relatados como se fossem manobras operacionais. Os erros da Rússia foram exagerados ao extremo. As perdas russas e a verdadeira extensão das perdas da Ucrânia foram distorcidas, fabricadas ou simplesmente ignoradas".
Donald Gross é advogado em Washington, tendo ocupado na Casa Branca elevadas funções, escreve designadamente: "A guerra Ucrânia-Rússia dura há mais de cem dias. Agora é um momento crítico para as pessoas de boa vontade exortarem os seus líderes a acabarem com a guerra. Acabar com os ferimentos e mortes crescentes na Ucrânia dos combatentes e não combatentes. Acabar com a prática de crimes de guerra. Permitir que milhões de refugiados voltem à Ucrânia. Lançar as bases para estabelecer a paz, estabilidade e prosperidade a longo prazo. Prevenir a escalada previsível para um potencial conflito nuclear por meio de um confronto direto entre as forças da NATO e da Rússia. Reduzir a desinformação veiculada pelos meios de comunicação para justificar a continuação da guerra. Prevenir a fome e enfrentar uma crise alimentar global aumentando rapidamente a disponibilidade de cereais e fertilizantes aos países necessitados. Acabar com a inflação relacionada à guerra. Facilitar negociações urgentes de controle de armas nucleares e convencionais envolvendo EUA, Rússia, França, Reino Unido e China. Reduzir as ameaças de escalar a guerra feitas por governos e agentes internacionais".
Mero propagandista, J. Borrell da CE, dizia que o bloqueio do porto de Odessa é crime de guerra dado que há populações a passarem fome por causa disso. É comovente a sua preocupação com a fome no mundo, mas é recente. Os milhões de mortes pela fome cada ano no mundo, os 2,2 mil milhões de subalimentados, nunca foram grande preocupação destes corações cuja ternura é dedicada às dificuldades da finança e nunca àqueles povos cuja miséria e fome aumentavam para serem pagos juros, que o "mercado" ditava através das agências de rating.
O Sr. Borrell "esqueceu-se" que o porto de Odessa não funciona porque as águas foram minadas pela Ucrânia e não são desminadas para evitar um desembarque russo. Para os "comentadores" a Rússia estaria a aplicar aos países mais pobres (ao que se vê também aos da UE) criminosas sanções. Claro que impedir países de adquirirem alimentos, medicamentos, bens essenciais, através de sanções é criminoso. A duvida pode ficar: então as aplicadas a Cuba, à Venezuela, ao Irão, ao Iraque, à RPDC (Coreia do Norte), etc, à Rússia (!) não são criminosas? A reposta vem de Madeine Albraight, referindo-se à morte de crianças do Iraque: Achamos que valeu a pena...
"Comentadores" dizem que "a Rússia tem de ser derrotada", "Kiev tem de juntar-se às nações democráticas da UE, para liquidar qualquer ilusão de Putin". É espantosa a ligeireza com que gente que demonstra não ter a mínima ideia de planeamento ou logística militar fala sem medir as consequências. Os mesmo que desprezaram a proposta russa de um tratado de segurança na Europa, são os mesmos que se excitam com a "expansão do imperialismo russo", repetindo anteriores falácias contra a URSS. Nesta estratégia de "defesa da democracia na Ucrânia" os nazis ucranianos foram promovidos a modelo de democratas...
No início de junho a ONU apontava para, ao fim de 100 dias de guerra, a morte de cerca de 4 200 civis. Sendo obviamente de lamentar, não tem comparação com os civis mortos em bombardeamentos sobre a Sérvia, Iraque, Líbia, que apesar de estarem a milhares de quilómetros dos EUA foram considerados um perigo para a sua segurança... As centenas de milhares de mortes civis, destruição e caos em diferentes países, pelas ações EUA/NATO nunca foram consideradas crimes de guerra pelos "comentadores".
A investigação dos jornalistas norte-americanos Max Blumental e Esha Krishnaswamy mostrou os crimes dos grupos nazis ucranianos, acarinhados no ocidente como "resistentes", em conluio com os serviços de segurança ucranianos, o SBU. Foram mesmo assassinados presidentes de câmara que entraram em negociações com os russos para permitir a saída de civis em corredores humanitários. É o critério da dupla moral, característica do imperialismo, colonialismo, racismo, em resumo, fascismo.
Zelensky não é mais que um boneco dos ventríloquos neocons. O seu poder no país é nulo, não tem capacidade económica nem financeira para gerir o país ou o que resta, depende do dinheiro que a UE e NATO lhe entregam e da repressão exercida pela SBU e grupos nazis. É porém espantoso o poder que ele e ministros exercem sobre os líderes da UE, criticado, admoestando abertamente os presidentes da França e da Alemanha. Até Biden já foi contestado. A embaixadora de Ucrânia em Portugal atreveu-se a uma ingerência fascista na política interna, reclamando a ilegalização do PCP. Segundo as regras diplomáticas deveria ter sido imediatamente expulsa, foi recentemente substituída assumindo um cargo na Ucrânia.
Graham E. Fuller, ex-vice presidente do National Intelligence Council da CIA, esclarece: "Uma das características mais perturbadoras desta luta EUA-Rússia na Ucrânia tem sido a corrupção total dos media. De facto, Washington venceu a guerra de informação e propaganda, orquestrando todos os media ocidentais para cantarem os mesmos hinos ao caracterizar a guerra na Ucrânia. Que os EUA possam dividir a cooperação russa e chinesa induzida pelos EUA é uma fantasia. A Rússia tem brilho científico, energia abundante, é rica em minerais e metais raros e o aquecimento global aumentará o potencial agrícola da Sibéria. A China tem capital, mercados e mão-de-obra para contribuir para uma parceria natural em toda a Eurásia. Infelizmente para Washington, quase todas as suas expectativas sobre esta guerra mostram-se incorretas. E a maior parte do resto do mundo – América Latina, Índia, Médio Oriente e África – encontra poucos interesses nacionais nesta guerra fundamentalmente americana contra a Rússia".
George Kennan, ex-embaixador na União Soviética, numa entrevista ao New York Times, chamou à expansão da NATO um "erro trágico" que marcou o início de uma nova Guerra Fria e alertou que os russos "gradualmente reagiriam de forma bastante adversa". O próprio Vladimir Putin, disse em muitas ocasiões que o alargamento da NATO representava “uma séria provocação”. William Burns, então embaixador dos EUA em Moscovo, enviou um memorando à secretária de Estado Condoleezza Rice: “A entrada da Ucrânia na NATO é a mais visível de todas as linhas vermelhas para a elite russa (não apenas Putin)”. “Em mais de dois anos e meio de conversas com as principais personalidades russas, de gananciosos nos recessos sombrios do Kremlin aos maiores críticos liberais de Putin, não encontrei ninguém que não veja a Ucrânia na NATO como algo a não ser um desafio aos interesses russos". Os membros da NATO devem perceber que a única solução para a hostilidade gerada por esta aliança exclusiva e divisória é desmantelar a NATO e substituí-la por uma estrutura inclusiva que forneça segurança a todos os países e povos da Europa, sem ameaçar a Rússia ou seguir cegamente os Estados Unidos nas suas ambições insaciáveis, anacrónicas, hegemónicas.[1]
Entretanto a Rússia procede não apenas à ocupação do Leste e Sul da Ucrânia, como ao controlo político e económico e reconstrução dos territórios de maioria russa libertados da clique de Kiev. As Repúblicas do Donbass, Kherson e Zaporozhye tornar-se-ão previsivelmente parte da Rússia. Os portos de Berdyansk, Mariupol e Kherson retomaram a atividade. As infraestruturas de transporte retomam a atividade, a Rússia disponibiliza 2 milhões de milhões de rublos para a reconstrução do Donbass (Intel Slava Z – Telegram em 17/6). São entregues passaportes russos a populações e canceladas dívidas a bancos ucranianos nas regiões antes sob controlo de Kiev.
Os objetivos da Rússia de desmilitarização e desnazificação da Ucrânia implicam uma radical mudança de poder em Kiev, protegida com milhares de milhões de dólares, em apoio político, militar e mediático, substituindo-o por outro disposto a banir a ideologia nazi. Caso não se iniciem urgentemente negociações haverá um caminho muito doloroso e arriscado para os povos da Europa, a começar pelo povo da Ucrânia, implicando o prosseguimento da operação militar russa na Ucrânia central e ocidental para destruir completamente reconstituídas forças armadas ucranianas e forças neonazis sobreviventes.
01/Julho/2022[NR] As eleições intercalares nos EUA serão em 08/Novembro/2022.[1] Nicolas J S Davies, Consortium News, Medea Benjamin e Nicolas J. S. Davies, jornalistas e autoresA primeira parte encontra-se em:Este artigo encontra-se em resistir.info
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12