segunda-feira, 4 de julho de 2022

Bifo: O mundo em guerra civil psicótica

Imagem: Cleon Peterson

Culto às armas. Assassinatos em massa nos EUA. O patético Zelensky convertido em paladino do Ocidente. Crise também perverte inconsciente coletivo. Diante do heroísmo dos psicopatas, saída está na deserção das ordens automáticas

Por Franco Berardi, no CTXT | Tradução: Vitor Costa

A primeira edição de Heróis foi publicada em Londres, em 2015. Comecei a escrever esse livro em julho de 2012 depois de ler sobre o massacre ocorrido na cidade de Aurora, Colorado. Um menino chamado James Holmes, vestido de Batman, com cabelo laranja, foi à estreia do filme O Cavaleiro das Trevas Resurge de Christopher Nolan e, durante a exibição, ele sacou algumas armas automáticas e disparou contra a multidão, matando dezenas de pessoas. Foram 32 mortes, se bem me lembro.

Nos meses anteriores, um misto de repugnância e fascínio perverso havia me levado a ler tudo o que pudesse encontrar sobre esse tipo de massacre que parecia ter se proliferado há alguns anos, principalmente nos Estados Unidos. Quando li sobre James Holmes e o massacre de Aurora resolvi escrever sobre o tema, pois este episódio me obrigou a refletir sobre a relação entre diversão, solidão, competição e, sobretudo, sofrimento.

Dez anos se passaram desde aquele episódio. O pobre James Holmes está trancado em alguma prisão estadunidense, mas a matança nunca parou; pelo contrário, ela avança com mais intensidade.

Em 2021, houve mais de um massacre (mass shooting) por dia, segundo a Forbes. Por “massacre” nomeamos um evento em que uma pessoa mata pelo menos quatro de seus semelhantes e, em seguida, geralmente comete suicídio.

O que me levou a escrever Heróis em 2012 não foi apenas o absurdo de um país onde qualquer um, mesmo o mais mentalmente perturbado, pode comprar armas altamente destrutivas. Sabemos que este país nasceu de um genocídio, prosperou explorando o trabalho de milhões de escravos deportados com violência e, portanto, sabemos que este país é por sua própria natureza a negação do humano. Sabemos que este país busca a supressão da solidariedade, da compreensão e, em última análise, da humanidade em todos os lugares. E acima de tudo sabemos que este país investiu seus recursos econômicos e intelectuais na produção de armas cada vez mais letais, e que sua cultura defende a posse de armas como se fosse a única liberdade da qual não pretendem se privar.

O futuro do mundo talvez seja mais bem compreendido se observado através desse tipo de loucura horrível, do que através da loucura purificada de economistas e políticos. A agonia do capitalismo e o desmantelamento da civilização social podem ser melhor compreendidos a partir deste ponto de vista peculiar: o crime de suicídio.

A realidade nua do capitalismo à vista: horrível

No país líder do mundo livre há mais de um massacre por dia – e a média acelerou após o horrível extermínio de crianças em Sandy Hook, e após Obama prometer medidas que não pôde adotar. Em 2021, o total de massacres com mais de quatro vítimas foram 147. Mas o pico foi atingido em 2020, quando ocorreram 610 massacres em doze meses, enquanto a covid-19 ceifava outros inocentes mais.

Em um artigo publicado no The New York Times em 27 de maio de 2022 (“América pode estar num caminho sem volta”), Michelle Goldberg nos informa que “o assassino número um de crianças americanas são as armas”. Mas a maioria dos legisladores no Congresso vê isso como um preço que deve ser pago para defender a liberdade.

Liberdade: é assim que eles chamam. Pela liberdade, cometeram o genocídio mais perfeito da história da humanidade; pela liberdade, deportaram milhões de homens e mulheres das terras africanas; pela liberdade, eles exploraram milhões de escravos; pela liberdade, consomem os recursos do planeta numa proporção quatro vezes superior à média dos outros países.

Como esses arrogantes não conseguem fazer uma lei que limite a disponibilidade de armas para que ao menos crianças possam ser salvas? Michelle Goldberg responde: “Será impossível fazer qualquer coisa sobre a questão das armas, pelo menos nacionalmente, enquanto os democratas tiverem que lidar com um partido que vê a insurreição como uma possibilidade política no futuro”.

A questão é a seguinte: há algum tempo nos Estados Unidos está em curso uma guerra civil que não tem fronteiras políticas reconhecíveis, que não opõe pobres aos ricos, ou os brancos aos negros, mas opõe todos contra todos. A guerra civil está em curso, mas não pode ser declarada porque é uma guerra psicótica, desprovida de qualquer outra motivação que não seja o sofrimento psíquico, o desespero e a violência endêmica e congênita.

Michelle Goldberg aponta que “as vítimas dos assassinatos em massa – que cada vez são mais frequentes – são danos colaterais em uma guerra civil fria”. Durante sua triunfante campanha eleitoral de 2016, Donald Trump deixou claro: as pessoas que defendem a Segunda Emenda poderão parar Hillary Clinton antes que ela chegue à Casa Branca. O “povo da segunda emenda”, para quem não entendeu, significa: as pessoas obcecadas por suas armas de guerra.

Mas o mais interessante é o que Michelle Goldberg escreve no final de seu artigo: “As vendas de armas tendem a aumentar após cada assassinato em massa”. Entretanto, os republicanos relançaram a ideia (uma ideia fantástica, posso dizer, já que fui professor por 25 anos) de armar professores. Merece sobreviver uma sociedade em que os professores tenham que estar prontos para sacar o revólver e matar o intruso na frente dos alunos? Não, ela não merece sobreviver, mas a boa notícia é que ela está se matando.

O fato de que, após cada tiroteio com abundante quantidade de cadáveres espalhados pelo chão, a venda de armas aumenta nos permite entender que para o país líder do mundo livre não há outro futuro senão uma guerra civil cada vez mais insana. Uma retroalimentação positiva que se soma a muitos outros processos de autoalimentação de tendências destrutivas. A irreversibilidade das tendências autodestrutivas (nos níveis ambiental, social, militar) é a garantia de um fim horrível para toda a humanidade.

Guerra civil psicótica

Nos anos após a publicação de Heróis, alguns jornalistas me ligaram para perguntar o que eu achava de novos episódios desse tipo, mas eu disse a eles que não queria mais me tornar um especialista em terror demente e já não acompanhava tanto aqueles eventos sombrios.

Durante esta primavera de 2022, no entanto, esse livro voltou a minha mente porque o “heroísmo” dos psicopatas que na última década espalharam sangue em cinemas, escolas primárias, shows e supermercados hoje parece se estender muito além dos limites das notícias policiais. Invadiu a esfera geopolítica, apoderou-se do destino do mundo.

Heróis falava do retorno insano do heroísmo suicida no inconsciente de indivíduos isolados, que não são poucos. Agora, o heroísmo suicida ocupa o centro do cenário midiático global e se estende pela linguagem dos grandes líderes políticos.

O heroísmo do serial killer é agora destacado em um novo contexto: o da guerra, o do assassinato sistemático e legalizado, o do extermínio prometido e realizado.

A guerra que eclodiu em 24 de fevereiro de 2022 nas fronteiras orientais da Europa marca o início da fase final da agonia da civilização branca, que foi definida como “moderna”. A agonia começou nos anos em que o poeta irlandês W. B. Yeats escreveu que “os melhores carecem de toda convicção, os piores estão cheios de intensidade apaixonada” (“The best lack all conviction, the worst are full of passionate intensity”, em The second coming). O dístico poderia ser interpretado da seguinte forma: “os melhores estão deprimidos, os piores estão eufóricos e de forma apaixonada mandam armas para aqueles que querem matar ou querem ser mortos”.

Diante da evidência de seu declínio, no esgotamento das energias que possibilitaram cinco séculos de expansão econômica, territorial, demográfica e técnica, a raça branca (ou melhor, a cultura cristã, expansionista e patriarcal) encontra-se em um delírio de onipotência que esconde um impulso suicida.

A cultura branca não pode pensar em esgotamento, o inconsciente branco não pode aceitar o esgotamento dos recursos naturais que a aceleração extrativista consumiu de forma frenética. A expansão econômica só é possível hoje se devastar ainda mais o planeta – que está se tornando inabitável para os humanos. A expansão territorial colonial, tendo atingido os limites extremos do planeta, foi substituída pela aceleração do tempo infoprodutivo, mas essa aceleração causou o esgotamento do sistema nervoso da humanidade.

Chegamos assim a um colapso psíquico do qual a guerra na Ucrânia é tanto uma consequência quanto um sintoma. A guerra psicótica que tem o seu epicentro na Ucrânia está destinada a desencadear consequências apocalípticas a nível econômico, energético, alimentar e até financeiro. E certamente está destinada a agravar a crise psíquica que transtorna o cérebro coletivo.

É fácil prever que os efeitos econômicos se espalharão rapidamente pelo planeta, levando dezenas de milhões de africanos à fome e devastando o sistema produtivo europeu, enquanto não podemos prever se a guerra local travada com armas convencionais evoluirá para uma guerra generalizada com o uso de armas nucleares. Por enquanto nos limitamos a testemunhar o horror que as redes de TV privadas e públicas mostram sem parar ao longo do dia, todos os dias, para que o espírito público se empolgue e se encha de heroísmo.

O heroísmo está na moda

O heroísmo está na moda no discurso público da mídia e dos políticos europeus. A população é chamada a apoiar os combatentes, os combatentes são encorajados a resistir, a matar e a morrer.

A União Europeia nasceu com a intenção de superar a retórica do nacionalismo e renunciar para sempre à guerra, mas agora a Europa se ergue como uma nação em armas, na euforia dos velhos trotskistas convertidos ao intervencionismo. O Sturm und Drang que levou a Europa a desencadear duas guerras mundiais no século passado está de volta. “Mais armas, mais armas!”, gritam de um extremo ao outro do continente.

Mesmo no continente norte-americano, há uma presa por se armar, como se não bastassem 400 milhões de armas de fogo espalhadas entre uma população de 330 milhões.

Quando escrevi Heróis, eu sabia que não era uma moda passageira, que a devastação psíquica produzida pela sociedade hipercompetitiva continuaria a alimentar o frenesi psicótico-assassino. Mas eu não sabia que essa guerra civil psicótica convergiria em uma guerra antiquada do século XX. Então aqui estamos nós, assistindo na mesma tela de televisão Biden prometendo enviar cada vez mais armas para seus clientes ucranianos, e o mesmo Biden chorando lágrimas de crocodilo pela violência em Uvalde, onde um jovem de dezoito anos chamado Salvador Ramos se trancou em uma escola primária e atirou em crianças e professores, matando 22 vítimas inocentes, tão inocentes quantos os mortos por bombas russas em Mariupol e Severodonetsk.

Quem foi Salvador Ramos? Salvador era um adolescente nascido em uma das muitas famílias que fugiram dos países da América Central. A mãe é viciada em drogas, como milhões de pessoas neste país, onde os opiáceos são distribuídos a preços baixos há anos, como cura para a infelicidade.

Isso porque o povo dos Estados Unidos é o povo mais infeliz do mundo, a demanda por substâncias analgésicas é enorme, e porque os Estados Unidos são um país onde as grandes corporações têm todo o poder e os pobres não têm direitos. Esse é o contexto para a propagação da toxicodependência, promovido por grandes empresas farmacêuticas.

A avó de Salvador Ramos cuidou do neto e o que sabemos sobre a vida do menino é suficiente para explicar por que ele queria se vingar. Família migrante, muito pobre. Seus colegas o haviam isolado e maltratado, dizem os jornais, porque ele era pobre, porque gaguejava um pouco, porque se vestia como emo e porque, a certa altura, começou a usar um lápis para destacar a linha dos olhos. Ele tinha um rosto muito bonito, e em uma foto vemos seus cabelos compridos e um olhar triste, mas doce, feminino.

Salvador Ramos abandonou a escola, que para ele deve ter sido um lugar de tormento e humilhação. Depois voltou para a escola, com dois fuzis automáticos, e fez “justiça” matando vinte crianças.

Alguns psicólogos sugeriram que Salvador pode ter querido matar sua própria infância, que deve ter sido marcada pela dor da separação de sua mãe, pela consternação com a crueldade do mundo adulto e pela maldade de seus pares. A partir disso, podemos concluir que o que aconteceu com Salvador é bastante coerente, compreensível: evitou que duas dezenas de colegas tivessem a mesma vida que estava destinada a ser dolorosa, repugnante, como a sua. E ele se libertou daquela vida que não tinha mais chance de ser diferente do que tinha sido sua infância.

Li que um dia Salvador disse que queria entrar para os fuzileiros navais para poder matar. Apesar de suas origens e da marginalização a que os Estados Unidos o destinaram, Salvador tornou-se um verdadeiro estadunidense, um aspirante a assassino que sabe que pode expressar plenamente suas habilidades e sua vocação indo para algum país distante como o Afeganistão e o Iraque, onde homens, mulheres e crianças podem ser mortos impunemente. Esperando matar em defesa de sua pátria, foi por isso que Salvador decidiu começar seu treinar comprando e usando dois fuzis AR15 e mais de 300 balas? Não, não se tratava de treinamento para a guerra. A guerra está em toda parte, onde quer que haja inimigos para eliminar. Todo ser humano é um alvo. Primeiro ele atirou na cara da avó, mas ela sobreviveu, pobre avó. Aqui, a avó é, entre todos, o personagem com o qual mais me identifico.

Uma semana antes do massacre na escola de Uvalde, outro jovem de 18 anos, Payton S. Gendron, entrou em um supermercado na cidade de Buffalo e atirou em pessoas que estavam fazendo compras, matando uma dúzia de afro-americanos e alguns outros azarados. O jovem Gendron havia declarado suas intenções em um manifesto supremacista publicado online: opor-se com armas à “Grande Demissão”, à invasão de negros e outros não-brancos. A obsessão racista foi ampliada no inconsciente branco, incapaz de lidar com o esgotamento de seu poder.

O declínio demográfico, social e intelectual da raça branca alimenta uma onda de violência que assume diferentes formas: desde o massacre de Buffalo até a decisão dos governos europeus de afogar africanos que tentam atravessar o Mar Mediterrâneo enquanto acolhem milhões de refugiados ucranianos fugindo de uma guerra armada por ocidentais. Deste ponto de vista, o jovem Gendron tem todo o direito de proclamar, como fez durante a primeira audiência (porque não se matou, ao contrário da maioria dos atiradores em massa), que é um verdadeiro estadunidense.

Armas! Mais armas!

Em 29 de maio, em Uvalde, na cidadezinha texana onde ocorreu o massacre na escola primária, Joe Biden reclamou: “Violência demais, medo demais, dor demais”.

Os democratas estão tentando, sem sucesso, regular o comércio de armas por lei (mesmo que seja tarde demais, porque os porões da América já estão cheios deles), e nos mesmos dias eles enviam toneladas de material de guerra aos rapazes ucranianos para que o mesmo incêndio irrompa em todos os lugares: o suicídio mortal da raça branca.

Dois dias após o massacre no Texas, a convenção dos aficionados por rifles, chamada de NRA, foi realizada perto de Austin. “A única maneira de parar uma pessoa má com uma arma é uma pessoa boa com uma arma”, dizem os apoiadores da National Rifle Association, incluindo aí Donald Trump e Ted Cruz. Mas a experiência mostra que essa ideia não funciona. Minutos após a entrada de Salvador Ramos na escola de Uvalde, cerca de quinze policiais totalmente armados chegaram ao local: “bons” que não fizeram nada. E o que eles poderiam fazer? Atirar pelas paredes com o objetivo de matar mais algumas crianças?

O proprietário da Central Texas Gun Works de Austin, Michael Cargill, 53, diz que seria um erro regular o comércio de armas militares. “Só um louco pode entrar em uma escola primária e matar crianças. Mudar as leis não mudaria nada. A loucura não pode ser regulada”.

Concordo com o senhor Michael Cargill de Austin: não há lei que possa governar o pânico, a depressão, o vício em propaganda e substâncias psicotrópicas que alteram o comportamento, tornando-o mais agressivo. Não há lei que possa salvar os Estados Unidos. Nisso Michelle Goldberg está certa: a América está irreparavelmente perdida porque a violência, o crime, a guerra não são o efeito da vontade política, de uma vontade política razoável ainda que criminosa. Não: essa guerra é, sobretudo, o efeito de um estado mental de desespero absoluto e, portanto, de uma determinação suicida que se torna agressiva.

Não há lei que salve os Estados Unidos, não há política que salve um país devastado pela psicose, pela demência senil e pela agressão assassina de seus jovens, revoltados e deprimidos com o lugar onde foram chamados a viver (sem terem pedido, sem terem manifestado sua disponibilidade), um lugar infernal, irrespirável, agressivo, um lugar sem ternura, sem afeto, sem esperança, sem inteligência.

Não há lei que possa parar o horror.

Heroísmo geopolítico

O discurso que Zelenski fez perante a Assembleia da União Europeia em 1º de março, respondendo àqueles que lhe ofereceram uma saída da guerra que ele pedia armas e não um elevador, é o início do retorno dos heróis para a arena europeia.

Olho as fotos dos milicianos do batalhão Azov entrincheirados na siderúrgica, com bandagens ensanguentadas, capuzes na cabeça e tatuagens nos bíceps. Heróis homéricos. Ájax, o solitário paranoico, Aquiles, o vaidoso raivoso.

Você alguma vez já se perguntou quem foi Aquiles? Um jovem atlético que foi matar Heitor e muitos outros troianos inocentes porque a esposa de um amigo fugiu com o belo Paris. Esse Aquiles não é um idiota? Os heróis em geral não são idiotas? Não estamos presos na armadilha da idiotice?

Há cinquenta anos dizemos: “Socialismo ou barbárie”, mas durante muito tempo nos perguntamos como seria a barbárie iminente.

Agora sabemos.

O The New York Times publicou um texto de Peter Coy filosofando um emaranhado de frases contraditórias, mas cheio de retórica arrogante: “A coragem parecia morta, então veio Zelenski”. O objeto das reflexões fascistas de Peter Coy é a coragem, na verdade o heroísmo. Há alguns séculos pensamos em construir algo chamado civilização, em que não é preciso ser forte e agressivo para conseguir pão, mas todos, mesmo os menores e mais medrosos, poderiam ter acesso à educação e à saúde. Mas não importa. Peter Coy explica com orgulho que finalmente voltamos ao clube heroico dos nossos antepassados, com a pequena diferença de que o clube agora tem um dispositivo nuclear que pode incinerar Londres, por assim dizer.

Acabemos com a vitória

Vencer significa impor a força de uma vontade contra e sobre outra vontade. Desde Maquiavel, essa ideia da vontade que se impõe pela força teve um certo florescimento, produzindo grandes progressos, assim como grandes catástrofes. Mas essa história acabou: o poder da vontade, do projeto e do governo é aniquilado pela complexidade da natureza que se rebela, o autômato tecnomilitar que governa a si mesmo e o inconsciente coletivo que oscila entre o colapso depressivo e a psicose agressiva.

Vencer é impor o próprio projeto anulando os projetos que se opõem ao nosso. Nesse sentido, ninguém pode ganhar mais nada, se ganhar alguma vez significou alguma coisa.

Mas aqui surge a pergunta mais dramática para a qual não temos uma resposta por enquanto: existe uma força cultural e política na sociedade que seja capaz de parar a psicose e desativar sua violência destrutiva? Essa força não será o movimento pacifista, ao qual eu também abraço, mas sem muita esperança. O pacifismo é uma afirmação, uma pergunta, um apelo, mas não tem poder. O poder, por outro lado, é o que precisamos, mesmo que seja o poder negativo de retirarmo-nos.

A força capaz de escapar da psicose de massa é a deserção de todas as ordens automáticas: da ordem automática da guerra, em primeiro lugar. Mas também da ordem automática da competição, do trabalho assalariado e do consumismo. E também da ordem automática de crescimento econômico que destrói o meio ambiente e o cérebro para produzir lucros.

Essa força existe: é a força do desespero que atualmente domina as maiorias. Mas o desespero (a falta de esperança no futuro) pode evoluir para uma depressão epidêmica, pode evoluir para uma psicose agressiva, ou pode evoluir para a deserção, o abandono de todos os campos de batalha, a sobrevivência à margem de uma sociedade em desintegração, da autossuficiência no exílio do mundo.


FRANCO BERARDI

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