segunda-feira, 11 de julho de 2022

Guerra à guerra

Imagem: Inga Seliverstova

Por PIETRO BASSO*

A guerra na Ucrânia é um aviso das monstruosidades que o capitalismo está preparando para nós

Tenho três premissas a fazer. A primeira, óbvia; a segunda, um pouco menos; a terceira, incomum. A primeira. O que está sendo travado na Ucrânia não é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia. É uma guerra entre a OTAN/Ocidente e a Rússia (com a China por trás), e é a continuação do angustiante 2014 do Euromaidan, o resultado da disputa global que começou em 1991 para arrancar as imensuráveis riquezas naturais e de trabalhadores da Ucrânia. Uma disputa em que a “nossa” esquálida Itália esteve e está na primeira fila, apropriando-se da vida de 200.000 mulheres de todas as idades e de terras férteis, plantando mais de 300 empresas, semeando a corrupção e as sementes da guerra.

Segunda premissa. A guerra em curso na Ucrânia não está sozinha. Faz parte de uma cadeia de eventos traumáticos de todos os tipos que, juntos, compõem o gigantesco caos no qual o capitalismo global vem nos precipitando desde o início do século XXI. Em meio a tanto caos, o que está em jogo nesta guerra não é apenas a Ucrânia ou o Donbass. É uma nova ordem mundial na qual os Estados Unidos, o Ocidente, o dólar não tem mais o posto de comando – Vladimir Putin e Xi Jin Ping estão declarando isso cada vez mais explicitamente. Mesmo os círculos de poder americanos e europeus sabem perfeitamente que é disso que se trata, e não da liberdade e da autodeterminação da Ucrânia, com as quais não podem se importar menos. Por isso, a posição a ser tomada sobre a guerra atual é indissociável da posição sobre o embate em torno da nova ordem mundial.

A terceira premissa. Quando se fala da guerra na Ucrânia, em 99,9% dos casos os sujeitos do discurso são: Ucrânia, Rússia, Estados Unidos, União Europeia, Itália, Polônia, Turquia, China etc. Em suma: Estados, capitalismos nacionais e interesses afins. Ou, simplificando: Valodymyr Zelensky, Vladimir Putin, Joe Biden etc., como gestores desses interesses. Exceto que nesses discursos falta algo absolutamente essencial: faltam os trabalhadores, as trabalhadoras da Ucrânia, da Rússia, dos Estados Unidos, da União Europeia, da Itália etc. – os proletários, os assalariados, aqueles/aquelas que vivem do próprio trabalho e não da exploração do trabalho alheio.

Faltam, porque se pressupõe, ou se quer, que estejam atrelados aos seus respectivos governos, seus respectivos estados-nação, imperialistas ou não. Figurantes, peças que os poderosos podem mover à vontade, carne para abate. Eu, ao contrário, como todos os marxistas e os internacionalistas, considero-os “sujeitos da história”. E faço a pergunta que falta: que interesse têm os trabalhadores/as trabalhadoras na continuação e extensão desta guerra, seja qual for um eventual, provisório armistício? que interesse eles têm em tomar partido de seus respectivos governos e Estados e capitalistas na luta até a morte pela defesa do velho ou pela construção de uma nova ordem mundial?

Começo pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras ucranianos. E eu respondo sem hesitar: nenhum. Esta guerra os fez mergulhar nos círculos mais profundos do inferno. A URSS e a Comecon certamente não eram o paraíso socialista do qual alguns companheiros muito nostálgicos ainda fantasiam. No entanto, como a Ucrânia estava entre as áreas mais industrializadas da URSS, em 1991 seus trabalhadores ainda desfrutavam de modestas, mas reais, garantias de estabilidade no emprego e de bem-estar. Com o advento da independência, a Ucrânia de repente se viu competindo no mercado global com economias com taxas de produtividade do trabalho muito mais altas, sem barreiras de proteção.

Sua estrutura econômica e sua vida social foram esmagadas. Porque o mercado mundial é um mecanismo ditatorial em que as mais fortes agregações de capital ditam a lei. Então, as multinacionais e os bancos ocidentais, o FMI, as bolsas de valores, os fundos de investimento (não apenas ocidentais – nos últimos anos, o primeiro investidor estrangeiro na Ucrânia foi a China), que se banquetearam com o empobrecimento dos trabalhadores ucranianos. As políticas infames adotadas pelos governantes ucranianos, tanto os mais ou menos pró-russos (Kucma, Yanukovic) quanto os pró-ocidentais (Juscenko, Timoshenko, Poroshenko) contribuíram para o desastre.

A única ambição deles era apoderar-se de partes da riqueza nacional privatizada residual, ou garantir os amigos oligarcas que, em 80, passaram a controlar 100% do capital nacional. Resultado: entre 1991 e 2017, a economia ucraniana foi a quinta pior do mundo entre 200 países! E a guerra em curso permitiu a Valodymyr Zelensky, seu digno herdeiro, e a seu partido proibir todas as formas de oposição política e de apresentar ao parlamento, que está prestes a aprová-la, uma lei trabalhista que abole os acordos coletivos de trabalho para 70 % dos trabalhadores.

Em vinte e cinco anos, mais de 7 milhões de pessoas (mais de 15% da população) emigraram da Ucrânia para a Rússia, Europa Ocidental, Estados Unidos, Cazaquistão etc. Estudei a emigração ucraniana na Itália, composta 80% por mulheres. Raramente experimentei tanta dor como na experiência das “cuidadoras” ucranianas a serviço na Itália, forçadas à coabitação 24 horas por dia, uma experiência de instituição total. Mulheres frequentemente afetadas, como romenas, moldavas, búlgaras, pela assim chamada síndrome Itália: uma forma grave de depressão, que se torna devastadora quando – voltem para casa por um tempo ou para sempre – se veem rejeitadas pelos próprios filhos ou filhas como se fossem estranhas.

Por um lado, órfãos brancos na pátria, crianças crescidas sem a mãe ao lado, também expostas a formas de depressão que geram centenas de suicídios; por outro lado, suas mães se desgastaram aqui porque tiveram que substituir a falta de cuidado e de amor para os idosos e pela não autossuficiência que difundimos: este é um aspecto brilhante da missão civilizadora da Itália na Ucrânia e em outros países do Leste europeu. Há muito alarde hoje sobre a entrada da Ucrânia na UE (em 10-20 anos) – mas a UE, a Itália, já penetraram na Ucrânia há trinta anos, sem ter que pedir permissão, destruindo a existência de centenas de milhares de famílias das classes trabalhadoras. E é revoltante que “nossos” governantes e “nossos” meios de comunicação de massa se apresentem como amigos e defensores do povo ucraniano.

A invasão russa, os bombardeios e todo o resto completaram a devastação, causando a fuga de outras milhões de pessoas, a morte e o ferimento de dezenas de milhares, pelo menos, de ucranianos comuns, de proletários. E certamente não se trata dos filhos dos oligarcas ou dos pais de fantoches da OTAN como Zelensky, abrigados em Israel em mansões extra luxuosas. Alguns dizem: mas o exército russo está desnazificando o Donbass, não é bom? Eu entendo o alívio de muitos, especialmente no Donbass, ao testemunhar a rendição dos nazistas ou nazistoides do batalhão Azov e de criminosos semelhantes. No entanto, convido vocês a não idealizar a realidade das assim chamadas Repúblicas Populares do Donbass.

Ouçam o que os militantes da Frente Operária do Donbass e da organização comunista operária da República Popular de Lugansk acabaram de dizer, em 19 de fevereiro: “O DNR e o LNR há muito perderam o espírito original da democracia popular. Os impulsos ingênuos e sinceros para estabelecer um verdadeiro poder do povo estão em grande parte enterrados. Através dos esforços da burguesia local e russa, os regimes capitalistas reacionários habituais foram instaurados, com uma democracia reduzida, muita exploração dos trabalhadores, uma estratificação social. As autoridades encobrem cinicamente suas abominações, desde o não pagamento de salários à proibição de protestos e greves até a exclusão da vida política e das eleições, com a lei marcial, dos trabalhadores, dos mineiros, dos tratoristas. Assim, a classe trabalhadora de Donbass, como a classe trabalhadora da Rússia e da Ucrânia, trava uma luta comum contra a ditadura da burguesia”.

Palavras duras, claras, que vêm do campo (e devo dizer que não se trata de organizações com a mesma orientação ideológico-política que a minha). Nos últimos dias, houve um apelo-protesto dirigido ao presidente da República Popular de Donetsk no qual se denuncia que muitos habitantes de Donbass foram mandados para a linha de frente em Mariupol sem o treinamento necessário. 40% do batalhão composto por eles morreu…

Liberados ou bucha de canhão? Sinto-me ao lado deles, como estou com as mulheres ucranianas que no final de abril, em Khust, invadiram o escritório de alistamento militar para impedir o recrutamento forçado dos jovens. Afinal, desde o primeiro momento nos posicionamos, como redação do blog Il Pungolo rosso, contra as sanções à Rússia, contra o envio de armas ao governo Zelensky, contra a ativação do sistema de drones italiano em favor do exército ucraniano e da OTAN, contra a demente campanha russofóbica que tem como alvo os escritores russos, músicos russos, artistas russos, russos como tais. Contra, radicalmente contra a guerra e, sobretudo, contra o “nosso” governo e a OTAN, que a fomentam de todas as maneiras.

A classe trabalhadora da Rússia também não tem nada a ganhar com a guerra em andamento e com as guerras que se seguem. Não quero me esconder por trás da autoridade superior de Lênin, recentemente atacado por Vladimir Putin, em questões de chauvinismo grande-russo, que ele considerava um veneno perigoso a ser combatido. Limito-me a perguntar: quais jovens russos, porque se trata de jovens, estão morrendo na Ucrânia hoje? Os filhos dos gerentes da Gazprom, da Gazprombank ou da Sherbank, ou da Tupolev? Ou são, em vez disso, filhos de proletários, de camponeses, das camadas populares, quase sempre provenientes das áreas mais pobres da Rússia, onde a profissão de soldado é o único ofício que dá garantias?

Como é que a pequena e pobre Buriácia (menos de um milhão de habitantes), terra do operador de escavadores Vitaly Chingisovich, pertencente à 30 brigada, morto com 24 anos em 1º de junho, teve 91 mortes “reconhecidas”, enquanto a cidade de Moscou, onde a presença das classes média e alta é grande, e onde vive 9% dos habitantes de toda a Rússia (12 milhões de habitantes), conta apenas 3 mortes reconhecidas? E quem pagará os custos da inevitável crise econômica desencadeada pelas sanções ocidentais e pela guerra? Quem, para o necessário incremento a longo prazo dos gastos militares? Quem será afetado pelo aperto repressivo contra aqueles que resistiram e resistirão à guerra e ao alistamento no exército e na Guarda Nacional? O que acontecerá – além de demissão – com aqueles que, como os 115 membros das guardas nacionais de Nalchik no Cáucaso do Norte, se recusarão a ir à guerra fora das fronteiras da Rússia? O que aos grupos de mulheres, eram, talvez, da Petersburgo bem?, que ousaram se manifestar contra a guerra e hoje exigem notícias de seus entes queridos desaparecidos?

Quanto aos trabalhadores italianos e europeus, basta considerar o que aconteceu na Itália. O governo Draghi imediatamente colocou a Itália na guerra, lançando-a na primeira fila nas provocações contra o Kremlin. Para apoiar esta escolha, Draghi & Co. imediatamente proclamaram uma economia de guerra, com a duplicação dos gastos militares e novos cortes nos gastos sociais. A agitação no comércio internacional que, aos poucos, as sanções decretadas pelos países ocidentais estão causando traz consigo mais inflação, aumento de taxas e recessão econômica em pouco tempo, com efeitos brutais sobre os salários, o aumento da dívida privada e estatal, o desemprego. Bonomi aproveitou imediatamente para informar que os patrões não podem conceder aumentos salariais, enquanto exigem maior apoio do Estado e maior flexibilidade dos trabalhadores. E estamos apenas no primeiro ato da temida sequência de conflitos da OTAN contra Rússia/China e seus aliados (atentos às manobras já avançadas para novas guerras nos Bálcãs…). Não é por acaso que o governo alemão tenha destinado 100 bilhões de euros da noite para o dia. O rearmamento europeu começou muito bem, é um problema subestimá-lo!

Por último, no que diz respeito às consequências que a guerra na Ucrânia tem e terá para os trabalhadores do resto do mundo, claro, é vulgarmente instrumental atribuir a crise alimentar mundial ao bloqueio do porto de Odessa, que tem múltiplas, diferentes, causas de longo prazo, todas decorrentes do funcionamento do capitalismo global e da sua agressão à natureza. Mas é fato que os eventos bélicos na Ucrânia agravam essa crise que já atinge os países da África negra e árabe, pois agravam a catástrofe ambiental. Sendo a guerra intercapitalista em geral o primeiro fator de poluição da terra e do ar, assim como das mentes e dos corações. E esta guerra sendo o bom pretexto para voltar ao carvão e lançar uso do recurso ultra poluente do gás liquefeito importado da América…

Eu paro aqui. Os trabalhadores e as trabalhadoras de todo o mundo, começando com os ucranianos e os russos, não têm nenhum interesse em serem convocados para esta guerra, nem para outras guerras capitalistas que estão por vir. Como eles não têm interesse em se alistar na competição econômica pela dominação do mercado mundial. Se trata da velha e detestável ordem dominada pelos Estados Unidos e pelo Ocidente, ou da nova, muito hipotética, ordem mais “pluralista” e “equilibrada”, em todo caso e sempre hiper capitalista, vislumbrada por Putin e por Xi Jin Ping.

Estamos no limiar de uma era de turbulências que traz de volta a magnífica previsão, talvez muito antecipada, por Rosa Luxemburgo: “socialismo (isto é, revolução social anticapitalista) ou barbárie”. E nos convida a retomar um mote antigo, sempre fresco e vital: a guerra à guerra! O principal inimigo está aqui, na “nossa” casa, é o “nosso” governo! Proletários e proletárias de todos os países, não deixemos nos dividir por nacionalismos pestíferos, unamo-nos contra as guerras do capital!

Digo isso sabendo muito bem que os sinais que vão nessa direção hoje são muito fracos. O que prevalece, até agora, é o agrupamento ou o enfileiramento nacionalista dos trabalhadores em torno dos governos. Mas a terrível experiência da guerra, das guerras e das crises que estão por vir, o preço que vão impor aos explorados e aos oprimidos, abrirão os olhos de muitos. Mostrarão até aos cegos qual é o único caminho de libertação das monstruosidades que o capitalismo está preparando para nós.

*Pietro Basso é professor aposentado de sociologia da Universidade Ca’Foscari de Veneza (Itália).

Tradução: Juliana Hass.

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