Imagem: Davide Bonazzi
A Era Digital abriu um novo espectro de dominação – de corpos, natureza e países. Sua tônica: gerenciar — de forma global e “mais plástica” — lógicas despóticas e disciplinares. Guerras, mortes e identidades desmancham-se na nuvem digital…
Título original: Os três patriarcados
O que é a sociedade da soberania?
Há a sociedade da soberania, a disciplinar e a do controle e as três formam no contemporâneo a sociedade do controle integrado.
A primeira tem como epicentro a figura do soberano; um delírio ideológico de Deus encarnado na figura de um rei, um imperador, um sultão, assim definido pelo teórico do nazismo Carl Schmitt, em Teologia política: “O soberano é aquele que decide o estado de exceção” (SCHMITT, 2009, p. 15).
Decidir o estado de exceção significa em linhas gerais deter o direito de vida e morte do súdito, escravo, dos povos, concebidos, em diálogo com Agamben de Meios sem fim: notas sobre a política (2015, p. 126), como aqueles cujas existências são fáticas, manipuláveis, matáveis.
Antes de ser da vida, o poder de decidir do soberano é sobre a morte, razão por que na sociedade da soberania o soberano é aquele que detém o triunfo da morte alheia, dos corpos dos outros; dos povos, da natureza.
Seu poder é, dessa forma, indissociável da pena de morte. E mais: é preciso matar e expor a morte em praça pública para que o soberano o seja.
É por isso que a ideologia dominante na sociedade da soberania se constitui pela relação ao mesmo tempo antagônica e convergente entre invisibilidade e visibilidade, transcendência e imanência, tal que os dois primeiros termos, invisibilidade e transcendência, efetivam-se no processo de tonar a morte do outro visível, dissecável, pública, o que significa “poder sobre”, senhorial, em relação, também, à imanência e, portanto, à natureza.
Esse senhorial poder do soberano é antes de tudo o poder do patriarcado, simbolizado na figura do pai, argumento que condiz com o seguinte trecho de Homo sacer: vida nua e o poder soberano (2007), de Giorgio Agamben:
E quando, em uma fonte tardia, lemos que Bruto, mandando à morte os seus filhos, “havia adotado em seu lugar o povo romano” é um mesmo poder de morte que através da imagem da adoção, se transfere agora sobre todo o povo, restituindo o seu originário, sinistro significado ao epíteto hagiográfico de “pai da pátria”, reservado a todos os chefes investidos no poder soberano (AGAMBEN, 2007, p.96).
O soberano, portanto, é o pai dos pais. É o patriarcado, supostamente ungido por Deus, essa transcendência sem mundos.
Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884), Engels, a propósito, argumentou que o patriarcado se impôs por meio de uma espécie de golpe de estado contra o matriarcado, dando origem à família, do latim, famulus, isto é, escravo.
O poder soberano o é, assim, poder senhorial sobre os escravos e a partir da morte destes, trabalhando como escravos, erguem-se a propriedade privada e o Estado patriarcais.
O Estado da propriedade privada é expressão institucional e historicamente determinada do patriarcado; esse poder soberano que guarda a relação entre a violência e a lei, tendo a morte como a sua razão de ser.
O que é a sociedade disciplinar?
A sociedade da soberania, no entanto, pelo aprofundamento da divisão social do trabalho, gradativamente tornou-se uma sociedade disciplinar.
Michel Foucault, em Vigiar e punir (1976), descreveu a sociedade disciplinar pela metáfora do diagrama e da rede de instituições como a família, a cadeia, o hospício, a escola, a fábrica e no limite até mesmo o próprio saber institucional, compreendido como unidade discursiva disciplinar autônoma, docilmente disciplinado em conformidade à ideologia dominante da divisão desigual do trabalho internacional.
Em certo sentido, a sociedade disciplinar, estilo Segunda Revolução Industrial, é uma sociedade em que a propriedade privada e o Estado são o próprio diagrama interinstitucional, tendo a fábrica como referência e os corpos dóceis como objetivo.
O estado de exceção patriarcal disciplinar se multiplica em rede por meio das referências centrais de cada instituição, seus “pais”, seus patriarcados. Na família, o pai; no hospício, o psiquiatra; na sala de aula, o professor; na cadeia, o delegado; nas forças armadas, o general.
No conjunto, tendo como centro a propriedade privada, o próprio Estado disciplinar é o patriarcado a decidir, com a colaboração de “todos os pais”, o estado de exceção disciplinar, com seus corpos dóceis e obedientes.
O que é a sociedade do controle?
Na sociedade do controle, entretanto, o patriarcado deixa de ter um pai, porque todos se transformam ao mesmo tempo em pais e filhos. É o patriarcado da Quarta Revolução Industrial, o da fusão das tecnologias, estilo in e out, dentro e fora interconectados.
Esse sistema in/out é a potência em ato da sociedade do controle, fusão, para lembrar o transumano CEO do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, entre o mundo físico, o digital e o biológico, entrelaçáveis por satélites, o fora cosmológico, por um lado; e por nanochips, por outro
É a sociedade da terceira idade das máquinas, para dialogar com Gilles Deleuze e Félix Guattari de Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Era dos “sistemas homens-máquinas, reversíveis e recorrentes” (DELEUZE; GUATTARI, 2008e, p.138-139).
Se a figura do famulus, o escravo, na sociedade da soberania era a contraparte do soberano, como encarnação do direito de morte deste; e se na sociedade disciplinar torna-se o corpo dócil disciplinado, na sociedade do controle o soberano se transforma em famulus e vice-versa.
Não há mais diferença entre o soberano e o “escravo”, ao menos no mundo do Metaverso, em que cada qual pode decidir o estado de exceção digital com um simples “excluir”, “like”, por exemplo, nas redes falsamente sociais.
É um mundo irreal, o da sociedade do controle, com a função algoritmo ocupando nos bastidores o lugar do soberano, assim como a Inteligência Artificial, essa nova e inusitada versão do patriarcado.
O lado “in”, da relação “in/out”, cada vez mais, com a nanotecnologia, dobra e desdobra a matéria, com a potência em ato de reinventá-la, sob a forma de uma segunda natureza. Também, no que diz respeito ao universo da biotecnologia, na sociedade do controle, a vida pode ser também infinitamente desdobrável, com o mapeamento do sistema genômico dos seres.
O soberano, como aquele que decide o estado de exceção, tendo como centro o Estado da propriedade privada, é antes de tudo aquele que coloniza, explora, extorque os corpos dos outros.
Na sociedade do controle, na sua versão “in”, a humanidade está na era da colonização do fim da unidade da matéria, tal como existe; e da unidade da vida, tal como existe.
Em sua versão “out”, indissociável da “in”, a Terra como todo é o foco do estado de exceção soberano, na sociedade do controle.
Sob o ponto de vista geopolítico, o soberano, Estados Unidos, tem como desafio articular a dupla pinça, a “in” e a “out”, o dentro e o fora, controlando a Inteligência Artificial desde uma perspectiva cosmológica, com o desafio unipolar de transformar a Terra toda no “in” de seu estado de exceção da sociedade do controle.
O que é a sociedade do controle integrado?
Guy Debord, em A sociedade do espetáculo (1967), dividiu o espetáculo, esse pleno momento do falso, em difuso, concentrado e integrado.
O primeiro seria o espetáculo da diversidade das relações mercantis estadunidenses, em que a diversidade o é literalmente diversidade de mercadoria, de fetichismos.
O segundo seria o espetáculo do eixo do chamado socialismo real, concentrado porque referenciado pelo espetáculo do personalismo do “ditador”, Stalin, argumento que este autor não compartilha.
O terceiro, por sua vez, é assim definido: “Uma terceira forma constitui-se a partir de então pela combinação das anteriores, e na base geral da vitória da que se mostrou mais forte, mais difusa. Trata-se do espetacular integrado, que doravante tende a se impor mundialmente” (DEBORD, 1997, p.172).
A sociedade do controle integrado se constitui não pela relação entre o espetacular difuso e concentrado, mas pelo amálgama entre a sociedade da soberania, a disciplinar e a do controle, com a primazia das forças produtivas tecnocientíficas desta última, com sua dupla pinça “in/out”.
A sociedade da soberania, como se vê, é a mais antiga e a mais atual, sendo disciplinar soberana, à época do sistema de dominação capitalista/imperialista europeu/ e do controle integrado, sob o eixo da hegemonia do ultraimperialismo estadunidense.
A praça pública em que se encena o sacrifício, em nome do soberano, tornou-se mundialmente espetacular.
A invasão do Iraque pelo ultraimperialismo estadunidense e pela vassalagem da OTAN constitui um marco fundamental da sociedade do controle integrado, com suas chuvas de mísseis cruzando o céu iraquiano impondo o direito de morte soberano ao genérico e impessoal povo. E tudo em tempo real, onipresentemente espetacularizado pelas telas de televisão, pelas redes sociais, pelos celulares.
Um dos traços, assim, da sociedade do controle integrado passa a ser a morte anônima e coletiva do povo, como simples existência fática, matável.
No entanto, o soberano necessita pessoalizar a morte, garantindo assim o seu direito transcendental de matar. O assassinado de Muammar al-Gaddafi, em 20 de outubro de 2011, com seu corpo exposto na “praça pública” midiática mundial, foi uma encenação real do poder soberano do ultraimperialismo ianque, assim descrito pela eufórica Secretária de Estado de Obama, Hilary Clinton: “ Nós viemos, nós vimos, ele morreu!”
Os três patriarcados
O patriarcado não é um rosto. Não é o homem, enquanto tal. É uma estrutura em que o direito de morte contra os corpos dos outros é assumido por um soberano na relação de apropriação privada do famulus, da família explorada, escravizada – no limite, a família humana e também a natureza.
A dimensão senhorial do soberano é constituída por relações dicotômicas, como: sujeito e objeto, ativo e passivo, homem e mulher, colonizador e colonizado, explorador e explorado, sociedade e natureza. Não será desnecessário dizer que essas relações dicotômicas sejam o motivo central da destruição da natureza, concebida patriarcalmente como aquela que ocupa o polo do objeto, passivo, colonizável, explorável.
De qualquer forma, se o soberano é “aquele que decide o estado de exceção” e deve necessariamente fazê-lo para que o seja, ele o faz a partir das forças produtivas disponíveis de sua civilização, de sua época, dos modos de produção realmente existentes: o da sociedade da soberania, baseada em relações escravistas e feudais de produção; o da civilização disciplinar soberana europeia, marcada por relações capitalistas de produção, tendo a Segunda Revolução Industrial como referência; o da sociedade do controle integrado, a da reversibilidade entre homens e máquinas, hegemonizada pelo ultraimperialismo estadunidense.
Existem dessa forma três tipos de patriarcado, formando no conjunto uma tradição patrilinear, com origem na história ocidental, porque esta, ainda na Grécia antiga, foi o epicentro do golpe de estado patrilinear ao impor a propriedade privada da terra, com a sua consequência fatal, a saber:o individualismo anticomunitário, autoconcebido como o agente da ação, o sujeito, o explorador.
O patriarcado da sociedade da soberania é representado hoje pelo machista típico, caricatural, pois tem a cara e os atos da coisa: impõe-se à força, sem mais, a partir de um sistema de corpo a corpo que pode ser definido como estupro, sujeitando os corpos dos outros, do famulus.
Suas figuras típicas na era da sociedade do controle integrada são: o fascista, o nazista, o lúmpen, o fundamentalista, os mercenários.
Existe o patriarcado da sociedade disciplinar. Se esta é estriada por múltiplas instituições, família, fábrica, escola, hospício, cadeia, saberes segmentados, a palavra de ordem que circula em cada instituição é: disciplina sobre os corpos, o que inclui a sexualidade e antes de tudo a sexualidade feminina e das alteridades negras, homoafetivas.
Como se vê, o patriarcado da sociedade disciplinar é mais abstrato e tem relação com o fato de que em cada instituição disciplinar há uma hierarquia que se impõe sobre e contra tudo que é concebido como objeto, como passivo, dissecável, matável.
O patriarcado da sociedade disciplinar é eurocêntrico, porque sua estrutura advém da Segunda Revolução Industrial e sua expansão pelo planeta diz respeito à dominação europeia.
Como um patriarcado não abandona o outro, o disciplinar é disciplinar soberano e se manifesta como soberano, de forma caricatural, nas periferias do mundo sob a forma de guerra, por exemplo, sempre afetando mais as mulheres.
Existe o patriarcado da sociedade do controle integrado. Este é ainda mais abstrato do que outro, além de deter o seguinte traço diferencial: é metamórfico. O do controle é um patriarcado tecnológico e virtual. Adquire cada vez mais características inalâmbricas, estilo wifi, pois cada vez mais independe de meios físicos para atuar.
O patriarcado da sociedade do controle integrado adquire cada vez mais uma configuração atmosférica; virtual, espetacular. Isso não significa que não se manifeste no mundo material, inclusive sob a forma de estupro. Pelo contrário: o do controle integrado é um patriarcado que gerencia em escala planetária os dois patriarcados anteriores, deslocando-os de um lado para outro tendo em vista objetivos geopolíticos de dominação.
É metamórfico porque sua potência virtual o torna mais plástico para manipular rostos, para, enfim, desapegar-se das definições tradicionais de identidade e de gênero e ao mesmo tempo manipulá-las, ora usando as coordenadas típicas da sociedade da soberania, ora as da disciplinar, sempre tendo como referências as forças produtivas tecnocientíficas do controle.
Como a base do patriarcado é a economia, desde sempre, por ser uma forma primária de divisão de trabalho a partir da qual as riquezas são concentradas nas mãos de um sistema patrilinear, o patriarcado do controle não perde essa dimensão, antes pelo contrário: usa sua potência metamórfica para dividir os povos no ato mesmo dos usos cotidianos dos artefatos tecnológicos como celulares, computadores, tablets, redes sociais.
Se o patriarcado disciplinar diz respeito ao sistema colonial europeu, o do controle é estruturado pelo sistema de colonização do ultraimperialismo estadunidense, que usa o controle integrado e mundial da indústria cultural para gerenciar os dois patriarcados anteriores, com o objetivo de submeter a humanidade inteira, dentro da premissa patriarcal de nossa época: “America first”.
O que fazer? Não há mistério. A questão de base é a economia, já dissera um assessor de Clinton, usando o seguinte termo: “É a economia, estúpido!”.
Isso significa que é sim a relação capital versus trabalho que vem primeiro e é essa relação que tem que ser atualizada, tendo em vista os três patriarcados, para derrotar o patriarcado, superando o capitalismo, esse sistema patriarcal que divide o mundo em homens e mulheres, de forma estrutural: os homens são os donos dos meios de produção; e as mulheres são as operárias; ou os operários.
O patriarcado unipolar da sociedade do controle integrado ianque é planetário e seu “famulus” somos nós, os povos do mundo, incluindo o povo norte-americano.
Referências:AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. TraduçãoHenrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. TraduçãoDavi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.DELEUZE, Gilles.Foucault. Tradução: Claudia Sant´Anna Marins. São Paulo: Brasiliense, 1988.DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução: Peter Pál Pelbart e JaniceCaiafa. São Paulo: Editora 34, 2008 v. 5.ENGELS, Friedrich. A Origem da família, da propriedade privada e do Estado.Trad. Leandro Konder. Rio de Janeiro, 1984.FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete, Petrópolis: Vozes, 1987SCHMITT, Carl. Teología política. Tradução: Francisco Javier Conde e Joge Navarro Pérez. Madrim: Editorial Trotta, 2009.SOARES, Luis Eustáquio. A sociedade do controle integrado: Franz Kafka e Guimarães Rosa. Vitória: Edufes, 2014.
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