Imagem: Grupo de Ação
Por EUGÊNIO BUCCI*
Bolsonaro é o maior estimulador da tensão que se alastra e que tende a desaguar em atos de agressão física
“Você sabe o que é sentido figurado? Você sabe o que é? Você estudou português na faculdade ou não?” Assim ralhou o presidente da República, no Palácio do Planalto, ao ouvir uma pergunta de que não gostou. Entendamos o contexto.
O bate-boca se deu na segunda-feira, 11 de julho, dois dias depois de o guarda municipal Marcelo Arruda ter sido morto a tiros, durante sua festa de aniversário, na cidade de Foz do Iguaçu (PR). Gravado pelas câmeras de segurança do local da comemoração, o crime ganhou as telas eletrônicas, desde os telejornais do horário nobre até os grupos de família no WhatsApp. O assassino invadiu o salão atirando, enquanto gritava: “Aqui é Bolsonaro!”. A vítima, militante do Partido dos Trabalhadores, tinha escolhido o ex-presidente Lula como tema do seu aniversário.
Com tamanha carga partidária, a tragédia adquiriu um significado político eloquente – um bolsonarista mata a tiros um petista, às vésperas das eleições. Daí vem a pergunta: o que é que os pronunciamentos odientos do presidente têm que ver com esse homicídio? Pois era isso que os repórteres queriam ouvir do próprio. Durante a rápida entrevista, alguém lembrou uma fala de Bolsonaro em 2018, durante um comício no Acre. Na ocasião, o então candidato tomou emprestado um destes tripés usados por fotógrafos e cinegrafistas e o segurou como se fosse uma metralhadora, fazendo tremer os braços, como se distribuísse rajadas nos ares do Norte. Depois, pegando de volta o microfone, bradou, quase gargalhando: “Vâmu fuzilá a petralhada aqui do Acrê”.
Quando ouviu menções à sua incitação ao fuzilamento de petistas, proferida há quatro anos, o hoje chefe do Executivo se agastou. Foi aí que usou como escudo as figuras de linguagem: “Você sabe o que é sentido figurado? Você sabe o que é? Você estudou português na faculdade ou não?”.
Não é comum o oferecimento de disciplinas de português em faculdades que ensinam o jornalismo. Os profissionais desse campo tentam estudar o idioma durante a vida inteira, mas dificilmente encontrarão aulas de gramática ou de formas narrativas no seu currículo de graduação. O presidente da República não sabe disso, lógico, assim como não sabe o que significa “sentido figurado”. Se invoca a expressão, só o faz para escapulir de uma responsabilidade que tem. Ele não é culpado imediato pelos disparos de Foz do Iguaçu, mas é, sim, o maior estimulador da tensão que se alastra e que tende a desaguar em atos de agressão física.
Por certo, Jair Bolsonaro não faz ideia do que seja o tal “sentido figurado”; sua prosódia de exacerbações, avessa a qualquer forma de elevação estética, apenas desfigura o sentido das representações simbólicas. Onde a linguagem triunfa sobre a carnificina, os seus urros trazem de volta a pedra bruta que tritura o espírito de cada palavra. As coisas que ele diz, e as diz muito mal, as coisas malditas que saem dos seus resmungos ou de suas infâmias produzem, sem rodeios nem mediações, a generalização da violência. A responsabilidade é direta, crua, não há como disfarçá-la ou maquiá-la.
Chega a ser estranho, desconcertante mesmo, que tanta gente fique por aí falando em polarização. A polarização já era; eclodiu antes de 2018 e depois virou outro bicho. Embora seus resíduos subsistam, o que está hoje na nossa cara não resulta mais de um debate polarizado, mas de uma fascistização unilateral e desembestada. É com isso que estamos lidando agora.
(Um parêntese aqui. Os cientistas políticos evitam usar o termo fascismo para descrever o quadro presente; as circunstâncias históricas da Itália dos anos 1920 não coincidem com o que se passa agora no nosso triste país – além do quê, Mussolini, em seu início, defendia os direitos trabalhistas, enquanto o bolsonarismo os mastiga feito hiena –, mas o que está aí carcomendo por dentro o Estado Democrático de Direito e degradando por fora dele toda a cultura política é, sim, um fascismo anacrônico, ele mesmo desfigurado, oco, um fascismo ajoelhado diante dos financistas e dos políticos de aluguel.)
O desastre fascista, como costumávamos saber, mora no “guarda da esquina”. Era assim na Itália de cem anos atrás e é assim agora no Brasil. São estes anônimos, armados pelas políticas públicas do governo, os colecionadores de trabucos e de mortes, que se sentem cada vez mais convocados a tomar a iniciativa de abater os dissidentes. Hoje, como antes, o fascismo é o império dos matadores medíocres, insignificantes e obscuros que se veem autorizados a dar cabo da vida de gente luminosa.
Este é o golpe que está vindo aí, que já começou e que vai ainda nos custar mais sangue. O fascismo insepulto dos seres menores, não nos enganemos mais, foi produzido pelo discurso desfigurado que a nossa gente elegeu há quatro anos. É chocante constatar que tantos ainda se dobrem a essa moléstia política. Dói na espinha ver como tantos eleitores endinheirados prometem dobrar a aposta. Os reprimidos clamam por mais repressão. Os devotos obtusos, há cem anos, como agora, se aconchegam no nervo frio do mal.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
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