terça-feira, 23 de agosto de 2022

As sanções e o declínio do dólar



Prabhat Patnaik [*]

A hegemonia do US dólar baseava-se no facto de que os detentores da riqueza mundial consideravam-no “tão bom quanto o ouro” ainda que, após o colapso do sistema de Bretton Woods, já não fosse oficialmente convertível em ouro a uma taxa fixa. Estes detentores de riqueza eram de duas espécies: indivíduos e instituições privadas, e bancos centrais que mantivnham reservas de câmbio estrangeiras nos seus próprios países. A principal razão para ser considerado tão bom quanto o ouro era porque não se esperava que os preços de bens e serviços, com os quais o preço do ouro se move sincronicamente, ascendessem indevidamente em termos de dólar. Acreditava-se que este fosse o caso uma vez que as taxas salariais em dólares eram mantidas em cheque através da existência de um exército de trabalho de reserva, ao passo que o preço em dólar dos insumos mais importantes, nomeadamente o petróleo, era suposto que permanecesse estável ao longo do tempo, apesar de flutuações de curto prazo, graças ao poder dos EUA para impor “disciplina” aos produtores de petróleo.

FACTORES ADICIONAIS

No caso dos bancos centrais, havia um factor adicional. Eles mantinham as suas reservas primariamente em dólares porque o dólar era também o meio de transação em grande parte do comércio internacional, o qual era claramente de carácter multilateral. No comércio realizado através de acordos bilaterais, cada país pode manter direitos sobre o outro em termos da divisa deste último, na crença de que tais direitos seriam compensados ao longo tempo, ou seriam feitos para serem compensados ao longo do tempo através do comércio. Mas no comércio multilateral, onde o âmbito para tal compensação bilateral não existe, é necessário uma divisa comum para a detenção de reservas, cujo valor em termos de commodities não se espera que decline indevidamente, nomeadamente através de uma taxa maior do que os custos de transporte de tais commodities (porque do contrário as commodities seriam mantidas). O dólar, não surpreendentemente, era a divisa escolhida.

Esta situação já começar a mudar, mas a imposição de sanções contra a Rússia na esteira da guerra da Ucrânia acelerou grandemente o ritmo desta mudança. As sanções aumentaram drasticamente os preços do petróleo e do gás natural, de que a Rússia é uma grande exportadora, mas não devido a qualquer escassez real destas commodities.

Ao invés disso, a atividade especulativa aumentou devido a expectativas de futuros aumentos de preços pois os EUA têm um embargo sobre a compra destas commodities à Rússia. Em consequência, as margens de lucro das companhias petrolíferas estado-unidenses aumentaram substancialmente, contribuindo para o aumento agudo da taxa de inflação. Em suma, a ligação implícita petróleo-dólar foi rompida, o que coloca o dólar sob pressão. Em contraste, uma vez que o preço do petróleo em termos de rublos foi fixado, o rublo emergiu como uma divisa favorecida que é “tão boa quanto o petróleo” e portanto está a caminho de se tornar “tão boa quanto o ouro”.

A procura por rublos foi ainda mais promovida pela insistência da Rússia em que venderia petróleo e gás natural só a compradores que os pagassem em termos de rublo. Ter dólares, portanto, já não é útil para obter petróleo e gás russo, o que faz com que potenciais compradores se apressem a adquirir rublos ao invés de dólares.

Mas estes dois fatores, por importantes que sejam, não são a totalidade deles. Há um reavivar de acordos comerciais bilaterais com a Rússia por parte de vários países, incluindo a Índia. Tais acordos existiam anteriormente em relação à União Soviética e só chegaram ao fim devido ao colapso da mesma. Sob tais acordos, o US dólar era irrelevante para efetuar o comércio; havia uma certa taxa de câmbio acordada entre as duas divisas e os direitos decorrentes de superávites comerciais eram realizados nos termos da divisa do país deficitário. Tais excedentes são semelhantes a “reservas”, de modo que se pode dizer que a proliferação do bilateralismo é simultaneamente um meio de diversificação de reservas que se afasta dos dólares em direção a outras divisas, especialmente rublos no caso de défices comerciais da Rússia.

Todas estas razões incrementam, mantendo tudo o mais constante, a procura por rublos em relação aos dólares. Não é nada surpreendente, portanto, que a taxa de câmbio do rublo que havia mergulhado imediatamente após o anúncio das sanções se tenha reavivado para um nível sem precedentes há muito anos. Em Agosto de 2021, a taxa de câmbio estava em torno dos 72 rublos (em números redondos) por dólar; após o anúncio das sanções, ela subiu em favor do dólar para 136 rublos por dólar, mas a seguir o rublo ascendeu drasticamente de modo que em 11/Agosto/2022 a taxa estava em torno dos 61 rublos por dólar (60,6957 para ser exato). Ao longo do período de 12 meses, Agosto/2021 a Agosto/2022, a apreciação do valor do rublo em relação ao dólar atingiu mais de 22 por cento.

PELO BILATERALISMO

Por outras palavras, as sanções contra a Rússia acabaram por ser um "golo contra", não só para a União Europeia que, como é óbvio, tem estado a cambalear sob o seu impacto, mas até mesmo para os Estados Unidos. Ainda mais importante, estas sanções aceleraram o movimento para longe do multilateralismo e em direção a uma proliferação de acordos bilaterais.

Este movimento significa também um grave retrocesso para a ordem neoliberal. A essência dessa ordem foi a imposição do multilateralismo; na verdade, a hegemonia do imperialismo ocidental liderado pelos EUA e expressa através da supremacia da sua moeda, que a ordem neoliberal procurou manter, foi afirmada através da imposição de um acordo multilateral.

A razão pela qual as sanções contra a Rússia se revelaram um golo contra do Ocidente é porque foram baseadas num erro de cálculo. Pensaram que as sanções poriam a Rússia de joelhos tão rapidamente que a sua ação militar na Ucrânia acabaria num instante; falava-se mesmo de uma mudança de regime na Rússia. Mas tudo isto era absolutamente irrealista. As sanções, pela sua própria natureza, representam uma violação do multilateralismo, uma exclusão de um país que é retirado da disposições multilaterais; a esperança das potências ocidentais foi sempre a de que a violação do multilateralismo fosse mantida confinada apenas a determinadas instâncias e atingisse rapidamente o seu fim. Mas se esta suposição se verificou errada, então tal violação do multilaralismo torna-se um contágio; ela multiplica-se e prolifera pondo em risco toda a ordem existente, como realmente aconteceu.

Naturalmente, seria totalmente prematuro concluir daquilo que foi dito que o declínio do dólar atingiu uma fase de finalização. Para os detentores de riqueza mundial constituídos por indivíduos e instituições, o dólar continua a ser, ainda hoje, a divisa mais atrativa a longo prazo. De facto, com o aumento das taxas de juro americanas em resposta à inflação atual, as finanças que haviam fluído para o terceiro mundo quando as taxas de juro americanas estavam perto de zero, estão a fluir de volta para aquele país. O resultado é uma desvalorização das divisas do terceiro mundo, incluindo a rupia indiana, em relação ao dólar. Este fluxo de retorno não se deve apenas ao movimento das taxas de juro que tornou o dólar atrativo; os países do terceiro mundo também têm elevado as suas taxas de juro em resposta ao aumento das taxas dos EUA. Mas isso não tem impedido o refluxo das finanças, porque no mundo incerto em que estamos a entrar, as finanças sentem-se mais confortáveis na sua base de origem, que são os Estados Unidos. Dada esta situação, escrever desde já obituários para a hegemonia do dólar seria totalmente prematuro e tolo.

Dito de outra forma, existem duas tendências distintas a este respeito na economia mundial contemporânea: uma é a fuga das finanças do terceiro mundo para os EUA à medida que aumenta as suas taxas de juro para combater a inflação; a outra é a propagação gradual de acordos bilaterais que substituem reservas em dólares por reservas detidas noutras moedas (sobretudo rublos no contexto atual imediato) e, assim, minam em certa medida a posição do dólar. Estas duas tendências atuam em direções opostas no que diz respeito ao valor do dólar. Mas esta última tendência é ainda menos significativa em comparação com a primeira, embora seja precursora do que está para vir. Porém, permanece o facto de que a ordem neoliberal que celebrou o multilateralismo e o impôs por todo o globo está a chegar ao fim.

21/Agosto/2022

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
Este artigo encontra-se em resistir.info

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