Lula e Geraldo Alckmin (Foto: Ricardo Stuckert)
O caminho de recuos ideológicos táticos determinados por desafios eleitorais preparou o terreno para o avanço da extrema-direita, escreve Roberto Amaral
Roberto Amaral
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A história brasileira presente está marcada pela emergência de uma formação político-ideológica de extrema-direita arrimada (eis o fato novo) em fortes bases populares, fenômeno impercebido pelos sismógrafos da esquerda organizada, mesmo após os eventos de 2013. Encontravam-se ali, porém, elementos anunciadores das dificuldades eleitorais de 2014 e do golpe de Estado parlamentar de 2016, a abertura da porteira para a crise que ainda nos acompanha, e nos acompanhará por mais quanto tempo não sabemos. Preferimos não ver. Para nossos partidos resultava mais cômodo, naquela altura, tomar o lulismo como o indicador de suposta politização da sociedade brasileira. Desatentos ao caráter de nossa formação histórica (latifúndio, escravismo, genocídio de negros e populações nativas, racismo, autoritarismo larvar, sotoposição dos interesses populares), nos deixamos surpreender pela ascensão do bolsonarismo, e reduzimos o fenômeno político-social-ideológico a mero episódio eleitoral. As consequências vinham a galope. A disjuntiva civilização ou barbárie é a encruzilhada que a história nos coloca.
Na política, como na natureza, não há fenômeno sem causa.
A pregação fascistóide, logo transitando para a organização de massa, encontrou terreno propício à boa semeadura na medida em que as forças populares, aquelas que outrora se identificavam como revolucionárias, e as reformistas, as organizações de esquerda e de centro-esquerda de um modo geral, e particularmente as organizações socialistas e comunistas, renunciaram ao proselitismo político (portanto ao confronto ideológico), visto como incompatível seja com a institucionalização, seja com o eleitoralismo, a que aderiram de peito aberto nossos partidos, seguindo os passos suicidas dos partidos comunistas e socialistas europeus, hoje condenados à irrelevância, de que nos dão notícia, mais recentemente, as eleições francesas e italianas.
Esse caráter protofascista da reação emergente, que mais e mais se adensa, somente seria percebido a partir da campanha de 2018 e da eleição para a presidência da república do até então inexpressivo parlamentar de segunda linha do chamado “baixo clero”. Isto é, já tardiamente. É quando - e pela vez primeira na história republicana - a extrema-direita, assumida como tal, toma assento no poder segundo as regras da democracia representativa, cuja defesa é encampada, como prioridade, pela esquerda, ensejando a possibilidade de largo arco de alianças de proteção do regime, como ocorrera em 1955 e em 1961. Naqueles anos, como agora, o projeto golpista era operado dentro do governo. No primeiro caso a maquinação era liderada pelo próprio presidente da República em exercício (deputado Carlos Luz); no segundo, o comando era dos três ministros militares. Ambas as tentativas foram derrotadas pela mobilização popular. Na hipótese concreta dos nossos dias o presidente da República é o principal agente golpista, acolitado pela cúpula militar, a presidência da Câmara dos Deputados e a pusilanimidade do procurador geral da República. E suas hordas e seus milicianos. Seu antídoto é igualmente a mobilização popular, seja para impedir o golpe anunciado, seja para assegurar a eleição de Lula, seja para garantir seu governo, o que muito dependerá das descuidadas eleições parlamentares federais, nas quais poder político e poder econômico investem sem limites e cada vez mais na medida em que a reeleição de Bolsonaro mais se distancia da realidade.
A crise de nossos dias (organizacional, política e partidária) tem aí uma de suas raízes mais profundas, atingindo a capacidade de mobilização das militâncias partidárias e sindicais. A luta de classes, como conceito, ficou encerrada nos compêndios do século XIX, e a educação das massas, dever das esquerdas, foi substituída pelo eleitoralismo, segundo os moldes da política tradicional e a lógica política burguesa. A potencialidade política dos partidos foi canalizada para a renovação de mandatos parlamentares indiferenciados.
A opção pelo eleitoralismo, como meio e fim, necessariamente relegava as questões doutrinárias a plano secundário.
O tratamento ideológico das campanhas eleitorais (que deveriam ser vistas, sempre, como fenômenos políticos, espaço privilegiado do embate ideológico) foi entregue ao saber e à indigência ética do marketing político que anulava valores, princípios e antigas diferenciações programáticas. A vitória da direita se deu por WO.
Foi esse caminho, de recuos ideológicos táticos determinados por desafios eleitorais, que preparou o terreno para o avanço do conservadorismo de extrema-direita, de que o bolsonarismo é sua expressão paranoica. E preparou o terreno para o esvaziamento popular do projeto socialista, que se viu sem patrocínio.
Uma vez mais colhemos os frutos de nosso abandono, não só da batalha ideológica, quanto mesmo da organização da militância e da formação de quadros. Às nossas dificuldades de mobilização se associou a de há muito anunciada crise do movimento sindical, a base essencial dos partidos de esquerda.
A visão conservadora do processo social consagra a história das classes dominantes brasileiras, que, da Colônia à República, dos escravocratas e traficantes da Colônia aos agentes da especulação financeira, sempre se opuseram a qualquer sorte de mudança ou reforma, concedidas tão-só aquelas que não alteravam a natureza do mando. A ruptura do statu quo é rejeitada e em seu lugar se sobrepõe a conciliação, instrumento mediante o qual a casa-grande conserva seu mando.
As iniciativas da sociedade civil, os fatos desta semana, seja a Carta concertada pelos professores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, seja o texto promovido pela FIESP que começa a circular, contribuem decisivamente para a causa democrática. Bolsonaro, todavia, em seu golpismo, não está só, mas acolitado, se não orientado, ou conduzido, por uma entourage militar primária, descomprometida com a soberania nacional, o progresso social, o desenvolvimento e a institucionalidade democrática, em conflito aberto com o pacto social de que resultou o fim da ditadura em 1985 e a reconstitucionalização de 1988; os fardados não apenas respaldam os crimes comuns e os crimes políticos cometidos por Bolsonaro contra a institucionalidade democrática, como atuam diretamente na tentativa de desmoralizar o processo eleitoral no qual a democracia representativa vai colher legitimidade. No afan de melhor servir ao seu senhor se esmera o general ministro da defesa.
As forças armadas do Estado brasileiro são historicamente descomprometidas com a democracia, que seguidamente têm golpeado: 1937, 1954, 1955, 1961, 1964, 2016; os fardados criaram a candidatura do capitão, ditaram-lhe o conteúdo, organizaram sua campanha inclusive nos quartéis, firmaram os contornos do governo e lhe dão sustentação, mesmo nas ameaças de insurreição contra a ordem constitucional.
Bolsonaro conta com o apoio de considerável parcela do empresariado, notadamente do grande capital financeiro, e ainda conta, o que é pior, com significativo apoio popular, algo como 30% da população, nada obstante ser o responsável, com sua coorte de fardados, pelo pior governo conhecido pela República. Esta resiliência não pode ser subestimada, posto que, passadas as eleições, qualquer que seja o resultado, o bolsonarismo permanecerá como ator destacado na frágil democracia representativa brasileira.
O processo eleitoral, porém pode ensejar, a um só tempo, tanto a construção de uma barragem ao bolsonarismo (o nome fantasia do neofascismo caboclo) quanto, como sua primeira consequência, a desejada retomada do poder político pelas forças progressistas e de esquerda em necessária aliança tática com setores da burguesia, de último comprometidos com a preservação da institucionalidade democrática, ameaçada pelo presidente candidato à reeleição e seus engalanados. Pode ser o retorno ao programa de reformas possíveis dentro do atual regime, mas dependentes de uma nova correlação de forças, a se estabelecer na ordem política e na sociedade civil. Dessa nova maioria — que alimentará a mobilização popular - dependerá o caráter do governo de centro-esquerda com o qual nos acena a desejada eleição do ex-presidente Lula.
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Os fardados e as eleições - O general que acaba de deixar a presidência do STM declara que o papel das forças armadas do Estado brasileiro é garantir a legitimidade das eleições. Não é. No processo eleitoral seu ofício é transportar urnas pela vastidão do país, para o que, aliás, são regiamente remuneradas (R$110,6 milhões.) E é para o que estão realmente adestradas, pois, para o cumprimento de seu dever constitucional (assegurar a soberania nacional) não estão preparadas nem técnica, nem tecnológica, nem ideológica, nem civicamente. Operando equipamentos de segunda linha, seus corações e mentes estão focados nas cartilhas dos cursos de pós-graduação das academias militares que os EUA organizam para a formação política dos oficiais de sua periferia.
A legitimidade do processo eleitoral decorre da ordem constitucional, dos partidos, da justiça eleitoral e, principalmente, da participação dos eleitores. Por enquanto o papel dos fardados tem sido o de tumultuar o processo, a serviço do golpismo.
* Com a colaboração de Pedro Amaral
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