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Samarcanda, cidade definitiva da Rota da Seda, situada num cruzamento inigualável de vias comerciais na Eurásia, é o local ideal do qual examinar o rumo que está tomando a aventura da Nova Rota da Seda. Para começar, acontecerá em Samarcanda a próxima reunião dos chefes de estado da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), em meados de setembro.
A antiga cidade deslumbrou Alexandre o Grande em 329 a.C. e levou a dinastia Tang a apaixonar-se loucamente por seus pêssegos dourados. Foi centro cosmopolita que abraçou o culto zoroastrista do fogo e chegou a flertar com o cristianismo nestoriano, até que em 712 chegaram conquistadores árabes sob a bandeira do Profeta e mudaram tudo para sempre.
No século XIII, os mongóis irromperam em cena com o proverbial estrondo. Mas então Tamerlão (Timur), o conquistador turco-mongol que fundou a Dinastia Timúrida no final do século XIV, propôs-se a embelezar Samarcanda, fazendo dela um resplandecente diamante. Para tanto, atraiu para lá artistas de todo seu vasto império – Pérsia, Síria, Índia – para fazer de Samarcanda “menos um lar, que um maravilhoso troféu”.
Mas Tamerlão, essencialmente nômada, viveu em tendas e jardins suntuosos na periferia de sua joia urbana.
O frenesi comercial da Rota da Seda arrefeceu no século XVI, depois que os europeus finalmente “descobriram” a sua própria Rota da Seda Marítima.
A Rússia conquistou Samarcanda em 1868. Por breve tempo, instalou ali a capital da República Socialista do Uzbequistão, antes da transferência para Tashkent. Depois, até 1991, Samarcanda mergulhou na invisibilidade. Agora a cidade está pronta para reavivar a antiga glória, como elo chave do Século Eurasiático.
O que Tamerlão pensaria de tudo isso?
“Conquistador do Mundo”
Tamerlão nasceu numa pequena aldeia nos arredores, fora de Samarcanda, num clã de mongóis turcos, apenas um século após a morte de Genghis Khan. Ferido por flechas no ombro direito e no quadril quando tinha apenas 27 anos, foi ridicularizado com o apelido pejorativo em persa Timor-i-Leme (“Timur, o coxo”), mais tarde latinizado para Tamerlão.
Ninguém gostaria de ter de enfrentar Tamerlão em combate. Tampouco alguém gostaria de lutar contra Genghis. E Tamerlão fixou, como objetivo único, tornar-se “Conquistador do Mundo”. Se assim quis, melhor fez!
Tamerlão derrotou o Sultão Otomano Beyazid em Ancara (não fale desse assunto com turcos); destruiu a Horda de Ouro nas estepes do Cazaquistão; bombardeou exércitos cristãos em Esmirna (atual Izmir) usando cabeças decepadas como ‘balas’ de canhão.
Em Bagdad em 1401 – na cidade o evento ainda é vividamente lembrado, como constatei em 2003 – seus soldados mataram 90 mil residentes e cimentaram as respectivas cabeças em 120 torres; Tamerlão controlou todas as rotas comerciais de Delhi a Damasco; faz pensar em versos de Edgar Allan Poe, em drama de Christopher Marlowe, em ópera de Vivaldi.
O ocidente coletivo zumbificado, especialista em ‘cancelamento’, falaria de Tamerlão como “autocrata” ou como “ditador”, como falam de Vladimir Putin. Bobagem.
Foi islamizado, como foi tornado túrquico – mas nunca fanático religioso como os jihadistas salafistas de hoje. Não sabia escrever nem ler, mas falava fluentemente persa e túrquico. Sempre demonstrou enorme respeito pelos estudiosos. Um nômade sempre em movimento, que supervisionou a criação de alguma das arquiteturas urbanas mais deslumbrantes da história do mundo.
Todas as noites às 21h, em frente à iluminação psicodélica que envolve o tesouro arquitetônico do Registão (“lugar arenoso”), originalmente um bazar num cruzamento de rotas comerciais, em meio às vozes que se misturam, de inúmeras famílias de Samarcanda, as palavras de Tamerlão ainda ressoam: “Quem duvide de nosso poder, que olhe para os nossos edifícios”.
Tamerlão morreu em 1405 em Otrar – hoje sul do Cazaquistão – quando planeava a Mãe de Todas as Campanhas: invadir a China Ming. Esse é um dos maiores “mas... e se?” da história. Tamerlão conseguiria islamizar a China confucionista? Teria deixado sua marca ali, como os mongóis ainda muito presentes no inconsciente coletivo russo?
São perguntas que giram na mente, quando se está frente à frente do túmulo de Timur – impressionante placa de jade negro no Gur-i-Mir, na verdade um santuário muito modesto, onde estão também as tumbas de um conselheiro espiritual de Tamerlão, Mir Sayid Barakah, e de membros da família, como um neto, o renomado astrônomo Ulug Beg.
De Tamerlão a Putin e Xi
Tamerlão não é material com que Xi Jinping e Vladimir Putin operem, claro, muito menos o atual presidente usbeque Shavkat Mirziyoyev.
O que é impressionante agora, como vi em campo em Tashkent e depois na estrada para Samarcanda, é como Mirziyoyev está habilmente a aproveitar-se tanto da Rússia como da China mediante sua política multivetorial para configurar o Uzbequistão como potência da Ásia Central – e da Eurásia – até os anos 2030.
O governo está investindo pesadamente em um enorme Centro de Civilização Islâmica em Tashkent, próximo à histórica praça Khast-Imam, lar do profundamente influente Instituto Islâmico al-Bukhari, e também está construindo todo um novo complexo empresarial nos arredores de Samarcanda para a cimeira da OCX.
Os norte-americanos investiram em um centro de negócios em Tashkent, que inclui um Hilton novinho em folha. A um quarteirão de distância, os chineses estão construindo sua própria versão. Os chineses também estarão envolvidos na construção de um corredor de transporte essencial da Nova Rota da Seda: a ferrovia Paquistão-Afeganistão-Uzbequistão (Pakafuz), também conhecida como Ferrovia Trans-Afegã, no valor de 5 mil milhões de dólares.
O Uzbequistão, pelo menos até aqui, não aderiu à ideia da União Econômica Eurasiática (UEE), que exige a livre circulação de mercadorias, pessoas, capital e serviços. O país privilegia a própria autonomia. A Rússia aceita, porque as relações bilaterais com Tashkent continuam fortes, e não há como Tashkent aproximar-se da NATO.
Assim, da perspectiva de Moscovo, ficar mais acomodado com o Uzbequistão pós-Islam de Karimov continua a ser necessário, ao mesmo tempo sem coagi-lo a aderir às instituições de integração da Eurásia. Não há pressa, e com o tempo pode-se chegar lá. A Rússia goza de enormes índices de aprovação no Uzbequistão – embora não tão altos como no Tadjiquistão e no Quirguistão.
Cerca de 5 milhões de migrantes dos “-stões” da Ásia Central estão trabalhando na Rússia – na maioria usbeques e tadjiques, mesmo que agora também procurem emprego no Golfo Pérsico, na Turquia e na Coréia do Sul.
Como uma de suas principais esferas “protegidas” de influência, Moscovo considera os estados da Ásia Central como parceiros críticos, parte de uma visão eurasiática consolidada que está em total contraste com a fronteira ocidental e a rápida desintegração da Ucrânia.
Todos os caminhos levam à Iniciativa Cinturão e Estrada
O ângulo chinês, definido pela sua ambiciosa Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), é muito mais matizado. Para toda a Ásia Central, a ICE opera com uma equação: desenvolvimento de infraestrutura equivale a integração nas cadeias de abastecimento do comércio global.
Sob o Presidente Mirziyoyev, o Uzbequistão, assim como seus vizinhos, vinculou sua estratégia de desenvolvimento nacional à ICE: é o que está embutido na “Estratégia de Ações em Cinco Direções Prioritárias de Desenvolvimento”, documento oficial. O Uzbequistão também é membro oficial do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII).
O relacionamento da China com a Ásia Central baseia-se, naturalmente, na era soviética, mas também leva cuidadosamente em conta as divisões territoriais e as complexíssimas questões fronteiriças.
O colapso da URSS viu, por exemplo, um rio, uma vala de irrigação, uma touceira, árvores ou mesmo um monumento brutalista à beira da estrada subitamente convertidos em fronteiras externas de novas nações soberanas – com resultados imprevisíveis.
Na era da Antiga Rota da Seda, nada disso faria sentido. Tamerlão conquistara tudo, do norte da Índia até ao Mar Negro. Agora, é difícil encontrar alguém em Tashkent que leve você ao outro lado da fronteira, para o Turquestão via Shymkent – ambos agora no sul do Cazaquistão – e de volta, sem grandes dificuldades na fronteira. O sultão Erdogan quer reforçar a reputação do Turquestão, definindo-o como capital de todos os povos túrquicos (o que é questão muito discutível, mas essa é outra longa história).
E não estamos nem mesmo falando do foco incendiário que é o vale Fergana, ainda propenso à influência fanática jihadista de grupos do tipo do Movimento Islâmico do Uzbequistão (MIU).
Tudo isso apodreceu durante três décadas, pois cada uma dessas novas nações da Ásia Central teve que articular diferentes ideologias nacionais, com sua própria visão progressista de futuro. Sob Karimov, o Uzbequistão rapidamente recuperou Tamerlão como o seu herói nacional definitivo e investiu muito para reavivar toda a glória do passado timúrido. No processo, Karimov não perderia a oportunidade de criar estilo pessoal que o apresentasse como o Tamerlão moderno, em trajes de homem de negócios.
De volta às luzes da ribalta geoeconômica
A OCX mostra como a abordagem da China à Ásia Central é definida por dois vetores centrais: a segurança e o desenvolvimento de Xinjiang. Estados regionais mais fortes, como o Cazaquistão e o Uzbequistão, lidam com Pequim, e também com Moscovo, mediante sua política externa multivetorial, cuidadosamente calibrada.
O mérito de Pequim tem sido posicionar-se habilmente como fornecedor de bens públicos, com a OCX a funcionar como laboratório de ponta em termos de cooperação multilateral. Isso será reforçado ainda mais na cúpula da Samarcanda no próximo mês.
O destino do que efetivamente é a Eurásia Interior – o coração da Eurásia – não pode fugir da competição sutil, muito complexa e multinível entre Rússia e China.
É crucial lembrar que em discurso marcante de 2013 em Nur-Sultan, então Astana, quando as Novas Rotas da Seda foram formalmente lançadas, Xi Jinping enfatizou que a China está “pronta para melhorar a comunicação e a coordenação com a Rússia e todos os países da Ásia Central, para lutar pela construção de uma região de harmonia”.
Não eram palavras vãs. O processo envolve reunir a ICE e a OCX – reunião que evoluiu progressivamente para criar um mecanismo de cooperação econômica tanto quanto de segurança.
Na cimeira da OCX de 2012, o então vice-ministro chinês das Relações Exteriores Cheng Gouping já fora inflexível e bem claro: a China absolutamente não permitirá que a agitação que aconteceu na Ásia Ocidental e no Norte da África aconteça na Ásia Central.
Moscovo poderia ter dito exatamente a mesma coisa. O recente (fracassado) golpe no Cazaquistão foi rapidamente tratado pela Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), de seis membros liderada pela Rússia.
A China está cada vez mais empenhada em usar a OCX para turbinar um movimento amplo de geoeconomia – mesmo que algumas das suas propostas, como o estabelecimento de uma zona de livre comércio e de um fundo conjunto de OCX e banco de desenvolvimento ainda não se tenham materializado. Mas pode eventualmente acontecer, uma vez passada a histeria das sanções russófobas ocidentais, a OCX e a ICE convergirem progressivamente com a UEE.
Em todas as reuniões em cimeiras da OCX, os empréstimos de Pequim são aceitos festivamente pelos atores da Ásia Central. Samarcanda no próximo mês pode anunciar um salto qualitativo de convergência: Rússia e China ainda mais empenhadas em trazer de volta a Ásia Interior para a ribalta geoeconômica.
11/Agosto/2022Acerca de Samarcanda ver as obrasNómadas e sedentários na Ásia Central , de Miguel Urbano RodriguesSamarcanda , de Amin Maalouf[*] Analista especializado em assuntos asiáticos.O original encontra-se em thesaker.is/samarkand-at-the-crossroads-from-timur-to-the-bri-and-sco/. Tradução de Vila Mandinga (com adaptações).Este artigo encontra-se em resistir.info
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