Mobilização em repúdio ao ataque a Cristina Kirchner, 2 de setembro de 2022.
A tentativa de assassinato de Cristina Kirchner é um acontecimento gravíssimo que não pode ser resolvido com simples declarações de repúdio. A terrível dimensão desse evento deve ser registrada, diante de todas as manobras para minimizar, banalizar ou despolitizar o ocorrido.
A tentativa de assassinato de Cristina é um evento gravíssimo que não pode ser resolvido com simples declarações de repúdio. A terrível dimensão desse evento deve ser registrada, diante de todas as manobras para minimizar, banalizar ou despolitizar o ocorrido.
Não era um louco solto fazendo barbaridades. Já se sabe que ele posa com tatuagens de direita e expôs diatribes furiosas contra os piquetes. Embora tenha agido sozinho, percorreu a mesma avenida que os assassinos que tentaram matar Maduro ou Evo Morales. Vale lembrar que os agressores no Capitólio também pareciam delirantes e delirantes, quando agiam por instigação direta de Trump.
É importante registrar os antecedentes da tentativa de assassinato, pois grande parte do jornalismo se concentra em investigar as falhas de custódia ou as características da arma. Eles pretendem transformar um evento político traumático em um mero fato policial.
Não é verdade que "todo o espectro político seja culpado" do ocorrido por ter "aprofundado a rachadura". Com essa perspectiva dos dois demônios, as responsabilidades efetivas se diluem. O ataque contra Cristina coroou uma escalada da direita, que incluiu todos os ingredientes dos golpes midiático-judiciais. Foi justamente assinalado que esta operação incitou o ódio, criou o quadro para a agressão e abriu as comportas para uma tentativa criminosa.
O crime frustrado foi a gota d'água na escalada precipitada por um julgamento infame. Esse show foi montado a partir de uma causa forjada, que carece de provas incriminatórias do vice-presidente. O país estava à beira de uma tragédia devido a uma operação fraudulenta, com vários elementos semelhantes à emboscada que deslocou Dilma do governo brasileiro.
O tiro fracassado acrescentou drama à enxurrada de violência, que Larreta motorizou com suas cercas, seus espiões e seus carros de hidrante. Esses ataques incluíam insultos inacreditáveis aos legisladores, proferidos por policiais fora da lei carregando balas de chumbo. Essa provocação foi concebida para exibir a repressão que um eventual governo PRO desencadearia. O assassino frustrado também foi motivado pela infindável campanha de mentiras propagada pela mídia hegemônica.
Importa sublinhar estas responsabilidades, num momento de repetidos apelos à diluição de culpas, no grande solvente denominado unidade nacional. Com mensagens rituais de "repúdio à violência", muitos direitistas temperam o que aconteceu para garantir que tudo permaneça igual. Eles procuram preservar seu domínio descarado do poder econômico, judicial, midiático e policial. Mantendo esse controle, eles poderão reprogramar outras conspirações e outras perseguições destituídas. Os setores mais extremos já estão preparando uma barragem e é por isso que Bullrich e Milei desviam do ataque e fogem de sua convicção, em total harmonia com sua exigência de porte gratuito de armas. É hora de prevenir essa contra-ofensiva com iniciativas drásticas de justiça simples.
Oportunidade para conquistas
O movimento popular tem uma oportunidade extraordinária para quebrar os direitistas, que já enfrentaram vários fracassos. A farsa do promotor foi demolida e Larreta teve que remover as cercas. Em Juntos pela Mudança , a divisão reina e um bumerangue aprova projetos de lei, que de repente colocaram a coalizão de oposição em uma posição defensiva.
A direita esperava dar um golpe devastador contra Cristina e ficou desconcertada com a renovada centralidade do vice-presidente. Eles não dão mais como certa a vitória eleitoral em 2023 e devem registrar que esse retorno conservador contrastaria com o novo cenário latino-americano. Essa adversidade os impede de repetir uma lei que já foi demolida no Brasil. Tampouco podem emular a provocação golpista de rua que fracassou na Venezuela, em um quadro de grande questionamento dos modelos neoliberais do Chile, Peru e Colômbia.
Nas últimas semanas, surgiu uma grande reação espontânea contra o poder insolente dos magistrados e seus cúmplices da mídia. Há um perceptível incômodo com o uso do judiciário para perseguir adversários políticos. A resposta democrática da última quinzena ilustra o cansaço com esse tipo de operação. Começa a surgir um cenário contrário ao de 2015. A promotora Luciani é um clone de Nisman, que repete o mesmo conjunto de causas, com o mesmo apoio da elite dos milionários macristas. Mas esse tipo de farsa perdeu credibilidade e acompanhamento. O declínio do impostor Moro se estende até a Argentina.
Ninguém sabe qual será o alcance da resposta democrática que irrompe de baixo. Há comparações controversas com o dia 17 de outubro e com o clima predominante durante o Bicentenário. Mas em qualquer cenário, já se verifica uma viragem e a possibilidade de conseguir uma vitória semelhante ao “dois por um” é bem visível. Esse sucesso coincidiria com os julgamentos dos golpistas na Bolívia, com os avanços democráticos no Chile e na Colômbia e com a esperada vitória de Lula no Brasil.
Para alcançar essas conquistas, demandas concretas devem ser expostas e popularizadas. A sanção de todos os responsáveis pelas cercas minaria o projeto repressivo de Cambiemos, a anulação do julgamento de Vialidad atingiria o lawfare e abriria caminho para expurgar o Comodoro PRO ou deslocar os cortesãos. Diante da renovada indignação gerada pela desinformação do jornalismo hegemônico, chegou a hora de retomar o debate sobre a Lei de Mídia.
Várias frentes de um mesmo projeto
Aluta democrática em curso convive com um corte brutal da renda popular, implementado pelo governo e monitorado pelo FMI. Desde o desembarque de Massa, esse ajuste se processa em ritmo redobrado. Já sancionou uma poda de 128 bilhões de pesos do orçamento de habitação, educação e saúde, congelou receitas do Estado, liquida pensões, encolhe planos sociais e, em vez de auditar a dívida externa, fiscaliza as cooperativas.
Massa realiza a cirurgia que Guzmán e Batakis adiaram. Lançou um aumento de juros que é a antítese da redistribuição de renda, reviveu o negócio especulativo da dívida pública em pesos e sem definir uma desvalorização regular, já empurrou a inflação para perto de três dígitos. Há uma tremenda perda de salários, enquanto toda a recuperação econômica de 2021 foi embolsada pelos capitalistas. Os lucros recordes das grandes empresas contrastam com os milhões de crianças que tiveram que deixar de comer uma refeição.
É importante denunciar esta dramática realidade social, validada pelo mesmo governo que persegue a direita. A firme denúncia da perseguição judicial não deve esconder o reajuste firmado pelos mesmos funcionários que assediam os tribunais do macrismo. Esta realidade não deve ser encoberta com apelos para quebrar apenas (ou primeiro) os perseguidores de Cristina. São duas lutas simultâneas que acontecem ao mesmo tempo. Não há contradição entre rejeitar a agressão sofrida pelo vice-presidente e resistir ao ajuste implementado por Massa com o apoio do CFK.
Devemos pôr fim ao julgamento de Vialidad e anular o acordo com o FMI. Nessa dupla ação, pontes podem ser construídas entre o kirchnerismo crítico e a esquerda, o que possibilitaria resistir ao ajuste e dobrar os abusos judiciais.
A ausência da FIT na grande mobilização da sexta-feira 2 impede essa convergência. Foi um erro dos setores da esquerda, que se opõem corretamente à comparação míope do CFK com os juízes. Destacaram, com razão, como a falta de imparcialidade do julgamento impede que as responsabilidades da corrupção sejam resolvidas e destacaram que por trás da tela de alegações pomposas está uma perseguição vulgar. O resultado dessa indignação não é indiferente à esquerda, pois a criminalização de Cristina seria um antegozo de maior agressão contra militantes populares.
A partir dessas indicações corretas, pode-se deduzir a presença nas mobilizações contra o assédio ao CFK, pois somente na rua essa arbitrariedade pode ser derrotada. A ausência na Plaza de Mayo contradiz essa conclusão. Argumentou-se que esta manifestação foi convocada pelo governo com falsas palavras de ordem de harmonia social. Mas essa chamada não justifica a ausência. O conteúdo de uma mobilização nunca é determinado apenas pelos termos de sua convocação.
Com grande frequência a esquerda assiste a marchas sindicais ou políticas que são organizadas com propostas inadequadas. Participe lá com suas próprias colunas e bandeiras. Desta vez esqueceu que era prioritário repudiar o ataque e exigir o seu esclarecimento, na única e massiva concentração convocada para realizar aquela rejeição. Essa presença não é incompatível com a denúncia da "paz social", que na situação atual significa abaixar a cabeça diante do empobrecimento gerado pela subordinação do partido no poder ao FMI.
É essencial refinar todas as decisões políticas, na nova situação aberta pelo ataque. Essa agressão causou grande comoção internacional, entre dirigentes, personalidades e meios de comunicação da região e do mundo. Todos ficaram chocados com o que aconteceu. Eles sabem que na Argentina se trava uma disputa de grande relevância geopolítica pela renovada importância de um país com abundantes recursos naturais. Cereais, gás e lítio estão na mira das grandes empresas e constituem o cobiçado saque das principais potências.
Por isso, não faltam avaliações para determinar quem governará a Argentina nos próximos anos. O embaixador Stanley já expôs a demanda americana pelo controle dos gigantescos negócios em jogo. Ele acompanhou sua demanda por um governo de coalizão patrocinado por Washington, com pressão para manter a vergonhosa apreensão do avião venezuelano. Ele afirmou a voz do império, diante da total passividade e submissão do governo.
A batalha popular contra a perseguição e o ajuste político tem projeções em muitos campos. A Argentina foi novamente localizada no centro de várias tempestades. Agir com inteligência, definir estratégias e priorizar a mobilização são três chaves essenciais para alcançar vitórias e construir um projeto emancipatório.
CLÁUDIO KATZ
Economista, pesquisador do CONICET, professor da Universidade de Buenos Aires e membro do EDI (Economistas de Esquerda). Seu site é www.lahaine.org/katz.
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