
O diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, Silvinei Vasques, e o presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. Foto de Pedro Ladeira / Folhapress
Bolsonaro esperou que as manifestações de seus seguidores tivessem alguma repercussão antes de se pronunciar, já que nunca deixou de cultivar a possibilidade de um golpe. Essa duplicidade de respeito retórico pela lei e promoção da conspiração golpista é a marca de seu governo, e o esquecimento de suas atrocidades abre a porta para sua repetição.
Amontanha deu à luz um rato.
Após dois dias de silêncio incrível, como se não tivesse contestado as eleições que acabava de perder, o futuro ex-presidente montou um circo para uma declaração oficial, recrutando ministros e a mídia para um discurso que poderia facilmente ter sido substituído por um tweet . Com relutância, Bolsonaro não cumprimentou o presidente eleito, não admitiu expressamente sua derrota e deixou a confirmação para seus assessores de que seguirá as regras de transição para o novo governo.
Nesses dois dias de reclusão, segundo a imprensa, Bolsonaro tentou garantir comida e lavanderia da casa de seu partido, além de pagar uma equipe jurídica para lidar com as dezenas de processos em andamento e muitos mais que com certeza virão
Além disso, assim como Trump, ele esperava que as manifestações em seu Capitólio em Tupiniquim tivessem algum peso social e impacto na opinião pública, já que nunca deixou de cultivar a possibilidade de um golpe. Apesar do barulho e do enorme estrago causado pela turba com bandeiras e camisas da seleção prontas para impedir que o "comunismo" se estabeleça no país, a ilusão de uma "intervenção militar" se transformou em uma ação tardia e tímida com spray de pimenta do forças de segurança (após, claro, uma ação praticamente testemunhal da Polícia Rodoviária Federal).
Enquanto todas as autoridades recém eleitas, inclusive as de seu próprio espectro político, repudiavam enfaticamente a desordem injustificada e danosa com a ocupação de rodovias em atos antidemocráticos, o próprio presidente fazia questão de legitimar as "manifestações populares", ancoradas no repúdio o "processo eleitoral ilegal" para, num raciocínio tortuoso, criticar a violação do direito de ir e vir, que ele atribuiu a "táticas de esquerda". O discurso, tardio, morno e duvidoso, só teve o efeito que teve: muitos manifestantes o entenderam como uma mensagem nas entrelinhas para ficar nas estradas e prometeram ficar lá.
Essa duplicidade de respeito retórico às “linhas da Constituição” e incentivo à conspiração golpista foi a marca não apenas dos quatro anos de governo de Bolsonaro, mas, principalmente, de sua atuação no processo eleitoral.
De fato, inúmeras irregularidades marcaram o processo e o teriam condenado à anulação, não fosse a milenar lição jurídica que se aprende nos primeiros meses de universidade: não se pode alegar vileza em juízo. Traduzido para a linguagem do futebol: não se diz falta que beneficia o infrator.
Combinação de resultados, cooptação e golpes
Para se tornar um candidato competitivo após o desastre da pandemia e os fracassos na economia, Bolsonaro elevou seus parlamentares com o orçamento secreto inconstitucional, formou grande maioria para mudar a Constituição e oferecer mimos financeiros às portas da eleição, e abusou , como nunca antes na história, o poder político, transformando atos de governo, com abundância de recursos públicos, em propaganda eleitoral.
Embora não tenha sido a única, a celebração do 7 de setembro, misturando desfiles militares e discursos partidários, deveria ter sido suficiente para a anulação de seu registro eleitoral, assim como o discurso em que, como chefe de Estado, reuniu delegações diplomáticas estrangeiras para uma crítica frívola às urnas eletrônicas e uma ameaça descarada não reconhecer o resultado no caso de sua derrota previsível. A isso se somou o discurso oficial das Forças Armadas a essa pregação golpista, fazendo com que os militares assumissem o direito de fiscalizar e avaliar a legitimidade do resultado. Mero discurso eleitoral, como vimos, pois, terminadas as eleições, o relatório do Ministério da Defesa sobre a integridade das eleições simplesmente não veio à tona.
O último golpe ocorreu com a ajuda da Polícia Rodoviária Federal para constranger e comprimir eleitores nas regiões mais vulneráveis, onde provavelmente votariam em seu concorrente. Em resposta às decisões judiciais que abriram a porta para a concessão de passes livres no transporte público para que os eleitores pobres pudessem exercer seu direito e cumprir sua obrigação de votar, a direção da Polícia decidiu realizar justamente o dia de eleições rígidas e longas inspeções de veículos nas estradas, que se não impediam, pelo menos sobrecarregavam os eleitores a caminho das urnas, especialmente os usuários de transporte público.
A desproporção da ação -mesmo em relação às localidades- acabou produzindo uma reação imediata nas redes sociais, sob o lema desesperado: «Deixe o nordeste votar» e uma recriminação do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tardiamente compareceu ao endereço da PRF. A provocação artificial da abstenção por parte de eleitores vulneráveis, na tentativa de reverter a estreita vantagem apontada pelas pesquisas, ficará para a história como um dos mais violentos ataques ao direito de voto que este país experimentou. Abusivo e discriminatório.
A relativa incapacidade do Poder Judiciário de rebater tempestivamente todas as ilegalidades praticadas pelo Executivo, apesar do vigor com que o ministro Alexandre de Moraes se dedicou à causa, é sinal de que deixar passar as primeiras exibições de garras autoritárias apenas as incentiva a se tornarem ataques cada vez mais monstruosos ao longo do tempo. Os aspirantes a ditadores não são refreados por decisões complacentes, nem devem ser minimizados por restrições premeditadas e episódicas constantemente celebradas pela mídia.
A duplicidade de atuação, dentro e fora das instituições, é a marca dos novos estados de exceção, como explica Luis Manoel Fonseca Pires em seu livro Estados de Exceção: a usurpação da soberania popular (Contracorrente, 2021); lágrimas de formalismo que encobrem ações que comprimem materialmente a democracia.
O resultado final não deve enganar a sociedade ou os poderes estabelecidos. Chegou a hora de investigar e punir os atos ilícitos cometidos sem medo de que os processos ressuscitem a agitação social, pois é justamente a resposta aos atos ilícitos que os inibe. Esquecer as atrocidades perpetradas é o melhor incentivo para sua repetição.
MARCELO SEMER
Juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo e escritor. Autor de Os Paradoxos da Justiça. Justiça e política no Brasil (Contracorrentes, 2021) e Entre salas e celas. Dor e esperança nas crônicas de um juiz criminal (Autonomia Literária, 2018).
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