domingo, 29 de janeiro de 2023

Os 'bens de renda' e o imperialismo



Prabhat Patnaik [*]

A teoria económica dá grande importância aos "bens de renda" (“rent goods”). Um "bem de renda" é aquele cujo fornecimento não pode ser aumentado à vontade simplesmente com maior investimentos na sua produção; a sua oferta está sujeita a constrangimentos impostos pela natureza, pelo que há uma certa taxa máxima de crescimento a longo prazo que é dada exogenamente e não pode ser alterada à vontade. Se este bem for utilizado como um insumo essencial para a produção de outros bens, então o crescimento a longo prazo de outros bens também fica amarrado a esta taxa máxima de crescimento exógeno do bem alugado. A taxa de crescimento de todo o sistema de produção é então determinada por esta taxa de crescimento exógena do bem de renda, razão pela qual este bem é chamado um "bem de renda". O progresso tecnológico envolvendo economia na utilização do bem de renda pode proporcionar alguma atenuação nesta determinação estrita, mas dificilmente pode alterar a restrição básica imposta pelo bem de renda ao crescimento do sistema como um todo.

David Ricardo, o conhecido economista pertencente à tradição da economia política clássica, havia considerado a terra como um bem de renda. A terra era essencial para produzir o milho, o qual era alimento básico para o consumo dos trabalhadores e sem trabalhadores, claro, não poderia haver produção do que quer que fosse; a oferta de terra, contudo, era fixa. Se não fosse absolutamente fixa, então, no mínimo, um aumento da procura por terra exigia a mudança para terras de qualidade cada vez mais inferior, até que a qualidade da terra se tornasse tão má que não pudesse dar qualquer excedente de milho para além do que os trabalhadores que a cultivavam necessitavam para o seu próprio consumo, de modo a que a limitação da terra se tornasse efetiva nessa altura e não fosse possível mais nenhuma acumulação de capital para além desse ponto. Ricardo chamou a este estado de coisas um "estado estacionário" com acumulação zero e, portanto, crescimento zero. A terra como um bem de renda, segundo ele, forçava as economias capitalistas a um estado estacionário, cuja chegada poderia, na melhor das hipóteses, ser adiada mas não impedida.

O trabalho, segundo Ricardo, nunca foi um bem de renda porque os trabalhadores tendiam a reproduzir-se rapidamente no momento em que os seus salários reais subiam acima de um nível de subsistência. Assim, ao primeiro sinal de uma escassez de mão-de-obra, à medida que os salários subiam acima do nível de subsistência, a oferta de trabalho aumentava amplamente, de modo a que o trabalho nunca poderia ser um bem renda. É verdade que tal expansão levava tempo, mas nunca poderia conter a acumulação de capital a longo prazo.

Em contraste, a moderna economia burguesa encara o trabalho como o bem de renda. A população, acredita ela, não se comporta da forma como Ricardo havia afirmado, seguindo a infame teoria malthusiana que Marx chamara de uma "difamação da raça humana". Ela é determinada independentemente por um conjunto de fatores. E esta determinação independente é precisamente o que torna o trabalho um bem de renda: a taxa de crescimento de toda a economia fica atada à taxa de crescimento da força de trabalho que depende, ela própria, da taxa de crescimento da população determinada de modo exógeno. O progresso tecnológico, ao elevar a produtividade do trabalho, pode tornar esta dependência um pouco mais frouxa, mas não a pode ultrapassar completamente. Se a taxa de crescimento da população, e consequentemente da força de trabalho, for de 3% ao ano, e a taxa de crescimento da produtividade laboral for de 2% ao ano, então a taxa máxima de crescimento a longo prazo da economia será de 5% e não mais.

Assim, quer olhemos para a economia política clássica ou para a economia neoclássica moderna, todas as vertentes da teoria económica burguesa invocam a ideia de uma renda boa para explicar a taxa de crescimento a longo prazo de uma economia capitalista. Contudo, o problema de toda esta abordagem é que ela não considera o imperialismo. Se o bem de renda estivesse a ser introduzido para explicar o que aconteceria a uma economia capitalista se não houvesse imperialismo, então haveria alguma lógica para isso. Mas todas estas teorias burguesas usam o conceito para explicar o que realmente acontece numa economia capitalista – isto torna tais teorias completamente absurdas. Uma economia capitalista não permanece tranquilamente confinada à sua própria disponibilidade de recursos internos, tal como não permanece tranquilamente confinada ao seu próprio mercado interno. Ela vai por todo o mundo pilhar recursos implacavelmente, incluindo mão-de-obra, para impulsionar o que lhe é internamente disponível. Assim, a ideia de um bem de renda a determinar a taxa de crescimento a longo prazo de uma economia capitalista é simplesmente absurda.

Tome-se o caso do trabalho. No início do século XIX, mais de vinte milhões de pessoas foram escravizadas à força e transportadas da África para o "Novo Mundo", para trabalharem nas minas e plantações lá existentes, cujos produtos eram exigidos pela metrópole para alimentar o processo de acumulação. Depois da escravatura ter formalmente chegado ao fim, na segunda metade do século XIX e até à primeira guerra mundial, 50 milhões de trabalhadores indianos e chineses foram transportados para regiões tropicais e semi-tropicais do mundo, mais uma vez com o mesmo objetivo. A mão-de-obra indiana ligada por contrato de servidão foi feita trabalhar nas Índias Ocidentais, Fiji, Maurícias e África do Leste e do Sul, ao passo que o trabalho dos coolies chineses era utilizado em locais por todo o Oceano Pacífico. Esta migração não implicava necessariamente a fixação de toda a população migrante nos seus novos habitats; mas um número razoável fixou-se.

Após a segunda guerra mundial, quando o capitalismo experimentou o seu maior boom de sempre, ele não foi constrangido pelo facto de que na metrópole a taxa de crescimento natural da população ter praticamente atingido zero; ele confiava na migração das suas antigas colónias e dependências. A mão-de-obra indiana, paquistanesa e das Índias Ocidentais entrou na Grã-Bretanha; a mão-de-obra argelina, tunisina e marroquina entrou em França e a mão-de-obra turca entrou na Alemanha. O boom não foi truncado por qualquer escassez de mão-de-obra. Qualquer falta de mão-de-obra que pudesse ter surgido foi evitada através da migração em grande escala para a metrópole, a qual obviamente não era livre mas sim estritamente controlada. E mesmo agora, há uma migração maciça dos países da Europa Oriental, uma faixa inteira deles da Lituânia para a Ucrânia, para as metrópoles capitalistas localizadas na Europa Ocidental a fim de fornecer mão-de-obra relativamente barata para sustentar a acumulação de capital.

Assim, o capital está no topo do mundo, movendo milhões de pessoas através de milhares de quilómetros para servir os requisitos da acumulação de capital. Tal acumulação não se ajusta docilmente à força de trabalho disponível exogenamente dentro de um país (ou dentro da metrópole), como assevera a teoria económica burguesa. Em suma, a acumulação é central; a disponibilidade de mão-de-obra ajusta-se a ela, e não ao contrário, como o conceito do bem de renda sugeriria.

Do mesmo modo, a acumulação de capital nunca permaneceu confinada a atividades que processam apenas matérias-primas como as produzidas na limitada massa terrestre das metrópoles. O capitalismo industrial ganhou dimensão com a revolução industrial na indústria têxtil do algodão; mas as regiões temperadas frias onde a revolução industrial teve lugar nunca puderam produzir algodão. Desde o seu início, portanto, o capitalismo dependeu de matérias-primas (e cereais alimentares) de outras regiões, as quais adquiria através de arranjos imperiais. A limitada massa de terra das metrópoles nunca foi motivo de preocupação no que diz respeito à acumulação de capital.

No período colonial, uma boa parte dos cereais alimentares e das matérias-primas era extraída gratuitamente das colónias. Após a descolonização, apesar de uma drenagem do excedente sob vários pretextos ter continuado das ex-colónias para os centros metropolitanos, a escala de tais transferências unilaterais diminuiu. Nessa altura, porém, os preços das matérias-primas e grãos alimentares produzidos nas ex-colónias haviam sido de tal forma esmagados que ter de pagar por tais importações não incomodava muito as metrópoles.

De facto, deparamo-nos aqui com uma refutação direta do argumento Ricardiano. Sendo a terra-massa limitada um bem de renda, Ricardo havia acreditado que os termos de troca se moveriam a favor dos bens agrícolas, os produtos desta massa de terra limitada, contra os bens manufaturados. No entanto, ao longo da história do capitalismo (exceto em períodos excepcionais como as guerras) encontramos os termos de troca a moverem-se contra as commodities primárias e a favor dos bens manufaturados, indicando que outros fatores para além dos Ricardianos estiveram em jogo.

A massa de terra limitada dos trópicos e do sub-trópico não é de qualquer relevância se a metrópole puder obter os seus abastecimentos de bens agrícolas necessários, mesmo quando a sua produção permanece fixada (devido à massa de terra limitada) pelo esmagamento da sua absorção interna pela população local. O imperialismo contemporâneo impõe um tal esmagamento não mais através do controle político direto mas sim através da imposição de políticas neoliberais sobre estes países. Estas políticas têm um mecanismo incorporado (built-in) para esmagar a absorção local através da imposição de "austeridade" se houver um excesso de procura por qualquer commodity agrícola. Para a metrópole, portanto, tais commodities deixam de ser "bens de renda", como Ricardo havia visualizado. O imperialismo é um meio de assegurar que não haja bens de renda de qualquer espécie para o capitalismo.


29/Janeiro/2023

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
Este artigo encontra-se em resistir.info

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