terça-feira, 14 de março de 2023

Multipolaridade em movimento


- Moscovo toma o comboio da "newcoin"

- A nova divisa deveria ser capaz de se tornar uma armazenagem de “moeda externa” de capital e reservas no futuro, não apenas um instrumento de liquidação

Pepe Escobar [*]

Ah, as alegrias da Grande Linha Circular (BKL, em cirílico): circunavegar toda Moscou ao longo de 71 km e 31 estações: de Tekstilshchiki – no antigo bairro têxtil – a Sokolniki – uma galeria suprematista/construtivista (Malevich vive!); de Rizhskaya – com seus lindos arcos de aço – a Maryina Roscha – com sua escada rolante de 130 metros de comprimento.

O BKL é como uma metáfora viva, respirando e correndo da capital do mundo multipolar: um curso intensivo de arte, arquitetura, história, design urbano, transporte tecnológico e, claro, “trocas de pessoas para pessoas”, para citar nossos amigos chineses da Nova Rota da Seda.

A propósito, o presidente Xi Jinping irá pilotar o BKL junto com o presidente Putin em 21 de Março quando vier a Movoco.

Portanto, não é de admirar que, quando um perito em investimentos no topo dos mercados financeiros globais, com décadas de experiência, concordou em compartilhar algumas de suas principais percepções sobre o sistema financeiro global, eu propus uma viagem no BKL – e ele imediatamente aceitou. Vamos chamá-lo de Sr. S. Tzu. Esta é a transcrição minimamente editada da nossa conversa em movimento.

Obrigado por encontrar tempo para conversarmos – num cenário tão lindo. Com a atual volatilidade do mercado, deve ser difícil para si afastar-se dos écrans.


S. Tzu: Sim, os mercados atualmente são muito desafiantes. Os últimos meses lembram-me 2007-8, exceto que, em vez de fundos do mercado monetário e hipotecas subprime, hoje em dia são os pipelines e os mercados de títulos do governo que explodem. Vivemos em tempos interessantes.

A razão pela qual entrei em contato consigo é para ouvir suas ideias sobre o conceito “Bretton Woods 3” introduzido por Zoltan Poszar. Você está definitivamente a par disto.


S. Tzu: Obrigado por ir direto ao ponto. Existem pouquíssimas oportunidades para testemunhar o surgimento de uma nova ordem financeira global, e estamos vivendo um desses episódios. Desde a década de 1970, talvez apenas a chegada do bitcoin há pouco mais de quatorze anos tenha chegado perto em termos de impacto do que estamos prestes a ver nos próximos anos. E assim como o momento do bitcoin não foi uma coincidência, as condições para as atuais mudanças tectônicas no sistema financeiro mundial estão se formando há décadas. A percepção de Zoltan de que “depois que esta guerra acabar, o ‘dinheiro’ nunca mais será o mesmo…” foi perfeitamente cronometrada.

ENTENDER A "MOEDA EXTERNA"

Você mencionou bitcoin. O que havia de tão revolucionário nisso na época?


S. Tzu: Se deixarmos de lado o lado criptográfico das coisas, a promessa e a razão para o êxito inicial do bitcoin foi que este era uma tentativa de criar moeda “externa” (usando a excelente terminologia do Sr. Zoltan) que não era responsabilidade de um Banco Central. Uma das principais características desta nova unidade era o limite de 21 milhões de moedas que poderiam ser minadas, o que ressoou bem com aqueles que podiam ver os problemas do sistema atual. Parece trivial hoje, mas a ideia de que uma unidade monetária moderna pode existir sem o apoio de qualquer autoridade centralizada, tornando-se efetivamente dinheiro “externo” em formato digital, era revolucionária em 2008. É desnecessário dizer que a crise das obrigações do euro, a flexibilização quantitativa e a recente espiral inflacionária global apenas ampliou a dissonância que muitos sentem por décadas. A credibilidade do atual sistema de “dinheiro interno” (novamente, usando a elegante terminologia do Sr. Poszar) foi destruída muito antes de chegarmos ao congelamento de reservas do Banco Central e às sanções econômicas perturbadoras que ocorrem atualmente. Infelizmente, não há melhor maneira de destruir a credibilidade do sistema baseado na confiança do que congelar e confiscar reservas em moeda estrangeira mantidas em contas de custódia no Banco Central. A dissonância cognitiva por trás da criação do bitcoin foi validada – o sistema de “moeda interna” foi totalmente instrumentalizado como arma em 2022. As implicações são profundas.


Agora estamos chegando ao âmago da questão. Como sabe, Zoltan argumenta que um novo sistema “Bretton Woods 3” surgirá no próximo estágio. O que exatamente ele quer dizer com isso?


S. Tzu: Para mim não está claroi se o Sr. Poszar se refere à transformação do atual sistema ocidental de “moeda interna” em alguma outra coisa, ou se ele sugere o surgimento do “Bretton Woods 3” como uma alternativa, fora do atual sistema financeiro. Estou convencido de que é improvável que uma nova iteração da “moeda externa” seja bem-sucedida no Ocidente neste estágio, devido à falta de vontade política e à dívida governamental excessiva que vem se acumulando há algum tempo e cresceu exponencialmente em anos recentes.

Antes de a atual ordem financeira ocidental poder passar para o próximo centário evolutivo, alguns desses passivos pendentes precisam ser reduzidos em termos reais. Se a história servir de guia, isso acontece tipicamente via incumprimento (default) ou inflação, ou alguma combinação dos dois. O que parece altamente provável é que os governos ocidentais vão confiar na a repressão financeira para manter o barco à tona e enfrentar o problema da dívida. Espero que haja muitas iniciativas para aumentar o controle sobre o sistema da “moeda interna” que provavelmente serão cada vez mais impopulares. A introdução de CDBCs [Central Bank Digital Currenciesr], por exemplo, poderia ser uma dessas iniciativas. Não há dúvida de que teremos tempos agitados a esse respeito. Ao mesmo tempo, também parece inevitável, nesta fase, o surgimento de algum tipo de sistema alternativo de “moeda externa” que competirá com a atual ordem financeira global da “moeda interna”.

E por que isso acontece?


S. Tzu: A economia global já não pode confiar no sistema da “moeda interna” transformada em carma para todas as suas necessidades de comércio, reservas e investimentos. Se as sanções e o congelamento de reservas são os novos instrumentos de mudança de regime, todo governo deve estar a pensar em alternativas à utilização da moeda de outrém para comércio e reservas. Contudo, o que não é óbvio é qual deveria ser a alternativa para a atual ordem financeira global imperfeita. A história não tem muitos exemplos de abordagens de “moeda externa” bem-sucedidas que não possam ser reduzidas a alguma versão do padrão-ouro. E há muitas razões pelas quais o ouro sozinho, ou uma divisa totalmente conversível em ouro, é demasiado restritivo como fundamento de um sistema monetário moderno.

Ao mesmo tempo, aumentos recentes no comércio em divisas locais infelizmente também têm um potencial limitado, pois as divisas locais são simplesmente uma instância diferente de “moeda interna”. Há razões óbvias pelas quais muitos países não gostariam de aceitar as divisas locais de outros (ou mesmo as suas próprias) em troca de exportações. Nisso concordo plenamente com Michael Hudson. Uma vez que a “moeda interna” é um passivo do Banco Central de um país, quanto menor a posição de crédito do país, mais ele precisa de capital investível e menos desejoso de que outras partes passem a deter os seus passivos. Essa é uma das razões pelas quais um conjunto típico de “reformas estruturais” exigido pelo FMI, por exemplo, destina-se a melhorar a qualidade do crédito do governo tomador. A "moeda externa" é extremamente necessária precisamente para os países e os governos que se sentem refens do FMI e do atual sistema financeiro de "moeda interna".

ENTRA A "NEWCOIN"

Muitos especialistas parecem estar a examinar isso. Sergey Glazyev, por exemplo.


S. Tzu: Sim, houve algumas indicações disso em publicações recentes. Apesar de não estar a par dessas discussões, certamente tenho pensado em como esse sistema alternativo também poderia funcionar. Os conceitos do Sr. Pozsar de dinheiro “interno” e “externo” são uma parte muito importante desta discussão. Contudo, a dualidade desses termos é enganosa. Nenhuma das opções é totalmente adequada para os problemas que a nova unidade monetária – vamos chamá-la de “newcoin” por comodidade – precisa resolver.

Deixe-me explicar por favor. Com a instrumentalização como arma do atual sistema de “moeda interna” do dólar americano e uma escalada simultânea de sanções, o mundo efetivamente foi dividido em “Sul Global” e “Norte Global”, termos ligeiramente mais precisos do que Leste e Oeste. O que é importante aqui, e o que o Sr. Pozsar notou de imediato, é que em certa medida as cadeias de fornecimentos e commodities também estão a ser instrumentalizadas como arma. O apoio a amigos (friend-shoring) está aqui ficar. A implicação é que a primeira prioridade da nova moeda seria facilitar o comércio intra-Sul, sem depender de divisas do Norte Global.

Se este fosse o único objetivo, haveria uma escolha de soluções relativamente simples, desde usar o renminbi/yuan para o comércio, criar uma nova moeda compartilhada (moldada a partir do euro, do ECU ou mesmo do franco CFA centro-africano), criar uma nova divisa baseada na cesta de divisas locais participantes (semelhante aos Direitos Especiais de Saque do FMI), criar potencialmente uma nova divisa atrelada ao ouro, ou mesmo atrelar ao ouro divisas locais existentes. Infelizmente, a história está repleta de exemplos de como cada uma dessas abordagens cria seu próprio conjunto de novos problemas.

È claro que existem outros objetivos paralelos para a nova unidade monetária que nenhuma dessas possibilidades pode cobrir totalmente. Por exemplo, julgo que todos os participantes esperam que a nova divisa fortaleça sua soberania, não a dilua. A seguir, os desafios com o Euro e o padrão-ouro anterior demonstraram o problema mais vasto com taxas de câmbio “fixas”, especialmente se a “fixação” inicial não fosse a ótima para alguns membros da zona monetária. Os problemas só se acumulam com o tempo, até que a taxa seja “refixada”, muitas vezes por meio de uma desvalorização violenta. É preciso que permaneça flexível para ajustar-se à competitividade relativa dentro do Sul Global ao longo do tempo a fim de que os participantes permaneçam soberanos nas suas decisões monetárias. Outra exigência seria que a nova divisa fosse “estável”, se tiver de tornar-se uma unidade de preço satisfatória para coisas voláteis como commodities.

Ainda mais importante ainda, a nova divisa deveria ser capaz de se tornar uma armazenagem de capital e reservas de “moeda externa”, não apenas uma unidade de liquidação. Na verdade, a minha convicção de que a nova unidade monetária emergirá decorre principalmente da atual falta de alternativas viáveis ​​para reservas e investimentos fora do comprometido sistema financeiro da “moeda interna”.

Então, considerando todos esses problemas, o que propõe como solução?


S. Tzu: Primeiro, deixe-me dizer o óbvio: a solução técnica para este problema é muito mais fácil de encontrar do que alcançar o consenso político entre os países que possam querer aderir à zona da nova moeda. Contudo, a necessidade atual é tão aguda, na minha opinião, que os compromissos políticos necessários serão encontrados no devido tempo.

Dito isso, permita-me apresentar um desses projetos técnicos para a nova moeda. Começo por dizer que deveria ser parcialmente (sugiro uma quota de pelo menos 40% do valor) lastreado em ouro, por razões que logo ficarão claras. Os 60% restantes da nova moeda seriam compostos pela cesto de divisas dos países participantes. O ouro forneceria a âncora da “moeda externa” para a estrutura e o elemento cesto de divisas permitiria aos participantes manterem a sua soberania e flexibilidade monetária. Haveria claramente a necessidade de criar um Banco Central para a nova moeda, o qual emitiria a nova divisa. Este Banco Central poderia se tornar uma contraparte para swaps-cruzados, bem como proporcionar funções de compensação para o sistema e aplicar os regulamentos. Qualquer país seria livre para aderir à nova moeda sob várias condições.

Primeiro, o país candidato precisa demonstrar que possui ouro físico não hipotecado na sua armazenagem interna e comprometer um certo montante em contrapartida da recepção do montante correspondente de nova moeda (usando a proporção de 40% mencionada acima). O equivalente econômico dessa transação inicial seria uma venda do ouro para o “gold pool” que lastreia a nova moeda em troca de uma quantidade proporcional da nova moeda lastreada pelo pool. A forma legal real desta transação é menos importante, pois é necessário simplesmente garantir que a nova moeda que está a ser emitida seja sempre lastreada por pelo menos 40% de ouro. Não há necessidade nem mesmo de revelar publicamente as reservas de ouro de cada país, desde que todos os participantes possam estar convencidos de que reservas suficientes estão sempre presentes. Um mecanismo conjunto anual de auditoria e monitoramento pode ser suficiente.

Em segundo lugar, um país candidato precisaria estabelecer um mecanismo de descoberta do preço do ouro na sua divisa interna. Provavelmente, uma das bolsas de metais preciosos participantes iniciaria o comércio físico de ouro em cada uma das divisas locais. Isso estabeleceria uma taxa cruzada justa para as divisas locais usando o mecanismo da “moeda externa” para estabelece-las e ajustá-las ao longo do tempo. O preço em ouro das moedas locais impulsionaria seu valor no cesto para as novas moedas recém-emitidas. Cada país permaneceria soberano e livre para emitir tanta divisa local quanto quisesse, mas isso acabaria por ajustar a participação da sua divisa no valor da nova moeda. Ao mesmo tempo, um país só seria capaz de obter novas moedas adicionais junto ao banco central em troca de uma garantia de ouro adicional. O resultado líquido é que valor de cada componente da nova moeda, em termos de ouro, seria transparente e justo, o que se traduziria também na transparência do valor da nova moeda.

Finalmente, as emissões ou vendas da nova moeda pelo banco central seriam permitidas apenas em troca de ouro para qualquer entidade fora da zona da newcoin. Por outras palavras, as únicas duas maneiras pelas quais partes externas podem obter grandes quantidades da nova moeda é ou recebê-la em troca de ouro físico ou como pagamento por bens e serviços fornecidos. Ao mesmo tempo, o banco central não seria obrigado a comprar a nova moeda em troca de ouro, eliminando o risco de “corrida bancária”.

Corrija-me se estiver errado: esta proposta parece ancorar todo o comércio dentro da zona da nova moedas e todo o comércio externo ao ouro. Nesse caso, o que se passa com a estabilidade da nova moeda? Afinal de contas, o ouro tem sido volátil no passado.


S. Tzu: Penso que o que está a perguntar é qual seria o impacto se, por exemplo, o preço do ouro em dólares caísse drasticamente. Neste caso, como não haveria taxa cruzada direta entre a newcoin e o dólar, e como o banco central do Sul Global estaria apenas a comprar, não a vender ouro em troca da newcoin, pode verificar de imediato que a arbitragem seria extremamente difícil. Em consequência, a volatilidade do cesto de moedas expressa em newcoin (ou ouro) seria bastante baixa. E este é exatamente o impacto positivo pretendido da ancoragem da “moeda externo” desta nova unidade monetária no comércio e no investimento. Claramente, algumas das principais commodities de exportação seriam precificadas pelo Sul Global apenas em ouro e na newcoin, pelo que “corridas bancárias” ou ataques especulativos à nova moeda seriam ainda menos prováveis.

Com o tempo, se o ouro estiver subvalorizado no Norte Global, gradualmente, ou talvez rapidamente, ele gravitará para o Sul Global em troca de exportações ou da nova moeda, o que não seria um resultado mau para o sistema de “moeda externa” e aceleraria o amplo aceitação da newcoin como divisa de reserva. É importante ressaltar que, como as reservas físicas de ouro são finitas fora da zona da newcoin, os desequilíbrios inevitavelmente se corrigir-se-ão por si mesmos, pois o Sul Global permanecerá um exportador líquido de commodities chave.

O que acaba de dizer está repleto de informações preciosas. Talvez devêssemos revisitar tudo isso num futuro próximo e discutir a reacção às suas ideias. Agora chegamos à [estação] Maryina Roscha, é hora de descer!


S. Tzu: Seria um prazer continuar o nosso diálogo. Ansioso por outro giro!


10/Março/2023


[*] Analista geopolítico.


Esta entrevista encontra-se em resistir.info

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