Luiz Inácio Lula da Silva discursa em manifestação contra o então presidente Michel Temer, 10 de junho de 2016. . (Victor Moriyama/Getty Images)
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TRADUÇÃO: MARTIN MOSQUERA
A soma de pequenas medidas progressivas nos primeiros 100 dias é impressionante, mas foram parciais e insuficientes. É claro que Lula decidiu governar "frio" e não "quente", privilegiando pactos com os partidos tradicionais em detrimento da mobilização popular. Bolsonaro ainda está "vivo" politicamente e não deve ser subestimado.
A atividade dobra a força.A atividade faz mais fortuna do que a prudência.
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Não foram três meses “sem emoção”. Lula teve duas posses. Em 1º de janeiro, assumiu a presidência diante de uma mobilização emotiva que ergueu a bandeira "não à anistia" para Bolsonaro. Mas o mandato começou no final da tarde de 8 de janeiro, quando respondeu com firmeza à semi-insurreição golpista que por horas transformou Brasília em um cenário de caóticas atrocidades. A relação política de forças mudou com a vitória eleitoral e o governo teve uma previsível “lua de mel”. A mídia burguesa, especialmente a Globo, apoiou Lula. O governo é o poder mais importante na concepção de um regime presidencialista: os ministros dos tribunais superiores são um poder não eleito, nomeados pela presidência e confirmados pelo Senado, e o Congresso é uma instância onde o poder é fragmentado pela representação de diferentes interesses de classe. A derrota de Bolsonaro abriu um novo momento mais favorável, claro. A presença de Lula na presidência, mas à frente de um governo de "frente ampla", comSimone Tebet como ministra, a representação da ala do MDB de Renan Calheiros e da família Barbalho de Pará, o apoio de Kassab do PSD e até mesmo da União Brasil de Antônio Carlos Magalhães Neto estabelecem limites claros para as transformações urgentemente necessárias.
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Um novo momento na conjuntura não equivale a uma nova situação na luta de classes. A relação social de forças ainda não mudou, como podemos observar no ambiente dentro das grandes empresas, e verificar nas pesquisas de opinião. Nas fábricas e nas escolas, nos bairros e nas famílias, permanece a fratura política. Nas métricas de mídia social, a adesão à esquerda ampla caiu um pouco. A capacidade de mobilização da esquerda é baixa. Ainda assim, houve alguns pequenos mas animadores sinais de recuperação do moral, em setores da vanguarda ou em algumas categorias dos trabalhadores mais bem organizados. A mais importante foi a mobilização nacional em 9 de janeiro, um dia após a tentativa de golpe em Brasília, que em São Paulo ultrapassou cinquenta mil pessoas na Avenida Paulista. Também o plenário daCNTEdos sindicatos dos professores da rede pública, que convocavam uma greve nacional para revogar a reforma do ensino médio ou a greve dos trabalhadores do Metrô de São Paulo pelo abono salarial eram sinais de uma nova disposição de luta. Mas o que ainda prevalece é um sentimento de alívio com a derrota de Bolsonaro, e as expectativas para Lula estão intactas, mas baixas. A agonia, e a sensação de exaustão acumulada ao longo dos anos, já passou, porém, não se espera muito. Pesquisas recentes do Ipespe e do Datafolha indicam que o governo mantém suas posições: 38% aprovam a gestão, 29% a desaprovam e 30% consideram regular o governo. Ou seja, apesar do desgaste de Bolsonaro com o escândalo da apropriação inexplicável de joias sauditas, a extrema direita mantém influência sobre um terço da população. Isso significa que a massa da burguesia, alguns milhões de proprietários e a maioria das classes médias permanecem hostis ao governo. O governo não avançou, mas também não perdeu posições.
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Houve, no entanto, flutuações na situação. O governo se fortaleceu com a derrota da tentativa de golpe de 8 de janeiro, mas perdeu o "momento de oportunidade". A resposta de Lula, ainda em Araraquara, decidindo a intervenção federal na segurança de Brasília, exigindo a presença dos governadores, inclusive bolsonaristas, em uma marcha contra os golpistas ao STF, e depois demitindo o comandante do Exército, foi enérgico. A extrema direita se dividiu, entre outras coisas, porque Bolsonaro deixou o Brasil na defensiva, abrindo mão de sua presença na passagem de poder uma semana antes. Mas não houve convocação na rede nacional de rádio e televisão, nem convocação para mobilização popular nas ruas. A aposta por uma resposta “fria”, estritamente institucional, ao golpe foi uma séria hesitação. Gerou polêmica até mesmo a convocação às ruas no dia 9 de janeiro. Faltou uma avaliação lúcida da máxima gravidade do significado do levante golpista. Um combate frontal foi evitado. As semanas seguintes de janeiro foram as melhores do mandato, mas a oportunidade foi parcialmente desperdiçada. O que mais pesou posteriormente foi a continuidade da desaceleração econômica que vem desde o final de 2022.
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A soma de pequenas medidas progressistas nos primeiros 100 dias é impressionante, até animadora, mas foram parciais e insuficientes, porque a esperada "revogação" geral da legislação de Bolsonaro não veio. A PEC (Proposta de Emenda Constitucional) transitória garantiu um orçamento que garante um Bolsa Família redesenhado, a volta das cantinas escolares, um pequeno aumento do salário mínimo e alguns investimentos no Minha Casa, Minha Vida. A planejada privatização dos Correios foi interrompida. Mais chocante foi a decisão de enviar força militar ao interior para expulsar os empresários metalúrgicos de Roraima, dada a tragédia humanitária do povo Yanomami. As ações de repressão das empresas que exploravam os trabalhadores, impondo condições análogas à escravidão, despertaram a esperança, assim como a suspensão da reforma do ensino médio foi recebida com entusiasmo. A anulação da facilitação da compra de armas, as delegacias da mulher funcionando 24 horas, o respeito ao piso nacional da enfermagem, o aumento das bolsas de pós-graduação, o anúncio da restituição de 9% dos salários da administração pública federal, congelados por sete anos para a maioria, bem como a retomada do plano nacional de vacinação, foram medidas emergenciais bem-vindas. No entanto, a "revogação" foi menos da metade. A privatização da Eletrobrás, por exemplo, não será revista. A privatização do metrô de Belo Horizonte não foi suspensa. Se a "herança maldita" não for anulada, o bolsonarismo pode voltar.
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A maior batalha desses cem dias foi a luta contra a intransigência do Banco Central. Campos Líquidosmanteve as taxas de juros em 13,75% ao ano, as maiores taxas de juros reais do mundo. Nessa iniciativa, o governo obteve o apoio de 80% da população. Não há perigo de moratória da dívida pública. A inflação continua caindo. Não há pressão de demanda com a queda do salário médio. Campos Neto decidiu desafiar o governo eleito, apoiado pela facção capitalista mais concentrada, a pressionar Haddad. O objetivo do Banco Central era exigir uma estratégia de ajuste fiscal que garantisse o superávit primário. Haddad demonstrou habilidade de negociação ao apresentar o quadro fiscal. Mas o mais importante é que conquistou o apoio da fração mais poderosa da classe dominante, como Palocci em 2003. É um plano engenhoso, mais flexível que o atual teto de gastos, mas é um neoliberalismo “descontado”. Na nova regra fiscal, o teto de gastos será 2,5% acima da inflação. No teto herdado do governo Temer, os gastos foram congelados e por dez anos nunca poderiam crescer acima da inflação. Era impossível, e nem o Bolsonaro conseguia entregar. Mas a estratégia de Haddad, não há como "adoçar a pílula", repousa sobre uma aposta perigosa: um pacto com a classe dominante. Depende de dois fatores principais. Aumento da arrecadação sem aumento de impostos e capacidade do governo de justificar a paciência em sua base social. Dilma tentou algo parecido com Joaquim Levy e foi um desastre. A questão da estratégia permanece sem solução. O Brasil está completando uma década perdida de estagnação. O destino histórico da esquerda é a luta contra a desigualdade social. O papel do governo Lula é ser uma alavanca para a erradicação da miséria. A distribuição de renda só é possível se os ricos pagarem, qualitativamente, mais impostos sobre a renda e o patrimônio, e se houver crescimento. Os investimentos dependem da iniciativa do Estado, dos capitalistas brasileiros ou da “chuva de dólares”. O otimismo de Haddad parece tolo.
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A tática de apoiar Arthur Lira para a presidência da Câmara dos Deputados em troca da PEC da Transição parece ter sido, até agora, um mau negócio. Nenhuma medida provisória foi aprovada em três meses. Não contente com um mandato de mais dois anos, Lira "montou no cavalo" com mais de 450 votos e decidiu enfrentar o Senado. O argumento para apoiar Lira foi a necessidade de garantir a governabilidade em um Congresso no qual a esquerda é minoria. Foi pelo cálculo que algum grau de negociação com o Centrão seria inexorável isolar a bancada de Bolsonaro e evitar a paralisação do Governo. O desenho da estabilidade do regime de «presidencialismo de coligação», quando vinte partidos têm deputados no Congresso, impõe uma negociação ininterrupta. Ou os votos de cada projeto são disputados, ou uma maioria parlamentar é constituída mesmo que não haja acordo sobre um programa de governo. Ambas as rotas são complicadas. Mas se a relação de forças políticas no Congresso é menos volátil do que a relação de forças na sociedade, ela não é imune à pressão social. Uma escolha foi feita, outras foram possíveis. Cem dias deixaram claro que Lula decidiu governar "frio" e não "quente". Preferiu a aliança com Lira ao desafio de uma luta pública permanente para garantir o apoio das massas.
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O problema militar segue intocado e, embora com relativa autonomia, guarda relação com o destino de Bolsonaro. As Forças Armadas foram um dos pilares do governo de extrema-direita. Lula demitiu o comandante do Exército, mas manteve Múcio no comando do Ministério da Defesa. Três questões fundamentais e incontornáveis parecem decisivas: (a) a revisão da anistia de 1979 e a responsabilização legal pelos crimes cometidos pelos militares; (b) a desmilitarização da Polícia Militar; (c) a revisão dos incríveis privilégios arcaicos e anacrônicos dos altos comandos, especialmente dos Tribunais Militares.
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Passamos quatro longos anos, dois anos de pandemia, com falta de oxigênio. Nós respiramos nestes cem dias. Mas Bolsonaro ainda está "vivo" politicamente e não deve ser subestimado. A derrota eleitoral de outubro não enterrou o bolsonarismo. A extrema direita continua sendo a maior corrente política de oposição ao governo nas ruas e nas redes. Não se alimenta apenas do ressentimento social e da ideologia fascista. Há um caldeirão cultural que "naturaliza" a violência. O horror da onda de ataques insanos às escolasé, tragicamente, uma expressão disso. O resultado do processo judicial contra Bolsonaro é, por enquanto, incerto, embora a hipótese mais provável, após 8 de janeiro, seja a perda dos direitos políticos. Se confirmada, a impossibilidade de comparecer às eleições abrirá disputa por sua substituição. Bolsonaro continuaria sendo o líder mais importante do movimento político-social de extrema-direita e teria a última palavra na eleição. A "normalização" do bolsonarismo como corrente política legítima, que já se insinua na mídia burguesa, é uma aberração. A prisão de Bolsonaro, sem mobilização popular das massas, não será possível. Mas a sua punição é condição incontornável para a defesa das liberdades democráticas. Qualquer vacilação diante do neofascismo será fatal.
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O contexto mundial não é favorável ao governo Lula, muito diferente de vinte anos atrás, quando prevalecia uma atitude muito amistosa dos governos dos países centrais com a presidência de um trabalhador moderado. Há quatro novos fatores-chave no sistema internacional de Estados: (a) a guerra na Ucrânia continua sem solução militar, portanto indefinida; (b) a dinâmica económica no mercado mundial parece estar a abrandar com viés de contração, apesar do crescimento chinês superior a 5%; (c) na luta para preservar sua supremacia, os EUA exigem um alinhamento imediato contra a China; (d) a crise do aquecimento global assumiu uma emergência mais dramática devido ao impacto crescente de eventos extremos. Ainda não está claro qual será a linha da diplomacia brasileira. Há quem defenda uma aproximação com Washington, como se viu no voto da ONU condenando a Rússia pela guerra. Há quem defenda uma aproximação com a China, partindo de uma interpretação campista de que Pequim seria o eixo de um movimento de países do "Terceiro Mundo". Finalmente, há quem defenda uma aproximação com a União Europeia, esperando que um dia Paris/Berlim se distancie da pressão norte-americana sobre a OTAN. A priorização das relações na América Latina parece ser, no entanto, o caminho mais animador. Eles defendem uma aproximação com a União Européia, esperando que um dia Paris/Berlim se distancie da pressão norte-americana sobre a OTAN. A priorização das relações na América Latina parece ser, no entanto, o caminho mais animador. Eles defendem uma aproximação com a União Européia, esperando que um dia Paris/Berlim se distancie da pressão norte-americana sobre a OTAN. A priorização das relações na América Latina parece ser, no entanto, o caminho mais animador.
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O desafio estratégico mais sério que permanece sem solução após cem dias é a capacidade de iniciativa do governo. A relação social de forças desfavorável não pode ser, para sempre, um álibi. Isso nos traz de volta ao papel de Lula. O papel pessoal de Lula é intransferível e exige, além de uma intuição aguçada, um pouco de "arte". Sem ela, reduz-se a possibilidade de mobilizações populares de massa. Os movimentos sociais, sejam sindicais ou populares, de mulheres, negros, estudantis, LGBT ou ambientalistas, só conseguem acionar setores de vanguarda. Persiste o perigo de uma adesão passiva, por deslumbramento ou triste oportunismo, como nos mandatos de há vinte anos. É que o mundo mudou, e o Brasil mudou mais ainda. As lições do golpe de 2016 não podem ser esquecidas. Ativismo, ativismo, ativismo No "frio", nada é possível. Ou a governança, assediada pelocentrão , vai ser “quente”, ou o bolsonarismo vai nos ameaçar de novo.
VALÉRIO ARCARY
Historiador, militante do PSOL (Resistência) e autor de O Martelo da História. Ensaios sobre a urgência da revolução contemporânea (Sundermann, 2016).
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