
Prabhat Patnaik [*]
Uma notícia do New York Times New Service reproduzida em The Telegraph of Kolkata (07/Maio), discute as descobertas de um inquérito global de opinião pública efetuado pelo Bennett Institute of Public Policy da Universidade de Cambridge. Este mostra que o conflito na Ucrânia mudou o sentimento público “em democracias desenvolvidas na Ásia Oriental e na Europa, assim como nos EUA, unindo seus cidadãos contra tanto a Rússia como a China e mudando a opinião das massas numa direção mais pró-americana”; em contraste, “fora deste bloco democrático, as tendências foram muito diferentes”. Durante uma década antes da guerra na Ucrânia, a opinião pública de um vasto conjunto de países que se estende desde a Eurásia continental até o norte e o ocidente de África, tornou-se mais favorável à Rússia mesmo quando a opinião pública ocidental se tornava mais hostil; a guerra na Ucrânia aparentemente fez pouca diferença para isto. E o mesmo também é verdadeiro quanto à opinião pública em relação à China.
Embora esta diferença entre as simpatias dos povos nas duas partes do mundo impressione, a explicação que a notícia apresenta para isto é bastante banal: aponta para uma chamada “divergência em valores fundamentais”. Não são apenas os regimes “opressivos” e “autoritários” do mundo em desenvolvimento em que perceções diferem daquelas dos países avançados “democráticos e liberais”. Mesmo os povos dos primeiros parecem ter antipatia para com as potências ocidentais e isto não por terem valores fundamentais muito diferentes. Por outras palavras, os povos do terceiro mundo não estão com o ocidente por terem valores que não apreciam a importância da democracia, das liberdades civis, do laicismo e assim por diante. É por estas razões que eles apoiam a Rússia e a China.
O corolário que se retira para a política externa dos EUA é que esta deveria cortejar, em vez de evitar, os regimes "iliberais" do terceiro mundo, como os da Turquia ou da Índia. A sugestão é que tais regimes, apesar de divergirem dos valores ocidentais, estão geralmente em sintonia com o estado de espírito dos povos do terceiro mundo.
O que esta análise ignora é que os EUA nunca evitaram tais regimes. Além disso, é uma calúnia sugerir que os valores dos povos do terceiro mundo estão em sintonia com tais regimes. Na verdade, pelo contrário, sempre que estes povos elegeram regimes que trabalham em seu nome, para promover os seus interesses, os EUA trabalharam direta ou indiretamente para derrubar tais regimes democráticos eleitos pelo povo, promovendo revoltas ou golpes de Estado. Os exemplos da Guatemala (Arbenz), do Irão (Mossadegh), da Indonésia (Sukarno), do Chile (Allende), do Brasil (Goulart), do Congo (Lumumba) e do Burkina Fasso (Sankara) são apenas alguns dos que vêm imediatamente à mente. Além disso, apoiaram directa ou indiretamente o assassinato de líderes populares que conduziam os seus povos à libertação nacional, líderes como Eduardo Mondlane, Amílcar Cabral e outros.
Uma análise assim, que recomenda um apoio ainda mais forte dos EUA aos autoritarismos do terceiro mundo, surge se fecharmos os olhos à verdadeira razão por trás da hostilidade dos povos do terceiro mundo às potências ocidentais, incluindo na Guerra da Ucrânia; e esta reside na sua oposição, informada ou instintiva, ao imperialismo ocidental com base na sua experiência vivida. E os governos do terceiro mundo, incluindo mesmo os autoritários aliados dos EUA, são muitas vezes forçados a tomar conhecimento deste facto, razão pela qual manifestam simpatia pela Rússia na guerra da Ucrânia.
Por outro lado, graças, entre outras coisas, à barragem de propaganda a que estão sujeitos através dos media controlados pelas corporações, de que o artigo do NYT em discussão é um exemplo, a opinião pública no Ocidente é manipulada para apoiar o imperialismo.
No entanto, este facto está a mudar, como se pode ver pela série de greves em que trabalhadores da União Europeia estão atualmente empenhados, para protestar contra a erosão dos seus padrões de vida através da inflação, pela qual culpam, com razão, a guerra da Ucrânia. O prolongamento desta guerra, eles compreendem, deve-se inteiramente às ações dos seus próprios governos.
O que é significativo, porém, é a enorme escala da traição aos povos do Ocidente pelos seus partidos políticos, salvo algumas exceções, que se alinharam atrás dos EUA. O seu apoio aos EUA chegou ao ponto de que até a revelação feita por Seymour Hersh de os EUA terem sido os responsáveis pela explosão do gasoduto Nord Stream, a fim de anular qualquer possibilidade de a Alemanha vir a obter o seu gás da Rússia, mesmo no futuro, não provocou qualquer agitação. A notícia foi mais ou menos bloqueada pelos media, não só nos EUA como também na União Europeia.
Esta completa ignorância dos interesses do povo por parte dos partidos políticos, incluindo os partidos que afirmam falar em nome da classe trabalhadora e que tradicionalmente têm gozado do apoio da mesma, faz lembrar as vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando a direção da Segunda Internacional em cada país beligerante apoiou o esforço de guerra da "sua própria burguesia". Quando os créditos de guerra estavam a ser votados no parlamento alemão em 1914, o poderoso Partido Social-Democrata da Alemanha, que chegou a ter 86 jornais diários, votou a favor. O único voto contra foi o de Karl Liebknecht, que viria a fundar o Partido Comunista Alemão antes de ser martirizado juntamente com Rosa Luxemburgo.
Atualmente, não são apenas os sociais-democratas, mas também grandes faixas dos radicais da Esquerda Europeia, que se posicionam por trás do apoio do Governo alemão à Ucrânia contra a Rússia. Eles avançam dois argumentos, um geral e outro específico. O argumento geral afirma que, longe de a guerra ser um resultado do imperialismo ocidental, o Ocidente está a apoiar a Ucrânia numa guerra contra o imperialismo russo e que a Rússia é uma potência imperialista agressiva.
Mas mesmo que ignoremos todos os antecedentes da presente guerra, nomeadamente o golpe de Estado do "maidan" contra o Presidente eleito da Ucrânia, Viktor Yanukovych, em 2014, engendrado pelos "neocons" americanos, e o subsequente conflito no leste da Ucrânia devido à supressão da maioria russófona, há um simples facto que mostra quem é responsável pela guerra. O acordo de Minsk, que poderia ter evitado a guerra e com o qual a Rússia havia concordado, foi torpedeado pelos ingleses e americanos. Na verdade, verifica-se agora, a partir da admissão de Angela Merkel (que ela retirou posteriormente por ser embaraçosa para o Ocidente), que o acordo de Minsk foi motivado exclusivamente para ganhar tempo para a Ucrânia, a fim de que esta pudesse armar-se adequadamente. Aceitar o acordo de Minsk como a Rússia fez dificilmente pode ser considerado um sintoma de imperialismo russo.
O argumento específico afirma que, uma vez que a Rússia invadiu a Ucrânia, deve ser considerada diretamente responsável pela guerra em curso. No entanto, também este argumento carece de substância. Embora a invasão não deva ser apoiada, não pode ser vista isoladamente de todo o conjunto de acontecimentos que constituem o seu pano de fundo. A importância do contexto global foi sublinhada por Lenine em 1915, quando escreveu numa resolução sobre a Primeira Guerra Mundial "A questão de saber que grupo deu o primeiro golpe militar ou declarou a guerra pela primeira vez é irrelevante para qualquer determinação da tática dos socialistas" (citado em The Delphi Initiative, 6 de Maio). E o contexto atual é o da expansão para Leste do imperialismo ocidental.
Pode levantar-se uma questão: por que razão há-de a Rússia recear uma tal expansão do imperialismo para Leste? Porque deveria ela ler algo de sinistro em tal expansão? A resposta reside na tendência do imperialismo para dividir os grandes países em fragmentos mais pequenos, a fim de os dominar de forma mais abrangente. Esta tendência, que se manifestou pela primeira vez no caso da Jugoslávia, seria ainda mais acentuada no caso da Rússia, que é também muito rica em recursos naturais, especialmente gás natural e, em menor grau, petróleo. Além disso, se a Rússia fosse fragmentada ou dominada de outra forma, o caminho ficaria livre para a dominação imperialista das muitas repúblicas da Ásia Central que também são ricas em recursos minerais. A agressividade imperialista em relação à China também tem uma motivação muito semelhante, a de a fragmentá-la até à insignificância. Um país como a Índia tem, aliás, muito com que se preocupar quanto a esta tendência do imperialismo.
Atualmente, é claro, entre outros fatores, devido a esta mesma agressividade em relação à Rússia, a própria hegemonia imperialista está sob ameaça. A estratégia imperialista inspirada nos "neocons" de procurar o domínio mundial está a chegar ao fim precisamente por causa da sua própria agressividade. Mas esta é uma consequência inevitável do seu ambicioso projeto. Mas do facto de estar a fracassar não se deve deduzir que não exista. Por outras palavras, ninguém deveria concluir do seu fracasso que este projeto ambicioso nunca existiu. E os povos do terceiro mundo viram corretamente este projeto por aquilo que ele é. Por esta razão é que há tanto apoio à Rússia.
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