segunda-feira, 31 de julho de 2023

OTAN – da Guerra Fria à Ucrânia


Por CAIO BUGIATO*
aterraeredonda.com.br/

A OTAN sempre foi um dos mais poderosos protetores do colonialismo e ainda hoje busca impor dependência e subordinação

Os processos da adesão da Finlândia e da Suécia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) incitaram vozes no meio jornalístico e universitário a argumentar que o governo de Vladimir Putin sofreu um profundo revés, pois fortaleceu a aliança militar que procura combater. Entre especulações sobre erro de cálculo, efeito colateral e outras, o argumento de fundo é o seguinte: a expansão da OTAN é um discurso falacioso do governo Vladimir Putin, uma vez que suas iniciativas resultaram no fortalecimento da organização; Vladimir Putin é um autocrata que precisa justificar a manutenção do seu poder com a ameaça da OTAN e a com o combate a ela, a Guerra na Ucrânia. Vozes mais extremadas chegam a dizer que Vladimir Putin fez a OTAN renascer, que conferiu a ela uma razão de ser. O objetivo deste texto é mostrar que a OTAN sempre teve uma razão de ser e que a Guerra na Ucrânia é mais um capítulo na vida da aliança militar.

A OTAN foi criada em 04 de abril de 1949 em Washington pelo Tratado do Atlântico Norte (ou Tratado de Washington) por 12 Estados: Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, França, Islândia, Itália, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, Portugal e Reino Unido. O Tratado não menciona um inimigo específico, nem a União Soviética como ameaça, indicando apenas elementos que afetam a paz e a segurança dos membros. É um tratado de segurança coletiva, cujos objetivos formais são a defesa seus membros e a garantia da democracia dentro deles. Mas, do ponto de vista da política internacional, não resta dúvida que os objetivos da OTAN na Guerra Fria foram destruir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a República Democrática da Alemanha (RDA) e, em geral, a garantir a resolução pacífica de conflitos entre os aliados na Europa, que fora marcada por grandes guerras.

Sem quaisquer operações militares durante a Guerra Fria, no início dos anos 1990 a aliança perdeu duas das suas motivações políticas fundacionais, o fim da URSS e da RDA. Assim, supostamente suas atividades arrefeceriam, porém, ocorreu o contrário. O número de membros só aumentou:


Durante a Guerra Fria a OTAN incorporou Grécia e Turquia (1952), a Alemanha Ocidental (1955) e a Espanha (1982), passando a ter 16 membros. Após 1990 incorporou mais 16 membros, agrupando inclusive países identificados anteriormente como potenciais agressores, do Pacto de Varsóvia. Antes da Guerra na Ucrânia seus membros eram 30, número muito maior que o da sua fundação. O OTAN quase triplicou seus membros desde 1949, contando atualmente com 32, incluindo a Suécia.

Sua organização institucional foi além da área militar. Ao longo de sua vida ela se constituiu como uma comunidade política, que agrega de interesses comum dos Estados participantes, sob a liderança dos EUA. A OTAN diversificou suas operações com criação de programas nas áreas de meteorologia, educação, pesquisa científica e ambiental, entre outros. A OTAN se tornou uma organização política e um instrumento permanente e entusiasmado de política externa dos Estados capitalistas centrais.

A pretensão global da aliança é longeva, não restringe as operações em seus membros. Em 1954 foi criada a The Southeast Asia Treaty Organization (SEATO), uma organização planejada para ser uma versão asiática da OTAN. Era composta por oito membros: Austrália, França, Nova Zelândia, Paquistão, Filipinas, Tailândia, Grã-Bretanha, Estados Unidos; e três observadores: Vietnã, Laos e Camboja. As forças armadas de cada um de seus membros seriam coordenadas para defender os países signatários diante da URSS e da China.

Em 1955 foi criada a Central Treaty Organization (CENTO) por inciativa dos EUA. Seus membros eram Irã, Iraque, Paquistão, Turquia e Reino Unido. Formava-se uma ofensiva contra Moscou e Pequim com a OTAN no Ocidente, a SEATO na Ásia e a CENTO no Oriente Médio. Contudo, A SEATO acabou em 1977, com derrota dos EUA no Vietnã, e a CENTO foi dissolvida em 1979, com Revolução Iraniana.

Na década de 1990 a OTAN repaginou sua pretensão global com iniciativas para fazer gravitar aliados em sua órbita, que estão vigentes até hoje. São lançados programas como a Parceria Para a Paz em 1994 e são elaboradas táticas de aliança denominadas Parceiro Global da OTAN e Aliado Não Pertencente à OTAN (neste estão Japão e Coreia do Sul). A Parceria Para a Paz está voltada principalmente para os países da antiga URSS. Conta com Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia, Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão, Moldávia, Rússia, Tadjiquistão, Turcomenistão, Ucrânia, Uzbequistão, Bósnia e Herzegovina, Sérvia, Áustria, Irlanda, Malta, Suécia e Suíça (não temos notícias sobre a saída da Rússia e de seus aliados com a guerra atual).

O Diálogo do Mediterrâneo, também lançado em 1994, reúne a OTAN e sete países do Mediterrâneo e em seu documento fundacional consta que seu objetivo é promover segurança e a estabilidade regionais e explicar as políticas e metas da OTAN. Membros: Argélia, Egito, Israel, Jordânia, Marrocos, Mauritânia e Tunísia. Em 2004 é lançada a Inciativa para Cooperação de Istambul, complementando os programas anteriores. Voltada para o Oriente Médio, é composta por Bahrein, Catar, Kuwait, e Emirados Árabes Unidos. A OTAN considera todas essas parcerias como uma resposta aos novos desafios do século XXI.

A OTAN não realizou operações militares durante Guerra Fria. Sua primeira operação robusta foi fora dos seus países membros, em 1922 na Bósnia e Herzegovina. E teve continuação com a intervenção em Kosovo em 1999. Ambas operações foram no contexto da dissolução da antiga Iugoslávia. O território que constituía a Iugoslávia estava marcado por disputas geopolíticas e lutas de independência desde o fim URSS.

O Kosovo era palco de um conflito entre as forças sérvias e albanesas, que reivindicavam a autonomia da região. A OTAN interveio a favor dos albaneses, não pela independência, mas sim para instalar um governo pró-EUA e limitar a zona de influência da Rússia. Em 2001 a Guerra ao Terror declarada pelos EUA resultou na invasão e ocupação do Afeganistão. A justificativa de combate ao terrorismo foi transformada na prática em intervenção em uma região rica em recursos energéticos e uma localização geopolítica importante que permite acessar a Rússia e a China.

É importante notar que países membros da OTAN usaram o Afeganistão de trampolim para derrubar Sadam Hussein no Iraque e pressionar o Irã. Em 2011 a OTAN bombardeou e interveio militarmente na Líbia em meio às rebeliões conhecidas como Primavera Árabe. Muammar Kadafi, presidente da Líbia por 42 anos, que mantinha boas relações com a URSS, foi derrubado. Além da participação militar da OTAN, países ocidentais financiaram os grupos rebeldes contra o governo avesso ao Ocidente. É importante mencionar o papel geopolítico do país no Mediterrâneo, com grandes reservas de petróleo e gás e localização estratégica na passagem de refugiados que vêm da África subsaariana.

Paz, segurança, defesa, democracia, comunidade, interesses comuns, parceria, desafios. São alguns termos eufemísticos que expressam a missão da OTAN, a qual podemos resumir assim: os Estados e as classes dominantes dos países líderes da OTAN não admitem projetos nacionais de autonomia e independência, seja nos marcos do capitalismo (como parece ser o caso russo), seja para fora dele (como parece ser o caso chinês). Como denunciava a famosa Conferência de Bandung de 1955, a OTAN é um dos mais poderosos protetores do colonialismo, e, acrescentamos, ainda hoje busca impor dependência e subordinação.

Tal missão foi e está em operação há décadas com a expansão oficial de seus membros, sua transformação institucional de aliança militar para comunidade/organização política internacional, as parcerias globais e as operações militares como na ex-Iugoslávia, Afeganistão, Libia e outras. Agora, o modus operandi, ainda que esteja por trás de um aríete, está na Ucrânia. A OTAN não renasceu; ela vive o imperialismo intrínseco ao capitalismo global.

*Caio Bugiato é professor de ciência política e relações internacionais da UFRRJ e do programa de pós-graduação em relações internacionais da UFABC.

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