Foto: Ubirajara Machado/Rede Brasil Atual
“O Belo Chico nasce das lágrimas de uma índia
Descendo a Depressão Sertaneja
Contornando as ilhas”
(Lágrimas de Iati, CD BELO CHICO / Targino, Nilton e Gogó)
Diversas adutoras para abastecer comunidades ribeirinhas estão inconclusas. E, mais que a transposição do rio, foi o programa de cisternas que fez a diferença ao semiárido. É hora de nova batalha: pelos direitos da natureza e moratória às megaobras
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À medida que a Transposição do Rio São Francisco foi sendo concluída, um profundo silêncio caiu novamente sobre a situação do grande rio. Afinal, o objetivo principal da obra foi atingido, isto é, destinar cerca de 70% das águas para finalidade de irrigação, cerca de 26% para os centros urbanos e 4% para a população rural difusa.
Hoje, segundo dados oficiais, o chamado Eixo Norte transporta 16,4 m3/s para o Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte e o Eixo Leste 10,00 m3/s para a Paraíba e Pernambuco. É bom lembrar que foram projetados para transportar 127 m3/s no total. Como dizíamos no início das obras, “vão projetar um canhão para matar um mosquito”.
Hoje 98% das obras já estariam concluídas e teriam sido gastos 14 bilhões de reais, quando foi projetado o custo inicial de cinco bilhões de reais. Esse dinheiro é insignificante para um orçamento brasileiro da ordem cinco trilhões de reais para 2023, caso visasse mesmo resolver os problemas básicos das populações mais necessitadas do Semiárido, isto é, a população rural difusa.
Ainda hoje o problema institucional-administrativo da obra apresenta desafios não solucionados. O custo anual para a manutenção da obra para o ano de 2023 está estimado em 274 milhões de reais, mas os Estados receptores ainda não aceitaram assinar os termos de compromisso com o governo federal. Enfim, chegou a hora de alguém pagar a conta.
Estamos atravessando alguns anos de chuvas abundantes no vale do São Francisco, mas a projeção climatológica para os próximos anos é de intensificação do El Niño. Para a região significa ondas maiores de calor, diminuição no regime das chuvas, portanto, período de deplecionamento das águas do São Francisco.
É nesses momentos que situação do rio mostra toda sua fragilidade, ou como diz o ditado popular, mostra sua cara. É um ciclo natural, mas que agora se agrava pela situação degradada do São Francisco e pelas mudanças climáticas.
A região Semiárida mudou muito nos últimos anos, pautada pela iniciativa da sociedade civil no Paradigma da Convivência com o Semiárido, tendo a captação da água de chuva em pequenos reservatórios para abastecer as necessidades básicas das famílias como sua prioridade.
Várias políticas públicas da era Lula-Dilma também impactaram positivamente a vida das populações. Foram construídas mais de um milhão de cisternas de captação de água de chuva para abastecer cada família no local que ela estiver, além de mais 200 mil replicações de outras tecnologias sociais destinadas à captação da água de chuva para a finalidade de produção agrícola e dessedentação dos animais.
Essas iniciativas, também apoiadas pelos governos Lula e Dilma, é que fizeram a diferença para a vida real do povo difuso pelo semiárido, ela que estava como a grande vítima das secas na arte de Luiz Gonzaga, Graciliano Ramos, Cândido Portinari, João Cabral de Melo Neto e tantos outros renomados artistas brasileiros da região Nordeste. Não há mais a fome e a sede de antigamente, já não há migrações intensas para o Sul e Sudeste, já não se fala mais em saques e a mortalidade infantil por fome e sede hoje está em 16 por mil, isto é, muito próxima dos padrões internacionais aceitos pela ONU.
Entretanto, o Estado Brasileiro continua com uma dívida profunda com o rio São Francisco e a população do Semiárido, isto é, a revitalização da bacia do São Francisco nunca veio e, se veio, ninguém consegue ver. Mesmo obras fundamentais de saneamento básico – a moeda de troca oferecida a troco da Transposição à população do São Francisco – continua inconclusa na maior parte dos municípios.
Porém, uma profunda revitalização exige uma moratória nas grandes obras, recomposição florestal em toda a bacia, proteção das áreas de recarga dos aquíferos Urucuia e Bambuí, a demarcação dos territórios indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, descomissionamento das barragens de rejeito ao longo do vale, na forma como propõe a Articulação Popular São Francisco Vivo.
No município de Remanso-BA, por exemplo, três adutoras para abastecer 28 comunidades estão inconclusas até hoje, mesmo tendo 95% das obras já concluídas. Abastecer a população ribeirinha do São Francisco era um dos compromissos do governo Lula quando das negociações, fruto do embate com a sociedade civil para evitarmos a Transposição naqueles moldes e aplicar o dinheiro em pequenas e médias adutoras, além de replicar aos milhões as pequenas obras do Paradigma da Convivência com o Semiárido.
Uma nova fronteira que se abre é a batalha pelo reconhecimento dos direitos da natureza, e nesse contexto, pelos direitos do Rio São Francisco. A Articulação Popular São Francisco Vivo começa a pleitear e construir esses direitos.
Sim, avançamos em parte, até mesmo a Transposição cumpre um papel relativo no abastecimento de populações urbanas, mas estamos longe de revitalizar o rio e abastecer de forma mais segura toda a população do Semiárido Brasileiro. Vida que segue, luta que continua.
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