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Inglaterra foi a “ponta” de um processo que já tinha se insinuado e desenvolvido parcialmente em outras regiões da Europa ocidental
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(Publicado no site A Terra é Redonda)
Para explicar a origem britânica do capitalismo, foi considerado que a Inglaterra possuía características geográficas singulares (em primeiro lugar, sua insularidade) e também pioneirismo social e político, mas não estava sozinha na Europa, nem no processo de transição para um novo modo de produção. Emmanuel Le Roy Ladurie constatou fenômenos, na França do século XVI, semelhantes aos que aconteceriam na Inglaterra só no século XVIII.[i]
Mas, diversamente, além de um mercado interno em processo de ampliação, a Inglaterra pôde contar com um mercado externo (colonial ou não) em crescimento: a Europa Oriental já à época era um mercado consumidor de produtos manufaturados ingleses. A característica fundamental da renovação técnica na Inglaterra foi a passagem da produção baseada em um sistema de manufatura estático, para a produção de “grande indústria”, forma de organização dinâmica da produção e da divisão do trabalho; e também forma de organização industrial introduzida através de numerosos processos de produção e de máquinas novas; sobretudo, máquinas-ferramenta e máquinas produtoras de energia, fabricadas em número crescente.
Vários elementos concorreram para a industrialização mais rápida da Inglaterra: disposição de capital, de recursos naturais, de mercado, e transformação agrária começada previamente. Inglaterra adiantou sua industrialização em cinquenta anos em relação ao continente europeu e, em consequência, recuperou ou, em alguns continentes, saiu na frente na expansão colonial. Sem dúvida, na base do fenômeno encontrou-se sua história precedente, em seus aspectos sociais e políticos, que criaram as bases do seu Estado Nacional.
Inglaterra, por outro lado, foi a “ponta” de um processo que já tinha se insinuado e desenvolvido parcialmente em outras regiões da Europa ocidental. A produtividade do trabalho passou a crescer a um ritmo mais rápido que o ritmo de crescimento demográfico, as diversas estimativas coincidem em um crescimento acelerado do produto nacional e do produto per capita em consequência da transformação industrial. No caso inglês, além disso, houve a formação pioneira de um Estado moderno, que preferiu substituir a extorsão direta dos súditos, mediante a força e o confisco, por uma tributação definida pelas leis (por vezes baseadas em costumes já existentes) que tornaram os impostos regulares, e deram mais segurança aos empresários capitalistas.
Em resumo, foram vantagens da Inglaterra: (i) A grande disponibilidade de mão de obra para as indústrias nascentes devido ao surgimento, no século XVI, de um processo de expulsão dos camponeses de suas terras e de mudanças na estrutura agrária; (ii) A instauração da monarquia parlamentar através da Revolução Gloriosa de 1688/89, que estabeleceu no país a Declaração dos Direitos (Bill of Rights) permitindo a supremacia do Parlamento sobre a monarquia, o que significou o início do fim do absolutismo, permitindo à burguesia uma maior participação nas decisões do governo e na vida política do país; (iii) A grande disponibilidade de matérias-primas de que Inglaterra desfrutava, pois não tinha dificuldades de acesso às que foram consideradas básicas para seu desenvolvimento industrial. Ela era rica em minério de carvão, lã, algodão (obtido na América) e outros insumos industriais.
(iv) O fato de que, por ser uma ilha de dimensões moderadas e com formato recortado, ela possuía facilidades naturais para o estabelecimento de um sistema de transportes eficientes que permitia o escoamento da produção para seus portos; (v) Possuir a maior e mais forte força marítima do mundo no período, o que permitia controlar boa parte do comércio marítimo mundial; (vi) Controlar um grande império colonial em expansão formal ou informal, que servia de mercado consumidor para seus produtos manufaturados e fornecia a matéria prima necessária para sua produção.
A historiografia deu também peso às estruturas e tradições socioculturais (religião, moral de trabalho), mas a criação de um ambiente ideológico e institucional favorável ao trabalho industrial não foi um processo automático. No século XVII, Francis Bacon se pronunciou contra a repressão da usura: os empréstimos eram necessários à vida econômica, cujos protagonistas não eram altruístas para que lhes fossem concedidas vantagens sem alguma contrapartida, justificando a cobrança de juros (segundo Marx, “o capital portador de juros, ou, para empregar o termo antigo, capital usurário, figura com seu irmão gêmeo, o capital comercial, entre as formas antediluvianas do capital, que precedem por longo tempo o modo de produção capitalista e podem ser encontradas nas mais diversas formações econômicas da sociedade”).
Francis Bacon testemunhou o início da grande manufatura e das novas propostas científicas que contribuíram no alvorecer industrial na Inglaterra e defendia abertamente a usura e os juros como uma “concessão à dureza do coração humano”. Esses fatores favoreceram o acúmulo de capitais e a expansão de seu comércio em escala mundial: os ingleses avançaram sobre os mercados externos, por meios pacíficos ou militares. A hegemonia naval lhes dava o controle dos mares. O país levou adiante uma política econômica internacional: o Tratado de Methuen, em 1703, deu taxas preferenciais para seus produtos no mercado português; Portugal ampliou ainda mais suas dívidas com a Inglaterra. Para pagar seu débito, Portugal viu-se forçado a utilizar os metais preciosos retirados de suas colônias (sobretudo o ouro brasileiro). Os metais preciosos de origem americana encheram as arcas dos bancos ingleses.
A estruturação de um mercado mundial, do qual a Inglaterra seria a grande beneficiária, porém, não sobreveio de modo repentino. A “economia mundial” esteve durante longo tempo em processo de formação. Ela tinha antecedentes inconclusos e representou um salto em relação aos processos de expansão econômica “mundial” precedentes, alguns bem antigos. Na remota Antiguidade, Isaías se referia a área de expansão fenícia, centrada em Tiro, como o “mercado das nações”, dominante sobre todo o Oriente Médio e grande parte da bacia do Mediterrâneo.
Embora submetida por assírios, babilônios, persas, destruída por Nabucodonosor e pelos gregos de Alexandre, Fenícia renasceu sucessivamente e não cessou de criar “agências” no Mediterrâneo: Cítio em Chipre, Karatepe na Turquia, Cartago na Tunísia, áreas em que “o dinheiro flui como água, onde domina o espírito de lucro”. Mais perto da “expansão europeia” moderna encontramos a expansão das suseranias do Império chinês no Extremo Oriente, a expansão comercial da civilização islâmica na era de seu esplendor, a retomada das rotas comerciais internas e, sobretudo, externas, da Europa cristã a partir do século XII, que levou inúmeros comerciantes (italianos, em especial) a estabelecer conexões comerciais permanentes com os centros de produção de tecidos finos (seda) e especiarias de Oriente.
Ilustrando a abrangência desse processo, Janet Abu-Lughod postulou a existência, entre 1250 e 1350, de oito circuitos econômicos articulados, nos quais o comércio e a divisão do trabalho configuravam sistemas econômicos desenvolvidos e autossuficientes.[ii] Desses circuitos, mais da metade estavam localizados em áreas dominadas pelo Islã que era, à época, junto com a China imperial, a área econômica mais desenvolvida (Europa estava menos desenvolvida economicamente, seus contatos comerciais com o restante do mundo não eram tão volumosos e contínuos).
Com a formação dos primeiros Estados proto-nacionais no “velho continente” os árabes foram sendo expulsos de parte dos seus domínios, e iniciou-se a expansão europeia, que dominaria o mundo, como o evento mais importante e paradoxal de sua história. Europa não era nem é um continente, mas um anexo subcontinental da Ásia. Toda a Europa (excluindo a Rússia e a Turquia) compreende não mais que 5,5 milhões de quilômetros quadrados: menos de dois terços da superfície do Brasil, pouco mais do que a metade da área da China ou dos Estados Unidos. Só a Rússia cobre 17 milhões de quilômetros quadrados, três vezes mais do que a Europa. Os países situados no relativamente pequeno território europeu, no entanto, foram capazes, graças à acumulação de capital, de dominar o mundo. Isso coloca uma questão maior: por que os amplos circuitos econômicos não europeus não originaram, a diferença da expansão europeia, um mercado mundial?
Immanuel Wallerstein negou aos circuitos econômicos árabe-islâmicos dos séculos XIII e XIV o caráter de “economias-mundo”, como sim fez Abu-Lughod, categoria que, para esse autor, só seria atingida com a destruição desses circuitos pela expansão europeia. Os maiores circuitos econômicos, nesse período, se encontravam na China, até uma estagnação econômica, acompanhada de epidemias de fome recorrentes, serem sucedidas por uma destruição e um fechamento do Império Chinês, provocado por investidas externas, eventos que foram preparando lentamente o terreno para mudanças sociais no Celeste Império.
Em contraste com o retrocesso árabe e a estagnação chinesa, a expansão do raio das atividades europeias estava inscrita em motivos econômicos internos, na lógica que conduziu à paulatina dissolução dos vínculos senhoriais, à ampliação do rádio do comércio e à impulsão da produção mercantil, acompanhados de uma renovação científica, técnica e ideológica. Fritz Rörig chegou a propor a existência de uma “economia medieval de alcance mundial”, incluindo nesse fenômeno as viagens intercontinentais realizadas por comerciantes europeus medievais, a partir do século XIII.[iii] É nesse contexto que os europeus venceram na “corrida [não declarada] para a América”. A existência de terras, continentais ou insulares, ao Oeste do Atlântico, era já suspeitada ou conhecida, por tradição oral, ou consignada em documentos escritos, por diversos povos do continente eurasiático e também, provavelmente, africano.[iv]
A partir de finais do século XV, as viagens interoceânicas europeias se produziram no contexto da liberdade de ideias sobre o Atlântico “que compartilhavam os cartógrafos, os cosmógrafos e os exploradores da cristandade latina durante o século XV. Contra esse pano de fundo, o projeto de Colombo de atravessar o oceano parece inteligível e até previsível. O espaço atlântico exercia uma poderosa atração sobre as imaginações da cristandade latina. Os cartógrafos semeavam suas representações do oceano com massas de terra especulativas e, a partir de 1424, deixavam espaços vazios a serem preenchidos com novas descobertas.
Na medida em que cresceu o interesse por esse espaço, também o fez a consciência da possibilidade de explorá-lo. As primeiras colônias europeias duradouras foram fundadas nas Ilhas Canárias (descobertas por um navegante genovês em 1312) em 1402 e nas Açores em 1439. O ritmo dos esforços se acelerou na segunda metade do século”.[v] E concluíram como bem se sabe. A existência de terras desconhecidas era uma hipótese geralmente aceita; não se conheciam sua extensão ou localização aproximada, nem sua conexão com terras longínquas já conhecidas.
Com a expansão mundial a partir da Europa, a internacionalização da economia tornou-se fato a ser considerado. A diminuição das distâncias fez-se acompanhar da especialização de países e regiões e da reordenação das economias locais, provocada pela abertura de novos mercados, que fizeram com que alguns setores da economia prosperassem e outros desfalecessem. No século XVI foi se verificando o impacto dos descobrimentos ultramarinos americanos, e do novo caminho para Oriente, na economia europeia.
Para sua expansão externa, a Europa se aproveitou de conhecimentos e rotas marítimas traçadas pelos chineses: o Ocidente europeu pós-medieval criou, com base nessas e outras apropriações, uma nova sociedade, baseada num sistema econômico-social em que as relações mercantis se apossaram da esfera produtiva, como não aconteceu em outras sociedades nas quais o comércio interno e externo chegara a atingir importantes dimensões, assim como o desenvolvimento científico e tecnológico.
Em resumo, as raízes da nova economia fincaram no renascimento do comércio interno e externo da Europa, nas mudanças na produção agrária, no auge do comércio internacional e na abertura de linhas de circulação de mercadorias de/para o Oriente e, finalmente, de/para a América. O século XVI, desse modo, representou o deslanchar da era histórica do capital. No final desse século, a economia europeia possuía “uma agricultura que continuava como atividade predominante, capaz de alimentar muito mais pessoas do que em 1500, e de fazê-lo melhor; um comércio co[MI1] mercio com os mundos de ultramar, uma indústria têxtil crescente em relação à de 1500, uma indústria mineira e metalúrgica muito mais considerável. O grande capitalismo tendeu a partir de então em direção do capitalismo anônimo, enquanto no século precedente tinha sido puramente patrimonial”.[vi] Qual desses fatores foi o diferencial que fez dessa era a plataforma para a vitória do capital? Cada um pressupõe o outro, mas um deles estava ausente em surtos comerciais e industriais precedentes.
Earl J. Hamilton assim o sintetizou: “Embora houvesse outras forças que contribuíram para o nascimento do capitalismo moderno, os fenômenos associados com a descoberta da América e a rota do Cabo foram os principais fatores desse desenvolvimento. As viagens de longo percurso aumentaram o tamanho dos navios e a técnica da navegação. A ampliação do mercado facilitou a divisão do trabalho, e conduziu a melhoras técnicas. A introdução de novas mercadorias agrícolas da América e de novos bens agrícolas e manufaturados, especialmente artigos de luxo orientais, estimulou a atividade industrial para se obter a contrapartida que os pagasse. A emigração às colônias do Novo Mundo e aos estabelecimentos do Leste diminuiu a pressão da população sobre o solo metropolitano e aumentou o excedente, o excesso da produção em relação à subsistência nacional, do qual pôde se obter a poupança. A abertura de mercados longínquos e de fontes de matérias primas foi um fator importante para que o controle da indústria e do comércio fosse transferida dos grêmios para os empresários capitalistas. A velha organização gremial, incapaz de lidar com os novos problemas da compra, produção e venda, começou a se desintegrar e cedeu, finalmente, seu lugar à empresa capitalista, meio mais eficiente de gestão”.[vii]
As viagens interoceânicas de Cristóvão Colombo e Bartolomeu Dias foram o cume desse processo e, sobretudo, deram início a outro, de alcance mundial. Foram seguidas pela expedição de Fernando de Magalhães (1480–1521), navegador português a serviço da Espanha, que realizou a primeira viagem ao redor do globo terráqueo, iniciada em 1519 e concluída em 1521. O mundo foi se unificando não só pelo estabelecimento de rotas marítimas mundiais, mas também ao compasso da empresa colonizadora, quer esta assumisse a forma do enclave comercial, da feitoria ou da ocupação territorial. Buscando uma rota alternativa para a China, os europeus “descobriram” um novo continente, a América, que conquistaram e colonizaram, inicialmente em função subsidiária de sua busca e penetração do mercado chinês e extremo-oriental. As primeiras cartografias do novo continente foram elaboradas para determinar o ponto de passagem mais adequado para o Extremo Oriente.
As viagens intercontinentais, originalmente ibéricas, configuraram uma unidade com processos que, na Europa, aceleravam as transformações sociais; aumento demográfico, superação das fomes e pestes do século XIV, retomada das guerras e modernização dos exércitos na segunda metade do século XV: “Essa impulsão interna foi finalmente sustentada, a partir do final do século XV, por uma injeção de riqueza externa devida à expansão marítima e colonial. A circum-navegação da África, a descoberta da rota das Índias por Vasco da Gama, a da América por Colombo, e a viagem ao redor do mundo de Magalhães, elevaram o nível científico e ampliaram a concepção do mundo na Europa.
Ao mesmo tempo, e esse era o verdadeiro objetivo dos ‘descobridores’, o grande comércio de produtos exóticos, de escravos e metais preciosos, tornava a abrir-se, extraordinariamente ampliado. Uma era nova se abria para o capital mercantil, mais fecunda do que a das repúblicas mediterrâneas da Idade Média, porque se constituía um mercado mundial, cuja impulsão afetava todo o sistema produtivo europeu, ao mesmo tempo em que grandes Estados (não já simples cidades), iam aproveitá-la para se constituir”.[viii]
A expansão ibérica foi seguida pela expansão inglesa, a holandesa e, finalmente, também a francesa. Assim, a expansão europeia unificou geográfica e economicamente o planeta. Wallerstein propôs, como base da origem do “sistema mundial moderno”, uma ligeira superioridade de acumulação de capital no Reino Unido e na França, devida a circunstâncias inerentes ao final do feudalismo nesses países, que desencadeou uma expansão econômico-militar culminando em um sistema global de trocas que, no século XIX, incorporou quase todos os territórios do planeta.
A arrancada das principais protagonistas dessa expansão exigiu mudanças revolucionárias, sem as quais ela não teria tido base sólida de sustentação: “A Revolução Inglesa do século XVII preparou o terreno para a expansão comercial e marítima inglesa em escala mundial. No cerne da política expansionista estavam os interesses da burguesia mercantil, comerciantes e armadores. A partir de 1649 os comerciantes ingleses conseguiram, junto ao governo, uma política sistemática no campo das atividades comerciais. Pode-se afirmar que, somente após a tomada da Jamaica em 1655, os interesses dos comerciantes passara a ter um lugar de destaque na formulação definitiva de um programa comercial e colonial”.[ix]
Algumas décadas depois, a Inglaterra passou a ter um sistema financeiro mais completo, abrangente e nacionalmente conectado, com a criação do Banco da Inglaterra, em Londres – banco fundado em 1694 pelo escocês William Paterson, inicialmente como banco privado – que passou a centralizar as finanças nacionais, traduzindo o avanço da burguesia inglesa depois da “Revolução Gloriosa” de 1688. Os Países Baixos seguiram a trilha aberta pelo capital comercial inglês.
A afirmação de que esse processo configurou uma “europeização” do mundo esquece que foi esse processo que criou a “Europa”:[x] “Hoje, imaginamos que a África e a Europa são dois continentes completamente diferentes, separados por um abismo de civilização, mas até bem pouco tempo essa distinção não faria sentido. Por muitos séculos, bens e homens se moveram mais facilmente na água do que por terra; o comércio e o império reuniam os povos do Mediterrâneo”.[xi] A Europa moderna surgiu, assim, simultaneamente de uma cisão, de uma diferenciação e de uma contraposição.
Não foi pois, em definitivo, a Europa que criou a expansão mercantil mundial, mas essa expansão a que criou o conceito moderno de Europa; ela, por outro lado, não foi puramente comercial, e foi por isso denominada de “europeização do mundo”: “A construção do sistema-mundo moderno envolveu uma expansão de Europa, que era simultaneamente militar, política, econômica e religiosa. Dentro deste contexto, missionários cristãos atravessaram o globo, mas eram notoriamente mais bem-sucedidos em partes do mundo que não foram dominadas através das denominadas religiões mundiais. O número de convertidos em países largamente islâmicos, budistas, hindus e zonas confuciano-taoístas, eram relativamente poucos, e particularmente poucos em zonas islâmicas”.[xii]
O segredo da solidez da expansão europeia, porém, não era religioso (embora se servisse, em maior ou menor grau, da religião): ela tinha por base a ampliação da produção manufatureira e industrial, que exigia uma expansão constante do mercado; devido a isso, atingiu todas as regiões do planeta, criando condições para “o entrelaçamento do todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista”.[xiii] Essa expansão não criou automaticamente, por outro lado, a hegemonia ou superioridade econômica inconteste da Europa no mundo.
Na China, ainda hegemônica no Extremo Oriente e resistente às investidas europeias, em 1645 houve a conquista do poder pela dinastia Manchu, que submeteu os povos tradicionais da China Central (os manchus eram uma tribo nômade que provinha da região Norte da China, a Manchúria). A máxima expansão da civilização chinesa foi atingida no século XVIII, quando foram conquistadas as vastas regiões interiores da Mongólia, do Sinkiang e do Tibete.
Na sequência, o “Império do Meio” foi perdendo seu lugar dominante: o PIB anual per capita chinês se manteve estável (600 dólares) entre 1280 e 1700, enquanto o europeu, no mesmo período, ascendeu de 500 até 870 dólares.[xiv] No início do século XVII, no entanto, o PIB estimado da economia chinesa ainda era o primeiro do mundo (96 bilhões de “dólares Geary Khamis”), seguido pelo da Índia (74,25 bilhões) e, em terceiro lugar, a França (15,6 bilhões).[xv]
A expansão marítima europeia teve fortes repercussões internas, acelerando as transformações econômicas e sociais, quando ela se entrelaçou com a colonização e exploração dos “novos territórios”. Na síntese abrangente de Marx: “As descobertas de ouro e de prata na América, o extermínio, a escravização das populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das minas, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais, e a transformação da África num vasto campo de caçada lucrativa, são os acontecimentos que marcaram o alvorecer da era da produção capitalista. Esses processos “idílicos” são fatores fundamentais da acumulação primitiva… Os métodos (da acumulação primitiva) se baseavam em parte na violência mais brutal, como é o caso do sistema colonial. Mas todos eles utilizavam o poder do Estado, a força concentrada e organizada da sociedade para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção no modo capitalista, abreviando assim as etapas de transição. O sistema colonial fez prosperar o comércio e a navegação. As sociedades dotadas de monopólio eram poderosas alavancas de concentração de capital. As colônias asseguravam mercado às manufaturas em expansão e, graças ao monopólio, uma acumulação acelerada. As riquezas apossadas fora da Europa pela pilhagem, escravização e massacre, refluíam para a metrópole, onde se transformavam em capital”.[xvi]
Um fator que aumentou os ganhos dos novos arrendatários capitalistas foi a chamada “revolução dos preços” do século XVI, vinculada à expansão monetária derivada da exploração do Novo Mundo, um fenômeno inflacionário motivado pelo novo afluxo de metais preciosos. Como a economia europeia não estivesse ainda preparada para ajustar todos os rendimentos em função da inflação, aqueles que vendiam suas mercadorias (trabalhadores assalariados e capitalistas) lucraram de maneira desigual; aqueles que principalmente compravam, perderam (os consumidores em geral, e em parte os mesmos assalariados e capitalistas, só que estes ganhavam muito mais e perdiam muito menos). Os que viviam de rendas fixas e apenas compravam, arruinaram-se (basicamente, a aristocracia rural).
Para sobreviver, o Estado foi obrigado a criar outras formas de arrecadação (venda de títulos da dívida pública, venda de cargos e títulos, que antes eram monopolizados pela nobreza de nascimento). A nova riqueza monetária aumentou a demanda de artigos de luxo por parte de seus beneficiários, fazendo com que a indústria precisasse de mais insumos agrários específicos para atendê-la, restando terras à cultura aos alimentos básicos (centeio, trigo, aveia e cevada) e elevando seus preços, gerando uma crescente miséria agrária que criou as bases de uma crônica e crescente rebelião camponesa.
Desse modo, a entrada de metais preciosos de origem americana na Europa se constituiu num episódio maior de sua história econômica: “Foi esse fato que desencadeou a crise dos preços do século XVI, e salvou a Europa de uma nova Idade Média, permitindo a reconstituição de seu estoque metálico”.[xvii] Ele desencadeou bem mais do que isso, pois antecipou o “clima” de uma nova sociedade, por meio do “espanto desses homens ao longo de um século que começa antes de 1500 e durante o qual os preços não param de subir. Tiveram a impressão de viver uma experiência sem precedentes.
Aos bons velhos tempos em que tudo se dava por nada, sucedeu o tempo desumano das carestias que não mais retrocediam”,[xviii] para os mais pobres, e dos lucros que não paravam de aumentar, para os novos ricos. Na Europa ocidental, o preço médio do trigo quadruplicou na segunda metade do século XVI. Os preços quadruplicaram na Espanha nesse século; na Itália, o preço do trigo multiplicou-se por 3,3; por 2,6 na Inglaterra, e por 2,2 na França.[xix]
A crise suscitada pela “revolução dos preços” (que quadriplicaram em média na Europa ao longo do século XVI, e favoreceu os devedores, levando não poucos credores à falência) contribuiu, através da inflação, para a ruína de inúmeros artesãos ou pequenos proprietários, criando novas condições sociais, suscetíveis de facilitar a passagem para um novo sistema econômico. Para Pierre Vilar, o descompasso que se produziu entre a alta dos preços e a dos salários, com sua “inflação de lucros”, foi “o primeiro grande episódio de criação capitalista”.
Para se medir a força de impacto da “revolução dos preços”, baste saber que total de ouro circulante na Europa entre 1500 e 1650 passou de cinco mil para 180 mil toneladas, e o de prata de 16 mil para 60 mil toneladas,[xx] o que fez com que “ revolução dos preços desatada pelos metais americanos contribuísse diretamente para o progresso do capitalismo. A manufatura têxtil, principal indústria, estava dominada pelo sistema de trabalho a domicilio. Sua falta de integração fazia com que o processo produtivo requeresse um longo período. O preço pago pelos bens nas Índias Orientais vinha determinado em grande medida pelo valor que tinham na Europa no momento em que os comerciantes empreendiam sua viagem, mas quando retornavam, os preços tinham se elevado. Em consequência, os industriais se viam com enormes ganhos inesperados”.[xxi]
Parte importante do novo e expansivo excedente monetário desviou-se para importar mercadorias do Oriente, mas outra parte alimentou o orçamento dos Estados que o despenderam em exércitos e armadas, emprestando dos banqueiros e criando o déficit fiscal (origem da dívida pública), que Marx chamou de “credo do capital”: “Ela infunde força criadora no dinheiro improdutivo e o transforma, assim, em capital, sem que, para isso, tenha que se expor aos esforços e riscos inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária… Daí que seja inteiramente coerente a doutrina moderna segundo a qual um povo se torna mais rico quanto mais se endivida. O crédito público se torna o credo do capital. E ao surgir o endividamento do Estado, o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, cede seu lugar para a falta de fé na dívida pública”.[xxii] Ela gerou a dependência crônica do Estado moderno em relação ao capital financeiro. Acompanhada de, e propiciada por um fenômeno inflacionário de dimensões sem precedentes, que a potenciou.
A rota da inflação acompanhou a rota de entrada e de transporte dos metais preciosos americanos na Europa: [xxiii] “A descoberta e a conquista puseram em movimento um enorme fluxo de metal precioso da América à Europa, e o resultado foi uma grande elevação de preços – uma inflação ocasionada por um aumento da oferta do melhor tipo de dinheiro de boa qualidade. Quase ninguém na Europa estava tão afastado das influências do mercado para não sentir algum efeito sobre o seu salário, sobre o que vendia, ou sobre qualquer pequeno objeto que quisesse comprar.
Os aumentos de preços ocorreram inicialmente na Espanha, onde os metais chegaram em primeiro lugar; a seguir, à medida que eram carregados pelo comércio (ou, talvez em menor escala, pelo contrabando ou por conquista) à França, aos Países Baixos e à Inglaterra, a inflação os seguiu. Na Andaluzia, entre 1500 e 1600, os preços subiram cinco vezes. Na Inglaterra, se tomássemos como 100 os preços da última metade do século XV, isto é, antes das viagens de Colombo, à altura da última década do século XVI estariam em 250; oitenta anos mais tarde, ou seja, na década de 1673 a 1682, estariam em 350, três vezes e meia acima do que haviam alcançado antes de Colombo, Cortez e Pizarro. Após 1680, estabilizaram-se e assim permaneceram, pois tinham caído muito antes na Espanha. Esses preços, não os relatos dos conquistadores, representaram a notícia de que a América tinha sido descoberta, para a grande maioria dos europeus”.[xxiv]
Espanha, principal beneficiária da exploração do continente americano, jogou nesse episódio, paradoxalmente, mais um papel de intermediaria dentro de um processo e alcance muito maior, com enormes consequências futuras: “A maneira pela qual o dinheiro foi gasto garantiu que a nova riqueza descoberta da Espanha provesse o continente inteiro com um impulso monetário. O ‘duro’, a moeda espanhola de prata, baseada no thaler alemão, se tornou a primeira moeda global do mundo, e financiou não somente as guerras da Espanha na Europa, mas também a rápida expansão do comércio europeu com a Ásia.
Os monarcas espanhóis do século XVI Carlos V e Felipe II, descobriram que uma abundância de metal precioso pode ser tanto uma maldição como uma benção. Cavaram tanta prata para financiar suas guerras que o valor do metal declinou dramaticamente, reduzindo seu poder de compra em relação a outros bens. Durante a ‘revolução dos preços’, que afetou toda Europa dos anos 1540 até 1640, o custo da comida – que não mostrara uma tendência ao aumento sustentado durante trezentos anos – subiu acentuadamente”.[xxv] Na Inglaterra o custo de vida se multiplicou por sete, um aumento catastrófico do preço do pão pelos padrões medievais.
Se a importância da elevação dos preços no século XVI está fora de discussão, não acontece o mesmo com suas causas. O surto inflacionário deveu-se ao aumento de circulação de metais preciosos, ou também tiveram peso decisivo outros fatores? Para Slicher Van Bath, a alta geral dos preços teria sido anterior à vinda e fluxo americano de metais preciosos na Europa. Os preços dos produtos agrícolas aumentaram antes disso mais do que os dos bens manufaturados e, também, mais do que os salários.[xxvi]
O fator desencadeante da “revolução dos preços” teria sido, para esse autor, a explosão demográfica interna: o aumento da população teria levado ao aumento da procura por produtos de subsistência e, consequentemente, a um aumento nos preços. Com o crescimento da população, por outro lado, houve uma maior oferta de mão de obra, o que levou a uma depreciação dos salários. Teria havido, também, um forte estímulo à produção agrícola de subsistência, evidenciado pelo aumento da área cultivada, e também pelo aumento do conhecimento agronômico.
O aumento dos preços se verificava diretamente no incremento do comércio urbano e no crescimento das cidades. Para Pierre Vilar, analogamente que para Van Bath, a revolução dos preços não foi causada exclusivamente pelo aumento da circulação de metais provenientes da América: desde meados do século XV uma tendência ao aumento dos preços se configurava através da expansão demográfica e agrícola, dos avanços técnicos da extração de prata na Europa, das inovações financeiras, monetárias, comerciais e, finalmente, políticas. A inflação do século XVI foi uma reviravolta crucial da economia europeia.
Graças a ela, a crise geral do século XVII, com a crise da agricultura, o estancamento populacional, ensejou o declínio final do feudalismo, o auge do capital comercial e a protoindustrialização, sintomas anunciadores de um novo modo de produção.[xxvii] Os senhores feudais já recebiam as contribuições anuais dos servos em moeda, uma taxa fixa por pessoa. Ao dobrar a quantidade de ouro, permanecendo pouco alterada a produção, os preços duplicaram reduzindo pela metade os rendimentos reais dos senhores feudais: “A crise econômica da nobreza feudal deu início a uma grande transferência de riqueza, cujo exemplo macroscópico foi a venda dos feudos. Para piorar a condição econômica da aristocracia e aumentar os ganhos especulativos da burguesia comercial surgira uma circunstância muito particular: o rápido aumento da massa de capital circulante, que se seguiu à importação massiva de metais preciosos, determinando um amplo fenômeno de inflação dos preços que se repercutiu negativamente nos valores fundiários feudais”.[xxviii]
Para Ralph Davis, “a revolução dos preços teve importância porque não operou igualmente sobre todos os preços, mudando as relações econômicas entre os homens (devido às) diferenças na riqueza, na habilidade, no conhecimento e na informação, e a resistência governamental ou das instituições municipais ou comerciais”:[xxix] a emergência da sociedade burguesa se apoiou, desse modo, sobre as diferenças de classe preexistentes.
O aumento geral dos preços produziu uma transferência de renda em prejuízo dos senhores feudais, visto que as prestações em dinheiro de seus servos e dependentes tinham valor nominal fixo, além da retração do consumo de cereais, a principal produção comerciável dos senhorios: “A velha nobreza perdeu rendas, cedeu grande parte de suas terras e, finalmente, passou a depender da caridade real ou a preencher cargos a serviço da Coroa”.[xxx] O declínio da nobreza criava uma base para uma transformação do Estado, o que não deve ser confundido com uma revolução ou transformação social, pois a classe dominante continuava a mesma, e o regime político (monarquia) continuava sendo formalmente o mesmo: “O que acontecia com a ereção da monarquia absoluta, com a domesticação da alta e da pequena nobreza pelos reis, não era senão um deslocamento do ponto de gravidade do poder dentro da mesma camada social. Partindo da nobreza, dispersa por todo o país, se desenvolveu, como centro e poder decisivo, a nobreza cortesã, centrada em torno do rei. E assim como a maioria dos nobres se transformou de cavaleiro em senhor e grande senhor cortesão, os reis mudavam no mesmo sentido”.[xxxi]
Assim, a revolução dos preços não produziu, mas acelerou, a transição para um novo modo de produção, e também para um novo Estado. Pierre Vilar o sintetizou de modo magistral: “A acumulação primitiva de capital engendra sua própria destruição. Na primeira fase, a alta dos preços, o aumento dos impostos reais, os empréstimos grandiosos, estimulam os usurários e os especuladores, mas, no final, em graus diferentes segundo os países, as taxas medias de juros e dos lucros tendem a igualar-se e a diminuir. É necessário que o capital acumulado busque outro meio de reproduzir-se. É preciso que os homens de dinheiro, que se haviam mantido relativamente à margem da sociedade feudal, invadam todo o corpo social e tomem o controle da produção”.[xxxii]
A nova classe emergente não deixou de advertir o potencial político da rebelião popular contra os senhores: “No início do século XVI a ordem estabelecida parecia ameaçada na Europa. A velha pressão da nobreza e a pressão renovada de alguns soberanos que reclamavam mais impostos e mais soldados, pesavam duramente sobre as camadas populares, especialmente sobre os camponeses. Seu mal-estar se expressava em revoltas cada vez mais frequentes, quase uma por ano. Essas revoltas eram cada vez mais conscientes e radicais, com frequência delineavam exigências de reforma social… Não importa que reivindicassem uma ‘economia moral’ ilusória, que supunham que os senhores tinham tornado vulnerável, ou que invocassem a lei divina e fizessem uma leitura igualitária dos evangelhos, o que dava um caráter ‘tradicional’ a seu discurso.
Por trás desses argumentos existia a esperança de uma nova sociedade na qual os homens seriam iguais em direitos, as autoridades eleitas, e a religião não seria um instrumento de controle social nas mãos dos clérigos”.[xxxiii] Uma revolução não só econômica, mas também social, estava a caminho, alicerçada na rebelião no campo.
Paul Mantoux sublinhou o papel do comércio e das cidades nesse período de gestação de uma nova economia. Os grandes mercados urbanos surgiam das rotas percorridas pelos mercadores. A transição para compras e vendas contínuas, no entanto, só teria início no século XVIII. Essa nova forma comercial sofreu influência e também propiciou o desenvolvimento de novos meios de transporte e da navegação a vapor; o grande entrave que impedia a expansão da economia mercantil era a falta de comunicação. O novo fluxo do comércio exigia ser conduzido por canais mais eficientes.
Com o desenvolvimento dos transportes, as feiras e mercados ocasionais se tornaram obsoletos na Europa ocidental (as feiras orientais da Europa mantiveram sua importância por mais tempo). Os métodos comerciais mudaram. As bolsas de produtos aos poucos foram tomando lugar das feiras, funcionando diária e permanentemente. As grandes compras e vendas se davam por amostras: o comércio tornou-se mais especulativo. Surgiram a venda de títulos de propriedade de empresas e os termos ou transações de seguro, mediante as quais o produtor se garantia quanto a qualquer perda que pudesse sofrer através de flutuações no preço da matéria prima. Os seguros garantiam o pagamento de uma multa pré-estabelecida caso o preço caísse; o comprador, por sua vez, garantia uma cobertura no valor eventualmente alterado do produto que desejava comprar.
O mercado, além disso, se diversificava, havia uma maior quantidade de suprimentos. Com a modificação dos transportes a variedade de produtos provenientes de lugares diferentes era muito maior. Os comerciantes começaram a se dedicar somente às vendas, se especializando em alguns setores. As bolsas de produtos utilizavam novos métodos de comunicação para se relacionar com outras bolsas: isso acarretou a tendência para a criação de um preço único internacional, cuja oscilação era notificada a todos os mercados. Os viajantes comerciais usavam novos meios de transporte para buscar compradores.
As lojas foram se tornando variadas, passaram a ser dirigidas por um comerciante de artigos especializado: se tornavam assim empresas comerciais. Inicialmente pequenas e especializadas, se tornariam ulteriormente grandes e múltiplas, com filiais. A circulação acelerada de mercadorias foi uma condição da valorização do capital na indústria e no comércio, paralela à dissolução das vassalagens, que desmoronou progressivamente o sistema feudal no campo e a organização corporativa na cidade. O capital oriundo do comércio instalou-se nas manufaturas aproveitando-se do sistema urbano e da organização corporativa, buscando economias de escala mediante a centralização dos recursos produtivos.
Marx resumiu o processo: “A transformação dos meios de produção individualmente dispersos em meios socialmente concentrados, da propriedade minúscula de muitos na propriedade gigantesca de poucos; a expropriação da grande massa da população, despojada de suas terras, de seus meios de subsistência e de seus instrumentos de trabalho, essa terrível e difícil expropriação, constituiu a pré-história do capital”.[xxxiv]
Mudanças geopolíticas acompanharam esse processo. Na segunda metade do século XVI, “o fato mais sobressalente foi o progresso das potências marítimas do Oeste e do Noroeste de Europa, ocupando o lugar de Espanha e Portugal. França tinha um papel de importância secundária, embora honorável. Seu comercio exterior se desenvolvia principalmente com Espanha, que tinha necessidade de seus produtos e só podia pagar com numerário, e com Inglaterra, onde os produtos agrícolas da França eram bastante solicitados… Foi também na segunda metade do século XVI quando os ingleses começaram a formar parte do grande comercio marítimo, grandemente impulsionados pelos Tudor que, tendo grades necessidades de dinheiro, se esforçaram em desenvolver as forças econômicas da nação e inauguraram, sob o reinado de Elizabeth, uma intensa política nacionalista”.[xxxv]
Diversamente, na Espanha, “a burguesia era menos poderosa do que nos países vizinhos. Compreendia os comerciantes de cidades como Burgos, Medina del Campo, Sevilha, Valencia e Barcelona, os juristas detentores de um cargo estatal ou notarial, e os mestres de algumas corporações muito prezadas”. Em contraste, “o clero compreendia cem mil pessoas. Seus recursos eram consideráveis. Possuía vastos domínios, especialmente em Galícia e Toledo, percebendo os dízimos e também donativos. Essa riqueza estava muito desigualmente distribuída”.[xxxvi]
Na corrida em direção da “nova economia”, Espanha ia ficando para trás. Para Pierre Vilar, “pode-se situar na época de Carlos V a conclusão do desenvolvimento espontâneo iniciado nos tempos dos Reis Católicos, acentuado pelos êxitos do descobrimento da América. Mais delicado resulta pronunciar-se sobre o ritmo deste impulso nos tempos de Filipe II… O memorial de Luís Ortiz analisa os dois grandes fatores da decadência futura já em 1558, depois da grande quebra da fazenda pública: o desequilíbrio dos preços internos e externos e os gastos do Estado feitos fora do reino.
A partir de 1560 a subida de salários anula para as empresas o benefício da subida de preços. Só depois de 1600, ao coincidir a catástrofe demográfica – a peste de 1600 – com a diminuição do ritmo de chegada dos metais das Índias, o Estado espanhol se vê obrigado a cunhar uma má moeda de cobre e a passar da ‘idade do ouro’ à idade do bronze. Então, a decadência econômica será evidente para todos”.[xxxvii] A ideia da “decadência espanhola” também é defendida por J. H. Elliott, para quem “o desaparecimento do poder espanhol na década de 1640 aparece tão irrevogável e absoluto que não pode ser considerada senão como inevitável… O poder espanhol se apresentara por primeira vez em todo seu esplendor com Filipe II. Depois, com o reinado de Filipe III apareceu a decadência de Espanha”.[xxxviii]
Para Milcíades Peña, ao contrário, o binômio grandeza e declínio da Espanha seria um mito: na Espanha não teria havido decadência, mas um permanente raquitismo de seu desenvolvimento econômico. No final de seu percurso supostamente glorioso e poderoso, não havia verdadeira unificação nacional na Espanha dos séculos XVI e XVII – uma opinião que também era a de Marx e Engels –[xxxix] condição para um mercado interno unificado. Segundo Manuel Colmeiro, “cada um dos reinos (espanhóis) fechou-se no seu território, estabeleceu alfândegas, fixou taxas de entrada e saída e proibições decretadas. As mercadorias vindas de Aragão eram estrangeiras em Castela, Navarra, Catalunha e vice-versa, de modo que os comerciantes tinham que pagar o pedágio quantas vezes eles passaram de uma área fiscal para outra.
A exuberância da vida municipal, que nos primeiros anos da Reconquista isolou cidades a ponto de parecerem emancipadas, enfraqueceu com o tempo, formando pequenas nações… Cada cidade governou à sua maneira, sem fazer causa comum com os outros povos peninsulares; embora obedecendo a mesmo soberano, celebraram tribunais separados, gozaram de privilégios diferentes e, finalmente, mantiveram sua autonomia”.[xl]
Isso acontecia paralelamente à conquista do mundo pela Espanha, durante o “Século de Ouro” espanhol (1525-1648), quando “os castelhanos, seguindo os passos dos romanos, primeiro conquistavam, depois colonizavam, governavam e exploravam suas conquistas… (Embora) o destino da Espanha, e de outras potências que seguiram seus passos, nos leva a pensar se o prejuízo das consequências psicológicas do império para os imperialistas não supera, a longo prazo, o mais valioso bem a trazer no seu trem”.[xli]
O monopólio do comércio colonial da Espanha só servia para enriquecer o comércio de Sevilha ou Cádiz e a indústria e o comércio estrangeiro instalado nesses portos, o que esteve na raiz do fracasso histórico mundial da Espanha em manter a si mesma como a principal potência colonial, culminando em suas sucessivas falências financeiras em 1557, 1575, 1596, 1607, 1627, 1647, 1653 e 1680, em tempos em que “dois terços da prata da frota do Tesouro espanhol foram direto para países estrangeiros sem sequer entrar na Espanha”.[xlii] O atraso econômico espanhol (e também português) era evidente, e tributário do desenvolvimento industrial inglês, francês e holandês.[xliii] A lã espanhola era matéria prima para a indústria de outros países europeus, que a revendiam manufaturada ao seu país (ou países) de origem. No final do século XV, não foram espanhóis, mas flamencos e italianos, os que ocuparam o lugar proeminente dos expulsos judeus na economia peninsular.[xliv]
O grande apoio direto da monarquia espanhola eram os fazendeiros transumantes, agrupados no Honorable Concejo de la Mesta cuja base de atividade econômica (produção e venda de lã) implicava a luta contra as fronteiras localistas, que impediram todo progresso nas suas atividades comerciais. As marchas dos pastores com os seus rebanhos alargavam o mercado de seus produtos além dos limites locais e até além das fronteiras da Espanha dos Reis Católicos. As cidades, as ordens eclesiásticas e a nobreza opuseram toda espécie de obstáculos à peregrinação do gado transumante. O nascimento de um forte poder central favoreceu à Mesta, fornecendo-lhe um aliado e um defensor contra as constantes extorsões dos coletores de impostos locais. E a monarquia católica não dispunha de outros instrumentos para derrubar o localismo do que as migrações da Mesta, a quem delegou privilégios, funções administrativas e até judiciais e fiscais que deveriam corresponder ao Estado, ou seja, a monarquia espanhola delegava suas funções estatais a uma entidade particular, o que a distanciava das monarquias absolutistas.[xlv]
Assim, na verbosa descrição do historiador da economia espanhola, Ramón Carande, “a prostração e o desequilíbrio de nossa economia contribuiu para que os reis da Espanha encontrassem guerreiros e monges a baixo preço e, com eles, devamos à nossa pobreza grande parte da portentosa capacidade expansiva que durante seu reinado se iniciou. Mas a fome, a ‘fome imperial’ que disse um dia Quevedo, está longe de explicar o arranque dos que saíram da Espanha sem que a pequenez das naus, a imensidade do mar, nem as distâncias intermináveis e cheias de riscos, contivessem seu espírito, nem acalmassem a sede de horizontes, riquezas, honras e senhorios de uns, ou de bem-aventuranças, sacrifícios abnegados e salvação na eternidade de outros”. Por ambos os motivos, de busca de nobreza ou de missão religiosa, a expansão colonial espanhola se tingiu de parasitismo improdutivo e saqueador, revelada pela “insistência dos altos oficiais do governo indiano pedindo labradores que não encontravam”: “Basta comparar dois tipos contrapostos de colonização; a nossa, desbordante, acelerada na exploração de territórios, e aquela que, no Nordeste da América, manteve fechados em redutos, os franceses, desde Cartier, e os ingleses depois, numa faixa costeira. Eles e os holandeses viveram sedentários junto a suas culturas e oficinas durante dos séculos, de costas para o continente”.[xlvi]
As consequências foram estruturais e de longo prazo. Espanha, “uma vez que mutilou suas forças produtivas, ficou reduzida à condição de país consumidor-importador. A partir de 1496 as oficinas inglesas, francesas, italianas, holandesas e alemãs, substituíram as abandonadas ou destruídas de Segóvia, Toledo, Barcelona e outras cidades, no abastecimento do país. A família real e os grandes senhores deram o exemplo ao se prover no exterior e introduzir modas alheias. Ao se alargar o mercado espanhol com a incorporação dos consumidores americanos agravou-se a dependência econômica da metrópole em relação às manufaturas de Europa ocidental.
Quanto maior a riqueza metálica extraída de seus domínios, maior era o abatimento da economia peninsular e sua subordinação às economias em desenvolvimento. Os monopólios, o mercado único, a proibição do comércio direto das colônias com outros países e o isolamento político e ideológico, reforçaram essa relação. A monarquia mais poderosa do universo, braço direito da Igreja Católica, espelho e refúgio de príncipes e senhores, precisou mendigar dinheiro a prestamistas sem amor à glória e enganar-trair seus súditos com adulterações de vil metal ao valor declarado da moeda”.[xlvii] .
Essa característica se prolongou por séculos: “A segunda metade do século XVIII conheceu uma forte expansão da produção e da exportação de bens de origem americana, movimentos que não dão lugar a fenômenos de desenvolvimento, mas apenas de crescimento. Não houve nenhuma mudança na estrutura social espanhola”.[xlviii]
O raquitismo e parasitismo econômicos espanhóis entravam em declínio, ou seja, tornava evidente o desigual desenvolvimento europeu que o tinha precedido. Carlos Astarita estudou “o mecanismo de troca assimétrica entre diferentes áreas europeias, na fase da primeira transição para o capitalismo (com a) preocupação de estabelecer a relação de causalidade entre fluxos comerciais e desenvolvimento desigual em diferentes países”, exatamente a partir do estudo de Castela e de seus fluxos comerciais com a Europa.
Já Claudio Sánchez Albornoz, citado pelo autor, se referiu à “invasão do reino de Castela pelos mercadores e mercadorias estrangeiras (que) criaram uma dupla corrente de emigração: de grandes somas de ouro e prata e grandes quantidades de matérias-primas, causando a falência da moeda e o empobrecimento geral”. De acordo com isso, “a importação de produtos de luxo teve ampla repercussão econômico e social, contribuindo para o luxo e ostentação imponente”, e determinando “o grande fracasso da economia castelhana”, impedindo o uso de ferro e lã para a industrialização do país, em contraste com a Grã-Bretanha, onde, ao contrário do que aconteceu em Castela, começou no século XV “uma industrialização lenta, mas magnífica”.[xlix]
As consequências políticas foram violentas. No caso espanhol, “o antagonismo entre fabricantes e comerciantes foi definido no nível político-militar; Villalar[l] foi a sanção para a prática econômica e social disruptiva e à ação política conflituosa que os comerciantes erigiram contra as condições vigentes… O resultado militar, a derrota dos setores industriais, permitiu a cristalização de uma estrutura econômica e social que durante um longo período de tempo gerou condições para que o intercâmbio assimétrico entre Castela e outras áreas europeias continuasse a ser realizado”.
O que sublinha “a relação causal entre o fluxo comercial e o desenvolvimento econômico diferenciado entre países…. Nessa fase histórica, houve transferência de valor, acumulação de capital mercantil, reprodução do sistema corporativo, capitalismo manufatureiro e feudalismo, consumo de bens de luxo e não luxo, variáveis que coexistiram em um todo social no espaço europeu”.
O desenvolvimento desigual (Espanha – regiões industrializadas da Europa) evidenciaria que “a teoria da dependência, ou seja, a explicação do atraso econômico pela mera transferência de valor no mercado mundial, é insuficiente e a necessitar de revisão”,[li] o “intercâmbio desigual” pressupõe desigualdades prévias no desenvolvimento econômico, cuja presença no alvorecer do capitalismo explica os papeis centrais ou periféricos dos diversos países e regiões na transição entre modos de produção.
Barbosa argumenta que “a dinâmica do mercado mundial, tomada isoladamente, é incapaz de explicar as mutantes posições de dominação-subordinação entre as nações europeias nos séculos XVI a XVII”,[lii] ou porque nações maiores ou mais poderosas que a Inglaterra não conseguiram consolidar o capitalismo.
O conceito de desenvolvimento desigual, nas condições de um mercado mundial em desenvolvimento, se opõe às noções de “grandeza e decadência”, de matriz cíclica, para a análise das posições cambiantes das unidades econômicas e políticas na transição para o capitalismo, no mercado mundial e no próprio capitalismo estabelecido. O desenvolvimento desigual pressupõe um padrão comum de medida, que só pode ser dado pela universalidade tendencial da produção capitalista, verificada na realidade do mercado mundial: “O mercado mundial não é só o mercado interno na relação com todos os mercados estrangeiros existentes fora dele, mas é simultaneamente o [mercado] interno de todos os mercados estrangeiros como partes integrantes, por sua vez, do mercado nacional. Nesse sentido, nele resplandecem os diferentes graus de desenvolvimento nas forças produtivas em diferentes nações”.[liii]
A teoria do desenvolvimento desigual (e combinado) constitui, para autores recentes, “o passo necessário em direção do não-eurocentrismo”,[liv] pois evidenciaria o papel das “pressões geopolíticas” externas e dos avanços tecnológicos apropriados pelo Ocidente dos ameríndios, dos impérios mongol e otomano e dos povos do Oceano Índico, reduzidos a “outros”, na emergência e consolidação do capitalismo ocidental.[lv]
Os “diferentes graus de desenvolvimento”, por outro lado, não remetem a nenhuma abstração, mas às diferenças de desenvolvimento e localização dos mesmos nas eras pré-capitalistas e na fase transicional,[lvi] postas em contato entre si através da constituição do mercado mundial. Quando isso acontece, “mesmo com a reprodução do capital constante na forma natural e na produtividade passadas, ainda assim o fiandeiro inglês reproduzirá novamente seu ‘poderoso autômato’ e o fiandeiro indiano sua roda de fiar manual: a desigualdade da Inglaterra e da Índia é reproduzida continuamente, assim como a reprodução contínua da relação de classe entre capitalista e trabalhador assalariado”.[lvii]
Neil Smith, estudando a dimensão espacial do desenvolvimento capitalista, concluiu em que a desigualdade espacial não era um simples subproduto da geografia e só fazia sentido como parte do desenvolvimento contraditório do capitalismo: “A divisão do trabalho na sociedade é a base histórica da diferenciação espacial de níveis e condições de desenvolvimento. A divisão espacial ou territorial do trabalho não é um processo separado, mas está implícito, desde o início, no conceito de divisão do trabalho”.[lviii]
O conceito de desenvolvimento desigual evidencia a possibilidade de coexistência numa mesma sociedade de elementos díspares e até contraditórios, remanescentes de etapas históricas passadas e criações recentes, e a fusão de elementos desigualmente desenvolvidos como forma de superação da desigualdade precedente: “O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada leva necessariamente a uma combinação original de diversas fases do processo histórico.
O ciclo apresenta, enfocado em sua totalidade, um caráter irregular, complexo, combinado”, caracterizado pela “combinação das diferentes etapas do caminho, a confusão de distintas fases, o amálgama das estruturas arcaicas com as mais modernas”.[lix] No início da era do capital, a península ibérica era a ilustração mais acabada dessa asseveração. O desenvolvimento desigual, nas condições de mundialização das relações econômica, levou necessariamente à combinação de diversas formas econômicas e sociais numa mesma formação econômico-social, originando um conceito que seria “uma das tentativas mais significativas de romper com o evolucionismo, a ideologia do progresso linear e o eurocentrismo”.[lx]
Quando, em finais do século XVI, se verificou o recuo peninsular no cenário internacional, não se tratava só de problemas locais ou regionais, ou de abalos geopolíticos, mas de mudanças estruturais de uma economia crescentemente internacional, em transição de modo de produção, pano do fundo da “ascensão econômica” do século XVI e da crise ou depressão geral do século XVII. A população mundial chegou a 438 milhões de habitantes em 1500 e passou para 556 milhões em 1600, com um crescimento de 118 milhões de habitantes só no século XVI.
No século seguinte, o acréscimo foi de apenas 47 milhões. Na fase de ascensão do século XVI “os negócios prosperavam, as oportunidades e procuras externas estimulavam transformações nas instituições, tanto na Europa oriental como na Europa ocidental, e até nalgumas partes do Novo Mundo. Talvez já tivessem tido um impacto semelhante durante o anterior longo período de expansão dos séculos XII e XIII, quando mudaram as relações da Europa com os muçulmanos, particularmente nas regiões mediterrâneas”.
Em contraste, “grande parte do século XVII testemunha um declínio na produção de prata e no fornecimento da moeda, longos períodos de deflação, grande diminuição no comércio transatlântico, menor ou mais lenta expansão do comércio com o Oriente e produção mais baixa, ou menores taxas de crescimento. A área do Mediterrâneo (Portugal, Espanha, Itália, o Império Otomano), em ascensão econômica no século XVI, sofreu um declínio que, sob muitos aspectos, foi absoluto, e envolveu também o Noroeste da Europa”.[lxi]
Para o autor citado, “a expansão se deteve pelo aumento das limitações das forças produtivas relativas às relações de produção – por outras palavras, pelos retornos decrescentes à escala de produção”, ou seja, devido a uma crise econômica estrutural, de alcance continental (e, no quadro da expansão europeia, direta ou indiretamente, mundial), que provocou uma “crise e reajustamento secular”.
Na Europa, as sobrevivências feudais viravam um obstáculo para o desenvolvimento econômico, cujo fracasso a devolveria aos patamares produtivos (e de vida social) da Alta Idade Média: “Só uma transformação radical poderia provocar a mudança necessária para que se consolidasse a revolução agraria que tinha começado na Inglaterra. A premissa para a ampliação da produção manufatureira era a expansão interna e externa da demanda de mercadorias. A demanda de bens de consumo aumentava na medida em que aumentava a população… As repercussões do crescimento demográfico sobre a demanda eram limitadas, já que os salários reais caiam por causa do aumento dos preços dos produtos alimentícios. Ao aumentar o poder aquisitivo dos produtos agrários, crescia a parte da renda camponesa que podia somar-se à demanda de produtos manufaturados. Ganhou peso também a demanda das camadas medias urbanas. Graças à incipiente comercialização da agricultura, à protoindustrialização e ao crescimento desproporcional das cidades, o número de lares que dependia do mercado aumentava de maneira extraordinariamente rápida. As economias domesticas para as que o mercado era periférico foram diminuindo paulatinamente. O mercado interno se ampliava. Por causa das melhoras agrícolas e da diminuição das crises de abastecimento, perderam força as crises de subconsumo das manufaturas”.[lxii] Outro tipo de crise, como veremos, tomaria seu lugar.
A economia europeia mudava de natureza, sua crise a impelia nesse sentido. Em consequência, nos primeiros grandes centros financeiros da Europa, especialmente em Amsterdã, os inícios da acumulação capitalista vieram acompanhados de crisesde um novo tipo. Inicialmente, elas foram atribuídas a fenômenos aleatórios, como foi o caso da “crise das tulipas”, a primeira crise econômica moderna registrada, que transcorreu entre 1636 e 1637, provocada pela especulação sobre o aumento de preços, e posterior desmoronamento dos mesmos, dessa flor exótica usada na decoração de jardins e também na medicina nos Países Baixos.
Foi a primeira “crise de sobre produção” a ser registrada nos anais históricos: os comerciantes estavam abarrotados de bulbos de tulipas, e quebraram: a Corte holandesa não obrigava a execução do pagamento dos contratos de compra-venda quando a “bolha dos preços” estourou. Versões menores, mas semelhantes, da “tulipamania” também ocorreram em outras partes da Europa. Um dos seus efeitos foi a sofisticação do sistema financeiro (através dos contratos de seguro) e a criação de novos mecanismos de troca comercial, como o mercado de opções.[lxiii]
No meio da depressão da economia europeia no século XVII, o centro da hegemonia econômica se deslocava para os países vizinhos do Mar do Norte: com a entrada de Inglaterra, Holanda e França na expansão comercial e colonial mundial, Fernand Braudel datou em 1650 a passagem da história do “mundo mediterrâneo” para a história mundial.[lxiv]
A depressão europeia impelia em direção de uma ampliação do cenário e da base da sua atividade econômica. Desse modo, foi tendo como centro inicial os territórios vizinhos ao Noroeste europeu, em um processo de abrangência econômica muito mais ampla, que se gestaram, na Europa ocidental, as condições que possibilitaram o nascimento e a vitória do capitalismo e de suas instituições. Suas bases de lançamento foram a violência social e política na Europa, e a violência geral, derivada da colonização, na América e na África – as primeiras crises de sobre acumulação de mercadorias e capitais, por sua vez, foram o sinal anunciador de seu doloroso parto.
Notas[i] Emmanuel Le Roy Ladurie. O Estado Monárquico. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.[ii] Janet L. Abu-Lughod. Before European Hegemony. The world system 1250-1350. Nova York, Oxford University Press, 1989.[iii] Fritz Rörig. The Medieval Town. Batsford, University of California Press, 1967 [1932].[iv] Um artigo em American History (de dezembro de 2009) elencou sete civilizações ou povos não americanos que, ao longo de milênios, poderiam ter tido algum contato ou se aproximado do continente americano: siberianos, chineses, japoneses, polinésios, vikings, irlandeses e franco-espanhóis (ou europeu-ocidentais).[v] Felipe Fernández-Armesto. Cristóbal Colón. Barcelona, Folio, 2004.[vi] Frédéric Mauro. Europa en el Siglo XVI. Aspectos económicos. Barcelona, Labor, 1969. As sociedades por ações, de modo embrionário, já existiam em Roma e outras praças na Antiguidade, como simples parceria; uma das partes oferecia capital ao operador de uma empresa em troca de uma parte nos lucros. Esse tipo de cooperação econômica foi retomado na França medieval, mas só veio a ser popularizado pelos holandeses no século XVII, prefigurando as modernas empresas de capital aberto.[vii] Earl J. Hamilton. El Florecimiento del Capitalismo. Madri, Alianza Universidad, 1984.[viii] Pierre Vilar. La transition du féodalisme au capitalisme. In: CERM (Centre d’Études et Recherches Marxistes). Sur le Féodalisme, Paris, Éditions Sociales, 1971.[ix] José Jobson de Andrade Arruda. A Grande Revolução Inglesa 1640-1780. São Paulo, Departamento de História USP – Hucitec, 1996.[x] Os defensores de uma suposta “Europa eterna” se basearam nas linhas de divisão geográfica traçadas pelos gregos clássicos que, naturalmente greco-cêntricos, nomearam as terras ao Leste como Ásia, as do Sul como África, e o restante como Europa, noção que, no entanto, englobava parte da África e se estendia até as fronteiras do Egito no Nilo, isto é, até onde chegava a civilização helênica, excluindo a península ibérica. A divisão grega, que caiu em desuso na Era Cristã, foi retomada na Era Moderna, pretendendo estabelecer uma linha de continuidade direta entre a “Europa” grega com a Europa Ocidental moderna; o Mediterrâneo teria separado, desde sempre, o “Ocidente civilizado” do “Oriente bárbaro”, o que é um mito moderno.[xi] Nigel Cliff. Guerra Santa. Como as viagens de Vasco da Gama transformaram o mundo. São Paulo, Globo, 2012.[xii] Immanuel Wallerstein. Islam, the West, and the World. Lecture in series “Islam and World System,” Oxford Centre for Islamic Studies, outubro de 1998.[xiii] Karl Marx. O Capital. Livro I, vol. 1.[xiv] Angus Maddison. Chinese Economic Performance in the Long Run. Paris, OCDE, 1998.[xv] O dólar Geary-Khamis é uma unidade de conta fictícia, que tem o mesmo poder aquisitivo em um dado país que o dólar americano nos Estados Unidos em um determinado momento.[xvi] Karl Marx. O Capital, Livro I, capítulo XXIV.[xvii] Pierre Chaunu. História da América Latina. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1981.[xviii] Fernand Braudel. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II, São Paulo, Edusp, 2016, vol. 1.[xix] John H. Munro. Money, prices wages and profit inflation in Spain, the Southern Netherlands and England during the price revolution: 1520-1650. História e Economia vol. 4 nº 1, São Paulo, 1º semestre de 2008.[xx] Earl J. Hamilton. El Tesoro Americano y la Revolución de los Precios en España 1501-1650. Barcelona, Crítica, 2000.[xxi] Earl J. Hamilton.El Florecimiento del Capitalismo, cit.[xxii] Karl Marx. O Capital. Livro I, Seção VII.[xxiii] Cf. Fernand Braudel. Il tesoro americano e la rivoluzione dei prezzi. In: Ciro Manca (ed.). Formazione e Trasformazione dei Sistemi Economici in Europa dal Feudalesimo al Capitalismo. Padua, CEDAM, 1995.[xxiv] John K. Galbraith. Moeda. De onde veio, para onde foi. São Paulo, Pioneira, 1977.[xxv] Niall Ferguson. A Ascensão do Dinheiro. História financeira do mundo. São Paulo, Planeta, 2009.[xxvi] H. Slicher Van Bath. História Agrária da Europa Ocidental (500-1850). Lisboa, Presença, 1984.[xxvii] Eric J. Hobsbawm. A crise geral da economia europeia no século XVII. In: Charles Parain et al. Capitalismo Transição. São Paulo, Moraes, sdp.[xxviii] Giuliano Conte. Da Crise do Feudalismo ao Nascimento do Capitalismo. Lisboa, Presença, 1979.[xxix] Aqui convém lembrar que “a diferença de dotes naturais entre os indivíduos não é tanto a causa quanto o efeito da divisão do trabalho” (Karl Marx. Manuscritos Económico-Filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004 [1844]).[xxx] Ralph Davis. La Europa Atlántica. Desde los descubrimientos hasta la industrialización. México, Siglo XXI, 1989.[xxxi] Norbert Elias. La Sociedad Cortesana. México, Fondo de Cultura Económica, 1982 [1969].[xxxii] Pierre Vilar. La transition du féodalisme au capitalisme, cit.[xxxiii] Josep Fontana. A Europa diante do Espelho. Bauru, Edusc, 2005.[xxxiv] Karl Marx. O Capital. Livro I, vol. 1.[xxxv] Henri Sée. Origen y Evolución del Capitalismo Moderno. México, Fondo de Cultura Económica, 1952 [1926].[xxxvi] Henri Lapeyre. Carlos Quinto. Barcelona, Oikos-Tau, 1972.[xxxvii] Pierre Vilar. História da Espanha. Lisboa, Livros Horizonte, 1992.[xxxviii] J. H. Elliott. La decadência de España. In: Carlo M. Cipolla, J. H. Elliot et al. La Decadencia Eonómica de los Imperios. Madri, Alianza, 1981.[xxxix] “A monarquia absoluta em Espanha era apenas superficialmente semelhante às monarquias da Europa, deveria antes ser incluída nas formas de governo asiático. Espanha, como a Turquia, permaneceu um aglomerado de repúblicas desencaminhadas, com um soberano nominal à sua frente” (Karl Marx e Friedrich Engels. La Revolución Española. Madri, Akal, 2017 [1854-1873]).[xl] Manuel Colmeiro. Historia de la Economía Política en España. Madri, Libreria de Don Angel Calleja, 1883. “Quem estudar as cidades medievais de Castela e dos outros reinos peninsulares surpreende-se com o escasso peso que tinha, face a outros países, o tipo de cidadão patrício enriquecido pelo exercício de atividades industriais ou comerciais. Sedes de florescente economia, cujo comércio estivesse exclusivamente nas mãos dos espanhóis, não existiam no país. O governo local das cidades de Castela era exercido por cavaleiros ou fidalgos, fazendeiros ou artesãos, alguns advogados, mas raramente por comerciantes, devido ao seu escasso número” (Ramón Carande. Carlos V y sus Banqueros. Barcelona, Crítica, 1987).[xli] John h. Elliot. Spain and its World 1500-1700. New Haven, Yale University Press, 1989. Cf. também: Bartolomé Bennassar. La España del Siglo de Oro. Barcelona, Crítica, 2001.[xlii] John H. Elliott. Imperial Spain 1496-1716. Harmondsworth, Penguin Books, 1970.[xliii] Escrevia Baltazar Gracián, em El Criticón (1651): “Os franceses reclamam que a sorte não lhes deu a América. Estão errados. Na realidade, a Espanha desempenha o papel das Índias para a França”.[xliv] No século XIV, a Inglaterra expulsara os judeus e italianos que hegemonizavam a economia insular, para substituí-los por comerciantes e industriais ingleses.[xlv] Julius Klein. La Mesta. Estudio de la historia económica española, 1273-1836. Madri, Alianza, 1994; Jerónimo López-Salazar Pérez e Porfirio Sanz Camañes (orgs.). Mesta y Mundo Pecuario en la Península Ibérica durante los Tiempos Modernos. Madri, Universidad de Castilla – La Mancha, 2011.[xlvi] Ramón Carande. La economia y la expansión ultramarina bajo el gobierno de los Reyes Católicos. Siete Estudios de Historia de España. Barcelona, Ariel, 1976.[xlvii] Rodolfo Puiggrós. La España que Conquistó al Nuevo Mundo. Buenos Aires, Corregidor, 1974.[xlviii] Ruggiero Romano. Le Rivoluzioni Borghesi. Milão, Fratelli Fabbri, 1973.[xlix] Claudio Sánchez Albornoz. España, un Enigma Histórico. Buenos Aires, Edhasa, 1992 [1971].[l] Batalha que decidiu a “guerra das Comunidades de Castela”, também conhecida como “revolta dos comunheiros”, levantamento contra a Coroa que teve lugar entre 1520 e 1522, protagonizado pelas cidades do interior do Reino de Castela. Alguns historiadores qualificaram-na como uma das primeiras revoluções modernas. Os revoltosos, sem proteção da artilharia, foram, em abril de 1521, derrotados pela cavalaria dos nobres leias à Coroa; perderam entre 500 e mil homens, enquanto seis mil caíram prisioneiros, sendo executados os principais líderes comunheiros, pertencentes à nobreza castelhana.[li] Carlos Astarita. Desarrollo Desigual en los Orígenes del Capitalismo. Buenos Aires, Facultad de Filosofía y Letras (UBA) – Tesis 11, 1992.[lii] Carlos Alonso Barbosa de Oliveira. Processo de Industrialização, cit.[liii] Flávio Ferreira de Miranda. Mercado Mundial e Desenvolvimento Desigual, cit.[liv] A narrativa eurocêntrica é definida como a posição segundo a qual a “modernidade” teve origem no Atlântico Norte, derivando dela o progresso tecnológico e a civilização que teriam se estendido para o restante do mundo. A excepcionalidade europeia (a Europa teria sido a primeira região do globo a combinar os ideais de modernidade e progresso) seria suficiente para legitimar a história europeia como modelo exemplar ou paradigmático para o desenvolvimento de toda a humanidade. A universalização da experiência histórica das sociedades europeias teria início no Iluminismo, com a atribuição, pelos seus representantes, de características como singularidade, universalidade e desenvolvimento contínuo à história, a partir do seu “motor europeu”. A história seria vista como um fenômeno no qual a humanidade se encontra em um processo de desenvolvimento e evolução progressivos, cujo modelo seria a Europa (cf. Michael Wintle. Eurocentrism: History, Identity, White Man’s Burden. Londres, Routledge, 2020; Daniel Vasconcelos. Para além do ensino da História Nacional: o eurocentrismo e suas interpretações teóricas. Revista Ars Historica nº 21, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ], 2021). A crítica da narrativa eurocentrada (ou de qualquer outro “centro” privilegiado da história), conquanto necessária ou relevante historiograficamente, se vincula, mas não se identifica, com a questão da origem do capitalismo e do papel do “centro europeu” (mais precisamente, europeu ocidental) e da “periferia” nesse fenômeno histórico.[lv] Alex Anievas e Kerem Nişancıoğlu. How the West Came to Rule. The geopolitical origins of capitalism. Londres, Pluto Press, 2015.[lvi] O desenvolvimento desigual se observa no “desenvolvimento mais rápido ou mais lento das forças produtivas; no caráter mais ou menos amplo ou reduzido de épocas históricas inteiras, por exemplo, na Idade Média do regime corporativo, do despotismo ilustrado, do parlamentarismo; na desigualdade do desenvolvimento de distintas instituições sociais, de distintos aspectos da cultura”. O pensamento marxista definiu essa característica do processo histórico como uma lei do mesmo: “O seu primeiro aspecto se refere às distintas proporções no crescimento da vida social. O segundo, à correlação concreta desses fatores desigualmente desenvolvidos no processo histórico” (George Novack. A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado da Sociedade. São Paulo, Rabisco, 1988). Só para dar um exemplo: um milênio e meio separou o início da Idade do Bronze nas populações humanas da avançada Mesopotâmia e da atrasada Escandinávia.[lvii] Isaak Dashkovskij. International exchange and the law of value. Под знаменем марксизма (Under the Banner of Marxism) nº 1, Moscou, 1927 (https://libcom.org)[lviii] Neil Smith. O Desenvolvimento Desigual. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988: “O desenvolvimento capitalista é uma transformação continua do espaço natural – espaço absoluto herdado – no espaço relativo produzido”.[lix] Leon Trotsky. Histoire de la Révolution Russe. Paris, Seuil, 1950 [1930].[lx] Michael Löwy. A teoria do desenvolvimento desigual e combinado. Outubro nº 1, São Paulo, 1998.[lxi] André Gunder Frank. Acumulação Mundial 1492-1789. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.[lxii] Peter Kriedte. Feudalismo Tardío y Capital Mercantil. Líneas maestras de la historia económica europea desde el siglo XVI hasta finales del XVIII. Barcelona, Critica, 1982.[lxiii] Osvaldo Coggiola. No século XVII: a crise das tulipas. História Viva nº 62, São Paulo, Duetto, novembro 2008.[lxiv] Fernand Braudel. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II, cit.[MI1] O munda o capitalismo anonimo, enquanto no século precedente tinha sido puramente patrimonial”.
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