segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O colonialismo como exceção e como espetáculo

Livros soterrados por um prédio desabado na Faixa de Gaza (AgenciaAndes/Wikimedia Commons)

O colonialismo se materializa como um permanente estado de exceção, promovendo o apagamento irrestrito da distinção entre o combatente e o não combatente. O direito colonial só funciona na medida em que suspende o direito da população colonizada

Felipe Paiva

O céu enrubesce em chamas: várias estrelas da morte cruzam o firmamento para anunciar a destruição, a mais completa aniquilação. Olhos apreensivos miram os escombros das janelas dos poucos abrigos que restaram, ouvidos aterrorizados percebem que as explosões estão mais próximas do que jamais estiveram. Com ímpeto assassino, as detonações caminham, correm até a sua porta. Lá fora é o mar de sangue e carne mutilada no qual Gaza se transformou. Corpos humanos vertidos em cadáveres sem história, bálsamo mórbido para untar mais uma conquista colonial. A Palestina já foi um lar para os palestinos (fossem eles muçulmanos, cristãos ou judeus), hoje ela é um campo de concentração e de extermínio.

É algo corrente no senso comum relacionar de maneira automática o campo de concentração com a Segunda Guerra Mundial, vendo no judeu a única vítima dessa tecnologia da morte. A verdade, no entanto, é diversa. As origens históricas do campo de concentração podem ser traçadas até as guerras coloniais levadas adiante pela Europa no século XIX. Era uma ferramenta para lidar com populações insurgentes, fossem rebeldes armados ou paisanos que teimavam em existir. A estratégia é simples e efetiva, cercar para minar a resistência, acabando, assim, com qualquer tipo de distinção entre civis e combatentes. A historiografia costuma eleger os campos de concentração erigidos pela Espanha em Cuba, a partir de 1896, como os primeiros exemplares dessa nova política.

Essa nova engrenagem rapidamente caiu no gosto das demais potências coloniais. Os Estados Unidos aplicaram-na recorrentemente nas Filipinas de 1899 até 1913, especialmente nas ilhas de Mindanao e Marinduque a partir de 1900. A Inglaterra, por sua vez, a utilizou na África do Sul, durante a chamada Guerra Anglo-Bôer, entre 1899 e 1902. Sabe-se hoje que a esmagadora maioria dos mortos nos campos sul-africanos foi de não combatentes, sobretudo crianças. Entre dezembro de 1901 e janeiro de 1902 a proporção de mortos na população africana teria chegado a cerca de 400 para cada grupo de mil pessoas. Pouco depois, entre 1904 e 1908, os alemães copiaram os ingleses, construindo seus próprios Kozentrationslager. Depois de chacinar cerca de 80% da população herera e 50% da população nama, grupos étnicos importantes da Namíbia, as forças coloniais do Kaiser resolveram aprisionar os sobreviventes. Em um desses campos, chamado Swakopmund, a mortandade chegou a 40% entre fevereiro e maio de 1905.

ESTADO DE EXCEÇÃO

Em situações limite de conquista e expansão imperial, o colonialismo se materializa para os povos colonizados como um permanente estado de exceção, promovendo o apagamento irrestrito da distinção do combatente e do não combatente. O direito colonial só funciona na medida em que suspende o direito da população colonizada. A raça torna-se política, o simples pertencimento a um grupo étnico torna o colonizado culpado. Neste sentido, não há dúvida, Israel é um estado colonial. Na medida em que desapropria a terra dos outros, retirando da população local qualquer garantia civil, Israel se comporta como qualquer outro estado imperialista do século XIX e XX.

Mas o acadêmico deve conter sua vaidade, nenhuma morte, nenhuma chacina ou concentração é realizada hoje para apurar um conceito histórico, seja ele o do colonialismo ou o do campo de concentração. Genocidas como Netanyahu não leem nossos trabalhos, fiquemos tranquilos em relação a isto. A permanência do campo é a permanência de um projeto inacabado, de uma realidade que custa a passar e da qual somos prisioneiros. Os documentos das Nações Unidas vedam domínios coloniais, a realidade concreta, no entanto, não só os permite como os sustentam.

Os extermínios coloniais de finais do século XIX e princípios do XX foram transmitidos em livros, panfletos e jornais. A Guerra do Golfo tinha seus plantões televisivos, interrupções momentâneas em nossa vida normal para dizer que outra bomba tinha explodido em um lugar recôndito do mundo. A invasão do Afeganistão contava somente com correspondentes cujas imagens eram pixeladas o suficiente para que a espetacularização perdesse em realismo. Hoje, contudo, o espetáculo é instantâneo, e a alta resolução das câmeras mostra algo muito pior que um Marlon Brando carrancudo, enlouquecido pelo apocalipse colonial.

O que transcorre em Gaza hoje é um espetáculo. Palestinos resistem e tombam e suas imagens circulam instantaneamente, rasgando a rede e invadindo nossas telas. Ao ver estas cenas alguns se regozijam; outros, tentando manter viva sua humanidade, choram, se contorcem de dor. Entretanto, cada quadro de uma mãe com seu filho inerte no colo, cada vídeo de corpos humanos carbonizados, cada cena humilhante dessas carrega uma história, uma narrativa de resistência. E esta também é uma grande tragédia, já é impossível nomear cada um dos nomes. Nos afogamos em um mar de imagens sem história. Um oceano de anônimos cujos rostos se misturam, despersonalizados na figura da vítima imolada. A encruzilhada é perversa: cada compartilhamento para denunciar o que transcorre em Gaza pode verter-se, também, em uma sutil normalização da exceção. Na ânsia de criticar corre-se o risco de ser apenas o expectador de um teatro macabro.

Sem suportar as cenas, desvio meu olhar da tela para observar o retrovisor da história, e me pergunto se, ao fim disso tudo, a Palestina ficará sozinha com seus escombros e com a própria sorte, como ficaram os demais estados ocupados pelo colonialismo europeu. São indagações, exercícios de minha própria debilidade, pois, independentemente disso, estrelas continuam a brilhar no céu de Gaza, anunciando outro amanhecer exangue.


Felipe Paiva é professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Coordenador do Caliban – Laboratório de experiências coloniais comparadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12