terça-feira, 19 de dezembro de 2023

COMENTÁRIOS SOBRE O MANIFESTO “POR UMA ESQUERDA CONSISTENTEMENTE INTERNACIONALISTA E DEMOCRÁTICA” -Antissemitismo e islamofobia como ideologias da guerra e da crise global

Protesto do movimento Standing Together (‘Juntos de Pé’) contra violência do governo de Israel após protestos em Gaza, em 2018 (Divulgação)

A normalização da narrativa racista anti-palestina e islamofóbica de um lado assim como a normalização de uma narrativa antissemita contra israelenses e judeus de outro não são questões secundárias no que diz respeito ao conflito

Daniel Feldmann

Escrito por Ben Gidley, Daniel Mang, Daniel Randall e assinado por ativistas, coletivos e intelectuais de diferentes países, entre eles talvez o mais conhecido Slavoj Žižek, o Manifesto que ora apresentamos neste artigo intitulado “Por uma esquerda consistentemente internacionalista e democrática” propõe um enfoque original e a nosso ver bastante oportuno para a reflexão não apenas sobre os acontecimentos recentes em Israel/Palestina, mas também para uma reflexão mais de fundo sobre certos posicionamentos do campo da esquerda em meio ao caos global em que estamos atolados. Como uma primeira aproximação, retenhamos uma das suas afirmações: “A esquerda pode e deve se opor incondicionalmente ao preconceito anti-palestino e anti-muçulmano sem endossar o Hamas; ela pode e deve se opor incondicionalmente ao antissemitismo sem endossar o chauvinismo israelense”.

Parte-se assim da premissa que as narrativas, as ideologias e as visões de mundo não são algo menor em relação às questões concretas e mais prementes que implicam diretamente a vida das pessoas, em especial no que tange à questão Israel/Palestina. Por certo que, dada a destruição de Gaza, a terrível crise humanitária e o assassinato de tantos milhares de civis causados pelos bombardeios e invasão de Israel, a questão mais imediata e urgente que se coloca é a do cessar-fogo imediato e uma negociação para a liberação dos reféns israelenses em troca dos prisioneiros palestinos. No entanto, justamente o problema que o Manifesto nos propõe é o seguinte: a normalização da narrativa racista anti-palestina e islamofóbica de um lado assim como a normalização de uma narrativa antissemita contra israelenses e judeus de outro não são questões secundárias no que diz respeito ao conflito. O combate a tais narrativas não se limita a uma questão de bons modos ou de mera correção política, mas sim uma é postura que, ao ser negligenciada, contribui para um enredo pernicioso muito real que ajuda, nos fatos, a prolongar a tragédia.

Isso nos leva ao que cremos ser a originalidade do manifesto: abordar o problema da islamofobia e do antissemitismo como fenômenos que têm sim as suas singularidades, mas que ao mesmo tempo são correlatos e logo só podem ser encarados de forma satisfatória se forem combatidos em conjunto: “A crescente polarização e divisão tem contribuído para a desumanização não apenas de israelenses e palestinos, mas de judeus, muçulmanos e árabes em todo lugar, e para o aprofundamento de uma cultura de vitimização competitiva de soma zero, em vez de solidariedade”. E aqui chegamos naquilo que os autores preconizam como uma atitude consistente no título de seu manifesto: jogar a denúncia de um tipo de ódio social contra o outro é trair a luta contra ambos, pois, sobretudo na conjuntura que se abriu após o 7 de outubro, eles estão intimamente imbricados e se reforçam mutuamente. A intenção dos que querem matar palestinos (ou árabes e muçulmanos de forma mais ampla) assim como a intenção dos que querem obliterar a nação palestina alimentam e corroboram as intenções dos que querem matar judeus e obliterar a nação israelense. E vice-versa. No entanto, para que tais intenções – que cresceram sobremaneira no mundo nesses dois meses – se transformem em ato, é preciso antes que elas estejam embebidas na demonização e na estigmatização do Outro, no caso, embebidas nas narrativas islamofóbica e antissemita. Tais narrativas, assim, deixam o plano abstrato das ideias e se encarnam na vida concreta, envenenando-a.

Calibrando aqui o argumento. Se é inegável que a antissemitismo e o racismo anti-palestino (e a islamofobia) crescem perigosamente no mundo como um todo e se alçam cada vez mais como formas degradadas de digestão ideológica da crise da sociabilidade capitalista do Ocidente ao Oriente (voltaremos a este ponto), é preciso dizer, por outro lado, que na história e no presente do conflito, o peso da violência tem recaído com intensidade muito maior do lado palestino do que no lado judeu. O conflito Israel/Palestina é, num sentido, eminentemente assimétrico e desigual, afinal Israel exerce uma ocupação militar e desse ponto de vista é o opressor inequívoco sobre palestinos, perpetuando sua despossessão e negação de direitos nacionais. Contudo, ao mesmo tempo, de outro lado, trata-se de um conflito simétrico no sentido de que há duas nacionalidades com aspirações igualmente legítimas que se defrontam na região. A ligação da maioria dos judeus do mundo para com Israel se deriva do fato deste ter se tornado a válvula de escape derradeira para muitos refugiados tanto do antissemitismo europeu como do antissemitismo do mundo muçulmano pós-1948. Encarar de frente essa relação contraditória entre aquilo que é assimétrico e o que é simétrico, a saber, entre o que é uma opressão nacional a um povo que demanda o fim da ocupação militar e uma questão nacional que demanda o entendimento real entre dois povos, não é uma mera formulação teórica, mas sim uma pré-condição sine qua non para uma saída positiva. Do contrário, são as narrativas fundamentalistas e reacionárias de politização do ódio nacional de ambos os lados que vão se impor ainda mais, tornando o impasse definitivamente insolúvel.

SOBRE “RESISTÊNCIA”, “CAMPISMO” E UMA FALSA CRÍTICA DO CAPITALISMO

Por ser um Manifesto escrito “da esquerda para a esquerda”, ele critica parcelas deste campo político cuja postura alimenta, nos fatos, o impasse supracitado. Isso passa pela relativização ou mesmo pela glorificação do papel do Hamas e de forma mais ampla do “Eixo da Resistência” liderado pelo Irã. O conceito de “resistência” é degradado de forma a abarcar estupros, massacre e sequestros de judeus, como também para sustentar concepções políticas que não são “explicáveis apenas em termos do confronto entre palestinos e sionismo/Israel, mas fazem parte de uma visão de mundo antissemita mais ampla”. Ou seja, os meios e fins do Hamas vão no sentido de falar em nome da causa palestina para promover uma guerra contra os judeus enquanto tais, na mesma medida em que Netanyahu usou isso como pretexto, certamente com muito mais capacidade bélica de destruição, para sua atual guerra de punição coletiva e massacre contra os palestinos. Assim, na mesma medida em que o Manifesto defende o direito à resistência dos palestinos e condena as tentativas reais de calar ou mesmo criminalizar no Ocidente as manifestações de solidariedade à sua causa, ele afirma que “oposição ao Hamas não é uma questão de ‘dizer aos palestinos como resistir’, mas de apoiar aqueles palestinos que também se opõem ao Hamas e defendem uma resistência real, tendo uma base política diferente…

E tal compactuação ou pelo menos tolerância para com o programa do “Eixo da Resistência” (esse sim com poderes efetivos para efetivar em ampla escala sua guerra contra os judeus) tem implicações mais amplas. Pois ela converge com uma visão de mundo que é esposada por alguns setores que reivindicam o anti-imperialismo e o pensamento decolonial e que dividem o mundo entre Ocidente e Oriente (ou Norte × Sul Global) como campos respectivamente “ruim” e “bom”. Tal “‘campismo’ – apoiar um ‘campo’ geopolítico em vez de seguir um projeto verdadeiramente internacionalista – tem uma alta probabilidade de se transformar em apologia para aquelas alternativas reacionárias”. E não em último motivo por que tal “campismo” esquece ou minimiza o fato de que o mundo é governado de forma semiautomática por uma coisa chamada capital cujos imperativos são cada vez mais catastróficos por todo o mapa-múndi. E como o mal ocidental é também o mal oriental, tal posição só pode ser sustentada na base de argumentos tortos que buscam defender com sinal invertido os mesmos pecados que com razão se critica os Estados Unidos, o Ocidente e Israel. Assim como os bombardeios à Gaza são justificados em nome do “combate ao terrorismo”, para muitos “campistas” os bombardeios da Ucrânia pela Rússia tornam-se justificáveis ou “compreensíveis” em nome de um combate ao “nazismo ucraniano”. Para não falarmos, entre outros exemplos trazidos pelo Manifesto, do apoio aberto ou tácito de “campistas” a Assad na Síria, que com suporte direto de Putin e do “Eixo da Resistência”, assassinou centenas de milhares de civis, também com o argumento de “combate ao terrorismo”. Daí a pertinência da pergunta “Por que a solidariedade das pessoas de esquerda com as vítimas da opressão às vezes parece condicional à aliança geopolítica do Estado que as oprime?”. Tal positivação seletiva de certas razões de Estado destrutivas em detrimento de outras igualmente destrutivas no fundo é o abandono completo da agência de pessoas e movimentos que no Sul Global combatem a opressão em seus próprios países. Assim, a suposta crítica ao Orientalismo de camadas da esquerda ocidental se interverte em puro Orientalismo. E a crítica ao capitalismo se interverte na sua defesa a partir de certas regiões do globo.

ANTISSEMITISMO E ISLAMOFOBIA COMO IDEOLOGIAS DA CRISE GLOBAL

A falsa crítica ao capitalismo acima remete, por fim, a outra questão do Manifesto: “Por que grande parte da esquerda tem dificuldade em identificar e resistir ao antissemitismo em suas fileiras?” Antes de retomar a pergunta, cabe aqui apontar a singularidade de cada uma das formas de ódio social. A islamofobia, se seguirmos a pista de Edward Said, fetichiza o palestino (ou o árabe e muçulmano) como alguém atrasado, violento por natureza, exótico, fanático, impermeável a argumentos racionais, irascível e intolerante. Sua atualidade como ideologia da crise contemporânea reside na estigmatização do imigrante, do refugiado ou de bárbaros inferiores que não se adequam à “civilização” moderna e para quem não há mais lugar. Já no caso do antissemitismo, a fetichização do judeu passa por outras características: conspirador, ardiloso, dotado de superpoderes ocultos e misteriosos, cosmopolita sem raízes, artificial e fantasmagórico. Isso permite, como afirma o Manifesto citando Moishe Postone, que “o antissemitismo muitas vezes atue como uma forma fetichizada de ‘anticapitalismo’. O poder misterioso do capital, que é intangível, global e que agita nações, áreas e vidas das pessoas, é atribuído aos judeus. A dominação abstrata do capitalismo é personificada nos judeus”. Ora, na crise global da sociedade da mercadoria e do valor (o abstrato e intangível por excelência), o antissemitismo se recrudesce e os judeus como tais são identificados como culpados: não como inferiores, ou incivilizados, mas como os usurpadores maléficos da civilização.

E é neste caos da civilização, em que campeia a desorientação e uma dificuldade real de se formular alternativas efetivas diante da sociabilidade vigente, que cresce também a tendência de uma certa esquerda de buscar atalhos supostamente “antissistêmicos”, flertando em menor ou maior grau com a demagogia antissemita se pautando “não tanto na luta contra o capitalismo enquanto relação social, mas na rejeição da ‘hegemonia americana’, ‘globalização’, ‘finanças’ – ou às vezes, ‘sionismo’, visto como vanguarda de todas essas forças. Isso levou muitas pessoas que se consideram esquerdistas a simpatizar com alternativas reacionárias às atuais disposições políticas e econômicas”. E aqui reside o perigo de se cruzar o Rubicão. Num tweet recente respondido por Elon Musk, um influenciador americano de extrema-direita afirmou que os “judeus estimulam o ódio dialético contra os brancos” por apoiarem a imigração para o Ocidente de “hordas de minorias”. Ou seja, contra o Ocidente branco, o judeu conspirador e indesejável seria o responsável por estimular a imigração de minorias, aí certamente inclusos árabes e muçulmanos indesejáveis. Eis aqui mais um exemplo do porquê a luta conjunta contra o antissemitismo e a islamofobia é tão desejável.

Manifesto disponível no link https://leftrenewal.net/portuguese-version/


Daniel Feldmann é professor da Universidade Federal de São Paulo e membro do Coletivo Judias e Judeus pela Democracia – SP.

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