sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

GOVERNO MILEI - Do transe à vertigem, a vez da Argentina

Javier Milei em campanha para a presidência argentina na cidade de Moreno (Reprodução/Instagram/@javiermilei)

Nossos tempos comportam vertiginosos contrastes: impulsos utópicos de projetos políticos redentores, a violência inerente a eles e a voracidade do mercado neoliberal com sua lógica implacável de desagregação social

Rafael Pepe Romano

“Pode o subjugado falar? Pode o oprimido falar? Pode o desiludido falar?” Lembrei-me dos questionamentos feitos pelo crítico literário Julián Fuks no prólogo de Jamais o fogo nunca, romance da chilena Diamela Eltit, na noite daquele domingo 19 de novembro, quando o candidato ultraliberal da coalizão La Libertad Avanza, Javier Milei, foi declarado presidente eleito da Argentina, junto com a sua parceira de chapa, Victoria Villarruel.

A nova vice-presidente, o que a faz também presidente do Senado, agita a guerra cultural da extrema-direita argentina, como defensora da ditadura militar (1976-1983). A inclusão de Villarruel na chapa presidencial fez com que a base eleitoral de jovens que seguiam Milei por meio das redes sociais crescesse e ganhasse a adesão de setores da direita reacionária.

Surpreendendo a todos, os resultados inverteram o veredito do primeiro turno. O derrotado peronista Sérgio Massa, do grupo Unión por la Patria, ex-ministro da Economia de um país quebrado, ficou a uma distância de quase 3 milhões de votos, algo como doze pontos percentuais atrás de Milei. O candidato da motosserra “contra tudo e contra todos” irrompeu em um país em crise: socialmente fragilizado, profundamente dividido e sem perspectivas. Jovens, trabalhadores precarizados e aposentados, “gente que o sistema está deixando de fora”, formaram a maioria dos eleitores que selaram a sua vitória.

Depois da eleição para presidente mais incerta da história recente da Argentina, em 10 de dezembro de 2023, dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o novo presidente assumiu o mandato oficialmente. A data da posse foi escolhida há quarenta anos, quando chegou ao fim a ditadura militar e o povo argentino elegeu livremente seu primeiro presidente civil após experimentar um dos regimes de exceção mais sangrentos do período.

A posse de Milei e Villarruel nessa data expressa um triste sinal. O sinal de que os jovens – não por acaso a base do eleitorado de Milei – estão se desconectando da traumática experiência do período militar. É o que se conclui quando a dupla eleita recebe apoio para a tentativa de promover o revisionismo histórico de um regime responsável, julgado e condenado pelo assassinato e desaparecimento de 30 mil pessoas, incluindo recém-nascidos.

QUARENTA ANOS NA BALANÇA, UMA REGIÃO FRATURADA

Em 10 de dezembro de 1983, Raúl Alfonsín, eleito pela União Cívica Radical, tomou posse como o primeiro presidente civil eleito pelo voto popular depois de sete anos de governos militares. Muito mais do que uma investidura presidencial, o momento significou a inauguração de um novo pacto político e social. Alfonsín teve consigo o desafio de unir o país levantando a bandeira dos direitos humanos, comprometendo-se a esclarecer a barbárie promovida pelo Estado durante os anos da ditadura, além de abrir os caminhos para que os militares respondessem no banco dos réus e perante o povo pelos crimes contra a humanidade cometidos naquele período.

Desde a volta à democracia foram condenados 1.146 militares. Os processos seguem até hoje: tramitam nos tribunais 643 deles, envolvendo 3.640 suspeitos de integrar o corpo da repressão militar. A partir de então, a Argentina selou o seu compromisso com a democracia, tornando-se referência em matéria de defesa dos direitos humanos nas arenas internacionais de debate e de deliberações pactuadas.

Os generais argentinos, desmoralizados com a Guerra das Malvinas, não puderam tutelar a transição, ao contrário do Brasil. Seguindo sua mais longeva tradição, nossas elites civis e militares promoveram uma conciliação por cima para evitar processos de transição política mais traumáticos, do tipo capaz de colocar o povo nas ruas. A emergência do bolsonarismo, definido por Rodrigo Nunes como convergência real de diferentes tendências na sociedade brasileira, com forte apelo aos meios militares, demonstra que o significado da ditadura permanece mal compreendido por grande parcela dos brasileiros. Aqui, perdemos a chance de educar política e civicamente a sociedade brasileira para o significado de viver na democracia.

Há cinco anos, o Brasil abriu a porta a um fenômeno cujo epicentro global se fez nos Estados Unidos e ameaçava se alastrar em vários países da Europa. Com Jair Bolsonaro, a extrema-direita colocava os pés na América Latina. Apesar da experiência ter durado quatro anos, assim como a de Donald Trump, é certo que ambas não estabilizaram uma nova ordem. Seu êxito foi convulsionar a existente. A guinada da agenda pública à extrema-direita e a penetração dos discursos de tal caráter nas massas, congregada às capacidades de concluir mandatos em países complexos e importantes, consolidou a percepção de que as direitas radicais estão aí e vieram para ficar.

Na Argentina, “se rompió la grieta”, ou “abriu-se a fenda”. A expressão se tornou comumente utilizada para falar sobre a atual situação social do país. O país deve os tubos para o FMI; em 2023, a inflação está na casa dos 140% ao ano; mais de 40% da população vive na linha da pobreza, enquanto pioram os indicadores de serviços públicos essenciais como saúde e educação. A sucessão de governos durante o período democrático, peronistas em sua maioria, tão controversos e diferentes entre si, falharam em enfrentar as sucessivas crises que atravessaram o país, ganhando contornos mais graves com o passar dos anos. O resultado é a constatação de que a Argentina está mais desigual e mais pobre.

No dia do triunfo de Milei, fui para a “fenda”, onde muitos portavam a frase da campanha: “É a única solução”. Era uma festa bastante masculina, em sua maioria composta por homens jovens e de meia idade empenhados em encarnar virilidade. Com rock pesado tocando ao fundo, soltavam rojões, faziam performances pendurados em postes e dançavam sobre bancas de jornal. Exibiam-se para cinegrafistas da imprensa que cobria a comemoração. Mostravam os muques e batiam no peito quando vinha o grito grosso: “viva la libertad, carajo!”.

A motosserra símbolo da campanha também se fazia presente, aos montes. Caixões feitos de papelão anunciavam o enterro da “casta” (política). Insultos misóginos contra a ex-presidente Cristina Kirchner prenunciavam a hipótese (talvez remota) da sua prisão com a chegada do novo governo. Diferentemente do que se viu no Brasil, nenhuma organização coletiva pediu “intervenção militar, já” ou “Forças Armadas, salvem a nação”.

Disseram-me que aquela festa era incomparavelmente maior do que a feita após a vitória da Argentina na Copa do Mundo de 2022, o que não é verdade. Naquele ambiente catártico e delirante, evidenciou-se o surgimento de um fenômeno disruptivo semelhante ao visto no Brasil de 2013 quando, no caldo de manifestações e insatisfação geral, uma direita mais radical e organizada começou a ganhar espaço.

UM BASTA A “TUDO O QUE ESTÁ AÍ”

Milei ascendeu construindo um discurso de indignação e ódio. A fenda aberta pela crise permitiu a ele capturar e traduzir os desejos e angústias populares: o anseio por uma ruptura profunda, capaz de resgatar a prosperidade de um passado distante. O apelo à polarização é uma característica dos atuais movimentos da direita com credenciais antidemocráticas: a responsabilização das “elites políticas” pelo sofrimento da “maioria”. Agora, na Argentina, a “casta” sintetiza “os políticos que nos roubam”, responsáveis pelo caos econômico e por “dar” direitos às minorias.

Ressentimento coletivo. Foi o que me veio à cabeça quando vi pessoas usando chapéus de bobo da corte, junto a um homem vestido e maquiado como o protagonista de Coringa, o filme de 2019.

No filme, o ator Joaquin Phoenix interpreta um comediante fracassado, Arthur Fleck. Oprimido e renegado pela sociedade, dentro do seu delírio, ele inicia um caminho de ascensão a partir das suas emoções reprimidas: após assassinar três homens em pleno metrô, o revólver a ele apresentado vira um gatilho. Na sua fantasia, a ação arrebenta em um movimento em seu apoio, desdobrando-se numa comoção popular violenta contra a elite da fictícia Gotham City, cuja ausência absoluta de regras somatiza a ruptura social em curso.

Os eleitores de Milei, vestidos como o protagonista do filme, sinalizam o mesmo desejo de romper com a estrutura, a “casta”: o peronismo com o seu tipo de trabalhismo sindical que inclui uns e exclui outros; o kirchnerismo; a “burocracia corrupta”; “os políticos que nos roubam”…

Na posse, em frente ao Congresso Nacional e já com os atributos que o designam chefe de Estado, Milei discursou para uma multidão. Mais uma vez, destoou dos discursos políticos convencionais. Firme e ao tom de sangue, suor e lágrimas, descreveu um país em profunda dificuldade. Disse não haver dinheiro e nem alternativa a um ajuste duríssimo. Falou em medidas dolorosas e em choque necessário. Falou de suas convicções inabaláveis e da inauguração de um programa radicalmente liberal.

O discurso de Milei tem elementos importantes a serem pensados e Rodrigo Nunes em Do transe à vertigem: Ensaios sobre o bolsonarismo e um mundo em transição pode nos ajudar nesse processo. O programa do agora presidente, ao penetrar nas camadas populares, diz respeito às ideias que efetivamente fazem sentido para as pessoas; isto é, capazes de oferecer a perspectiva plausível de uma vida melhor, bem como o desejo de alcançá-la. Por outro lado, aquilo que a realidade exige hoje não pode deixar de exigir o “choque” se comparado aos arranjos políticos e econômicos que temos.

A tensão entre modelos de organização social baseados no mercado e no Estado tem sido constante na história recente. Assim, como coloca Nunes, é a isso que “radicalização” se refere, e é nesse sentido que uma “radicalização programática” aparece como o meio capaz de explorar o conflito entre a crise de legitimidade do neoliberalismo e a adesão afetiva a ele.

“SE RESOLVE COM TIRANIA”

A vice, Villarruel, era uma figura política pouco conhecida até pouco tempo, mas não para as organizações de direitos humanos e as casernas. Foi ela a responsável por conectar Milei à extrema-direita internacional. Conhecida por sua agenda ultraconservadora, Villarruel reivindica para si a defesa do legado militar e já anunciou a intenção de reverter políticas de memória e reparação. Filha de um tenente-coronel influente, é também sobrinha de Ernesto Guillermo Villarruel, ex-chefe da II Divisão de Inteligência do Regimento de Infantaria do Exército. Ele foi condenado na Justiça por ter feito parte dos crimes contra a humanidade durante a ditadura.

Na Argentina, as Forças Armadas protagonizaram seis golpes de Estado entre 1930 e 1976. Com uma agenda irmã àquela de Jair Bolsonaro no Brasil, Donald Trump nos Estados Unidos e o partido Vox na Espanha, a união entre o presidente e a vice passou pelo acordo de que ela nomearia os ministros da Segurança e da Defesa. Diversas vezes, ao longo da campanha, Victoria acenou para o aumento do orçamento e privilégios militares.

Com discursos, atos e bandeiras próprias, surgem indícios de um projeto distinto daquele vencedor nas urnas com Milei. A vice, com sua biografia e histórico político, parece ter a intenção de reativar a relevância das Forças Armadas no tabuleiro institucional, indicando uma equipe armada para postos federais estratégicos ocupados por civis desde a democratização. O governo do La Libertad Avanza apresenta debilidades políticas fundamentais. Sem maioria nas duas casas do Congresso Nacional e sem governadores próprios nas províncias, poderia apelar aos militares, às polícias e aos setores mais conservadores da sociedade na tentativa de angariar apoio. Algo semelhante às manobras bolsonaristas no Brasil. Contudo, presidente e vice, se atritaram na formação do novo ministério.

Milei aponta para uma agenda diferente, porém preocupante. Ele escolheu Rodolfo Barra, militante ativo do Movimento Nacionalista Tacuara, para ocupar o posto de procurador-geral do Tesouro. O Tacuara é um grupo abertamente nazista que atuou na Argentina entre o final dos anos 1950 e início dos 1960, época em que Barra participou de um ataque a uma sinagoga, em 1965.

O novo procurador-geral do Tesouro foi ministro da Justiça durante o governo do peronista neoliberal Carlos Menem (1994-1996). Caiu depois de sua história pregressa vir à tona. Agora, com passado já conhecido, assumirá a chefia de um órgão semelhante à Advocacia Geral da União no Brasil. Sua função será assessorar o Estado nas questões do orçamento público e de controle de legalidade jurídica das ações do Poder Executivo.

As correlações de força podem ter mudado. A coalizão macrista Juntos por el Cambio apresentou Patricia Bullrich como candidata. Na votação inicial, Bullrich ficou em terceiro lugar, apontando para um fenômeno internacional: o fracasso das direitas clássicas e a sua adesão a projetos extremistas. No segundo turno, ela abraçou Milei contra o peronista Massa. O novo presidente também privilegiou indicações à direita mainstream, do real fiador da sua campanha, o ex-presidente Mauricio Macri.

Porém, a briga de Villarruel também está no discurso. Pouco antes do segundo turno, a nova vice-presidente disse em um programa de TV: “Massa quer assumir um país devastado. E como pensa em resolvê-lo se não com uma tirania?”. Aos exatos quarenta anos de convivência democrática, a Argentina terá o desafio de defender e preservar os seus acordos mínimos, sustentadores do pacto civilizatório.

Nossos tempos comportam vertiginosos contrastes: impulsos utópicos de projetos políticos redentores, a violência inerente a eles e a voracidade do mercado neoliberal com sua lógica implacável de desagregação social. As demandas sociais apontam fazer realmente o que, muitas vezes, os progressismos propõem como mandamentos abstratos: o sentido prático do debate sobre o papel do Estado como agente facilitador da vida das pessoas. Trata-se de uma mudança necessariamente qualitativa, dentro da política como disputa para definir os limites do possível.

Na pergunta de Julián Fuks sobre se é possível o subjugado, o oprimido e o desiludido falarem, outro é o continente, outro é o tempo, outro é o trauma histórico. Não desponta nenhuma resposta concreta para essas perguntas fundamentais. A conclusão de agora é a de que Milei e Villarruel foram eleitos não por um voto de oposição, mas por aquele dado pela “gente que o sistema está deixando de fora” e contra “tudo o que está aí”, o âmago da tragédia latino-americana.



Rafael Pepe Romano é bacharel em Direito e graduando em Ciências Sociais pela FFLCH-USP.

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