segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Albert Camus e o absurdo da vida

Albert Camus fotografado em 1957. (Foto: Wikimedia Commons)

Podemos atestar com segurança: Camus nos ensinou que somos “estrangeiros” nessa jornada que se chama vida

Railson Barboza

Uma vida entrelaçada com suas obras. Para conhecer Albert Camus é interessante atentar-se ao fato de que sua vida é um romance que pode ser lido em todas as suas obras, verdadeiras peças de um mosaico singular. Um francês nascido na Argélia que fez questão de explicitar, em seus personagens, sua raiz, reflexo de quem percebeu sua cidadania europeia como um privilégio.

Durante grande parte de sua vida, Camus se viu como um estranho para todos. Tanto na Argélia (então colônia francesa) quanto na França, era visto como um estrangeiro. Sobretudo, Camus era também um estrangeiro pela sua condição social: vinha de uma família pobre de ascendência dos primeiros colonos franceses na Argélia, chegados em meados do século XIX.

Culturalmente francês, mas orgulhosamente argelino, desejava que o país fosse liberto da opressão colonial francesa, sem deixar, porém que a colônia se desligasse totalmente, o que gerou repulsa dos dois campos de disputa: tanto da esquerda francesa quanto dos separatistas argelinos. Opôs-se à Guerra da Argélia, mas nunca tolerou a ideologia da FLN (Front de Libération Nationale) argelina, que enxergava a França como inimiga, dirigindo sua raiva e revolta contra os franceses de maneira geral, em especial aqueles fisicamente presentes na Argélia. Importante lembrar a atuação de Camus como importante colaborador no movimento conhecido como La Résistance française – uma junção de diversos movimentos cujo intuito era libertar a França da ocupação alemã e do movimento colaboracionista francês fixado em Vichy, durante a Segunda Guerra Mundial.

Um fato curioso e polêmico marcou a participação de Albert Camus em um encontro com jovens estudantes na Suécia, em 1957, onde estava para receber seu prêmio Nobel. Durante o evento, ele foi surpreendido pelo ataque verbal de um jovem argelino, em resposta à sua declaração veiculada pela imprensa francesa no qual dizia que “entre sua mãe e a justiça, ele escolheria a mãe”. O que o autor francês quis dizer com a declaração? Acostumado com a rejeição da maioria, Camus explicou que era injusto que sua mãe, por ser francesa, mas sempre modesta e trabalhadora, vivesse de modo sofrido e desumano, “cuspindo sangue e suor”, sem o mínimo amparo social do Estado. Dessa maneira, estaria sempre ele a favor da mãe e contra a dita justiça.

Esse sinal de contradição, não somente restrito ao âmbito político, inclusive, é a marca principal da vida de Albert Camus: amou tanto a vida que sua filosofia teve como preocupação última o debate sobre a morte.

Em 1942 publica O estrangeiro, fixando nas páginas a difícil tarefa de descrever o afastamento do homem moderno com a sociedade e todo o universo que o circunda. Quando você lê a obra e se depara com seu protagonista, que mata um árabe por puro acaso, e tudo transcorre de maneira natural pelo simples destino, você percebe que Camus conseguiu um feito singular: descrever a existência como algo que simplesmente acontece. E ele fez isso não como um homem preso em seus demônios, separado de seu mundo, mas como um homem que vive sua vida ao máximo, e ainda assim entende que a vida basicamente acontece; sem razão, sem culpa, ela simplesmente acontece. Podemos atestar com segurança: Camus nos ensinou que somos “estrangeiros” nessa jornada que se chama vida. Importante salientar que o jornal francês Le Monde listou os “100 melhores livros do século XX”, pondo O Estrangeiro em primeiro lugar.

Em O Mito de Sísifo, o jovem Camus, que não tinha nem 30 anos, recorda a mitologia grega, chamando atenção para o personagem Sísifo, que foi punido pelos deuses a rolar uma pedra ao pico da montanha diariamente, por toda eternidade. Ao rolar a pedra ao cume da montanha, esta cai e Sísifo deve descer e retornar do início. A partir da análise do personagem, Camus traz uma profunda reflexão sobre o sentido da vida. Por conta disso, as primeiras palavras da obra são tão impactantes: “Só há um problema filosófico realmente sério: o do suicídio”.

A análise do suicídio é uma oportunidade para uma profunda reflexão sobre o sentido da vida, sobre o drama da condição humana, exposta às possibilidades implacáveis do “sentimento do absurdo”. A sensação do absurdo, de fato, pode afetar qualquer um, a qualquer momento, em qualquer lugar. Mesmo o dia a dia se manifestando tranquilamente não impede de nos tornarmos vítimas do absurdo, pelo contrário: é justamente na banalidade do cotidiano que o sentido do absurdo encontra terreno fértil para se enraizar e até explodir. Viver, então, significa ser capaz de não desviar o olhar do absurdo, mas ao mesmo tempo inverter o seu sentido, construindo, através da revolta, um sentido para existir. A revolta, de fato, opõe a razão humana à desumanidade do absurdo e permite preservar uma consciência “sempre renovada e sempre tensa”. O conselho de Camus é direto: viver com lucidez, sentir a própria existência, ter consciência da própria liberdade e da própria revolta, possuir “uma alma continuamente consciente”.

A sua ópera magna A Peste, publicada em 1947, alguns anos após o fim da Segunda Guerra, apresenta-se como uma reflexão alegórica sobre o mal e o trauma da guerra. Tal como uma peste, o mal nunca é completamente erradicado, mas permanece quieto esperando um ambiente favorável para eclodir novamente. Para além do fato patológico, a peste retratada na obra é uma doença moral que atinge todo o grupo social, alimentando-o com o ódio das paixões políticas, com a indiferença de um para com o outro e com a injustiça que paralisa o curso das instituições livres.

No final da obra, após o fim da peste e a sobrevivência de apenas uma figura-chave, surge a tese de que a única salvação do homem está na solidariedade: os saudáveis (isto é, os bons, os livres) têm a obrigação de testemunhar sua humanidade, lutando ao lado das vítimas da peste (os maus, os não livres). Também podemos a interpretar como uma crítica ao sistema capitalista, envolta num mecanismo que limita a solidariedade, manifestada de forma homeopática sem ir às causas primárias. Ou seja, os “saudáveis” (detentores de grande parcela do capital) não têm interesse algum em manifestar sua humanidade a favor das “vítimas da peste” (pobres e marginalizados). E se é verdade que “o bacilo da peste nunca morre”, essa é a única maneira de mostrar que “há mais coisas nos homens para admirar do que desprezar”.

Por fim, o renomado autor foi vítima de um acidente automobilístico em 4 de janeiro de 1960. Camus não pretendia seguir a viagem a Paris de carro, possuindo inclusive as passagens de trem. Porém, por insistência de seu editor, Michel Gallimard, todos prosseguiram. Camus, assim como o ponto central de sua filosofia, faleceu experimentando a impossibilidade de dissolver o absurdo, nada podendo ser feito para mudar. No fim, Camus morreu abraçando o absurdo da vida.


Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF).

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