sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Internet nas mãos de mastodontes

(Foto: ABr)

A exclusão digital é reflexo do sistema hegemônico mundial

Por Sergio Ferrari 

Mais celulares e mais conexões de Internet. No entanto, o sonho de um planeta conectado a serviço de todas/os parece irrealizável.

A exclusão digital separa regiões e faixas etárias em uma realidade global em que três em cada quatro pessoas com mais de dez anos possuem um telefone celular. No entanto, apenas 65% conseguem acessar a rede (https://news.un.org/es/story/2023/12/1526712). Em setembro passado, a União Internacional de Telecomunicações (UIT) informou que 2,6 bilhões de pessoas, cerca de um terço da população mundial, ainda não têm acesso à Internet, em 2023. De acordo com a swissinfo.ch, principal plataforma de informação da Suíça, esse valor representa uma ligeira redução face aos 2,7 bilhões do ano anterior. Em ambos os casos, trata-se, aproximadamente, da metade dos 5,4 bilhões já conectados – "O maior número de pessoas com acesso na história". No entanto, apesar dessa conquista, as tendências atuais não garantem a meta de conectividade "universal e significativa" até 2030 (https://www.swissinfo.ch/spa/brecha-digital_onu-advierte-que-un-tercio-de-la-poblaci%C3%B3n-mundial-permanece-sin-acceso-a-internet-en-2023/48806528). No final de novembro, a União Internacional de Telecomunicações (UIT), organização das Nações Unidas dedicada ao tema, comentou que "os dados mais recentes sobre conectividade global mostram crescimento, embora as lacunas persistam". A análise do tráfego de Internet e a cobertura de rede 5G, a rede mais rápida em uso doméstico, expõe diferenças gritantes entre países de alta e baixa renda (https://www.itu.int/es/mediacentre/Pages/PR-2023-11-27-facts-and-figures-measuring-digital-development.aspx). De acordo com a principal publicação da UIT, Hechos y Cifras (Fatos e Números), o "progresso constante, mas desigual, na área da conectividade global através da Internet" confirma a realidade de desigualdades significativas em âmbito global.

Em sua análise pioneira do uso de dados da Internet, a UIT comprovou que, em 2022, os serviços de banda larga fixa (que predominam em escritórios e residências) representaram mais de 80% do tráfego global, superando em muito as redes de banda larga móvel. Em países de baixa renda, devido aos altos preços e à falta de infraestrutura, a população conta apenas uma assinatura de banda larga fixa para cada 100 pessoas.

Os custos continuam a ser um grande obstáculo à conectividade e um dos principais motores desta clivagem digital global. Nas economias de baixa renda, o preço médio de uma assinatura básica de banda larga móvel é de 8,6% do salário médio, enquanto nos países de alta renda é de apenas 0,4%. Ou seja: cerca de 22 vezes mais caro.

Tráfego na Internet: revelando desigualdades

Por outro lado, de acordo com o relatório da UIT, nos países "pobres" o número de pessoas conectadas à rede não é apenas menor; eles também usam menos dados, "então não estão aproveitando totalmente o potencial da conectividade ou os benefícios da transformação digital".

Hechos y Cifras 2023 sublinha que essa desigualdade global também se verifica na utilização da rede de telefonia móvel 5G, lançada em 2019, e que atualmente abrange quase 40% da população mundial. No entanto, como acontece com o tráfego de dados da Internet, embora represente 89% da população em países de alta renda, é praticamente inexistente em países de baixa renda. Em muitos países de baixa renda, a rede móvel 3G, que é muito menos potente do que a 5G, é muitas vezes o único meio para conectar-se por telefone e acessar a Internet. A situação se agrava quando se considera que a rede 3G não é suficiente para acessar todas as vantagens da tecnologia digital, como diagnósticos médicos remotos ou ensino online. Quanto ao serviço 4G, embora ainda ofereça um caminho eficaz para a conectividade, ele atinge apenas 39% da população em países de baixa renda.

Fratura regional profunda

Os 5,4 bilhões que usam a internet exemplificam um mapa de grandes desigualdades geográficas. Na Europa, na Comunidade de Estados Independentes (9 dos quais faziam parte da União Soviética) e nas Américas, cerca de 90% da população têm acesso à Internet. Esse percentual cai para menos de 70% nos Estados árabes, na Ásia e no Pacífico. E isso cai drasticamente para apenas 37% na África.

As diferenças no acesso dependem não só das características regionais, mas também do gênero e da idade. Em âmbito mundial, 70% dos homens usam a Internet, em comparação com 65% das mulheres (em ambos os casos, esses percentuais representam um ligeiro aumento em relação a 2022).

Por outro lado, os jovens estão mais conectados do que o resto da população. Em 2023, 79% das pessoas entre 15 e 24 anos usavam a Internet, cerca de 14 pontos percentuais a mais que o restante da população. Por fim, 81% da população urbana têm acesso, aproximadamente 1,6 vezes mais do que a população das áreas rurais.

Além de porcentagens e de números

Enquanto a UIT monitora o desenvolvimento técnico da conectividade global, a Conferência Internacional sobre Teoria e Prática de Governança Eletrônica (International Conference on Theory and Practice of Electronic Governance - ICEGOV) promove uma reflexão conceitual aprofundada para avançar em direção ao conhecimento digital, equitativo e inclusivo (https://www.icegov.org).Em setembro passado, o Programa Informação para Todos (PIPT), da UNESCO e o Centro Regional de Estudos sobre o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br|NIC.br), com o apoio do escritório da UNESCO em Montevidéu, organizaram conjuntamente uma mesa redonda e um workshop, em Belo Horizonte, Brasil, no âmbito do ICEGOV 2023. O tema central desses eventos simultâneos foi a necessidade de políticas baseadas em evidências para cultivar uma sociedade do conhecimento digital equitativa e inclusiva, com especial atenção para a região da América Latina e Caribe (https://www.unesco.org/es/articles/avanzando-en-la-gobernanza-digital-mediante-politicas-basadas-en-evidencia-en-america-latina-y-el).

Em outubro de 2024, o ICEGOV realizará sua próxima conferência internacional, desta vez na África do Sul, sob o título "Confiança e Governança Digital Ética para o Mundo que Queremos". Fará parte de um processo de reflexão que nos últimos 16 anos já promoveu encontros semelhantes em 13 países de todos os continentes.

Iniciativas e processos em curso que, embora enriqueçam a reflexão, são sempre confrontados com realidades condicionantes muito específicas, como o monopólio do tráfego global da Internet. Em 2022, segundo a Revista Byte TI, mais da metade (56%) desse tráfego estava nas mãos de seis gigantes da tecnologia: Google, Facebook, Netflix, Amazon, Microsoft e Apple (https://revistabyte.es/actualidad-it/las-6-empresas-flujo-de-internet/). O blog especializado Cloudflare apontou que, no final de 2023, e apesar da queda de popularidade da Netflix, essa lista se expandiu dez vezes mais devido à incorporação de outros cinco gigantes: TikTok, YouTube, AWS, Instagram e iCloud. Essa concentração é alarmante, e não apenas pela quantidade de informações em tão poucas mãos. Até pela enorme diversidade de setores onde ela prevalece, já que abrange praticamente todas as categorias mais críticas e relevantes de serviços online: da IA generativa (em plena expansão após o lançamento do ChatGPT, em novembro de 2022) às redes sociais, passando pelo e-commerce (comércio eletrônico), transmissões de vídeo, notícias, mensagens, metaverso e videogames, bem como serviços financeiros e de criptomoedas (https://blog.cloudflare.com/radar-2023-year-in-review-internet-services-es-es).

Dessa rápida radiografia, emergem duas observações: o volume fundamental e o controle da Internet estão nas mãos de um punhado de grandes corporações transnacionais (em sua maioria monopolistas), que controlam uma gama de atividades tão essenciais quanto decisivas para o funcionamento cotidiano da humanidade, com ênfase em produtos lucrativos. Portanto, a exclusão digital corresponde a uma forma de organizar a arquitetura econômica e financeira global. Daí, também, um ponto de tensão irresolúvel: até que ponto se pode imaginar uma Internet (e um mundo digital) equitativa e inclusiva, essencial até mesmo para a educação e para a formação humana se for controlada por atores monopolistas com suas próprias lógicas e objetivos de desempenho empresarial?

Sergio Ferrari é jornalista

Tradução: Rose Lima

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