terça-feira, 19 de março de 2024

A armadilha capitalista para avanços científicos


A adoção irrefletida da inteligência artificial verifica-se hoje diante dos nossos olhos

Prabhat Patnaik [*]

Há um paradoxo no âmago do florescimento da ciência verificado no último milênio. Na sua essência, este florescimento tem o potencial de aumentar imensamente a liberdade humana. Aumenta a capacidade do homem dentro da dialética homem-natureza; a prática científica visa ir além do "dado", não apenas num sentido único, mas como um movimento perpétuo através de um incessante auto-questionamento, de modo a que esta prática seja potencialmente um ato coletivo de libertação. Mas esta promessa de liberdade continua significativamente por cumprir; e, embora o seu potencial não tenha sido concretizado, este florescimento da ciência tem sido utilizado em grande medida para a dominação de alguns sobre outros seres humanos e outras sociedades. O paradoxo reside no facto de a prática científica, que tem o potencial de aumentar a liberdade humana, ter sido utilizada para aumentar a dominação, ou seja, para atenuar a liberdade humana.

As raízes deste paradoxo residem no facto de o desencadeamento do avanço científico exigiu anular o sufocamento da sociedade por parte da igreja (que, recorde-se, havia obrigado Galileu a retratar-se); e esta anulação só podia ocorrer como parte da transcendência da ordem feudal, ou seja, como parte da revolução burguesa, de que a Revolução Inglesa de 1640 foi um exemplo paradigmático. O desenvolvimento da ciência moderna na Europa esteve, portanto, indissociavelmente ligado, desde o início, ao desenvolvimento do capitalismo; e este facto deixou a sua marca indelével na utilização que foi dada aos avanços científicos.

Esta marca burguesa teve também implicações epistemológicas importantes com as quais os filósofos (como Akeel Bilgrami) se preocuparam, nomeadamente o tratamento da natureza como "matéria inerte" e a atribuição de uma "inércia" semelhante às populações indígenas em zonas longínquas do mundo ("povos sem história"), o que "justificou", aos olhos europeus, a aquisição de "domínio" tanto sobre a natureza como sobre essas populações distantes e, em consequência, "justificou" o fenómeno do imperialismo.

Agudamente conscientes do facto de que o papel libertador da ciência só poderia ser plenamente realizado através de uma transcendência do próprio capitalismo, os melhores cientistas na época em que tal transcendência havia entrado na agenda histórica aderiram à luta pelo socialismo. Isto não era só essencial para eles como cidadãos, para impedir o abuso da ciência; era também um imperativo moral para eles como cientistas: lutar contra o abuso da sua própria praxis que produzia o avanço científico tinha para eles uma importância primordial.

Quanto à luta pelo socialismo, o exemplo de Albert Einstein é bem conhecido. Ele não só era um socialista declarado como também participava ativamente em atividades e reuniões políticas, razão pela qual o FBI americano o havia "vigiado" e mantido um dossier sobre ele que está agora aberto ao público. Na realidade, devido às suas convicções socialistas, não lhe foi concedida autorização de segurança (security clearance) para participar no projeto Manhattan que desenvolveu a bomba atómica. Do mesmo modo, na Grã-Bretanha, os melhores cientistas do século XX pertenciam à esquerda, desde JD Bernal a Joseph Needham, JBS Haldane, Hyman Levy, GH Hardy, Dorothy Hodgkin e muitos outros.

No entanto, com o advento do neoliberalismo, registou-se uma mudança fundamental. Verificou-se uma "mercantilização" da ciência, no âmbito da qual a responsabilidade pelo financiamento da investigação passou do Estado para doadores privados, principalmente corporações. Isto significa que a liberdade do cientista para exprimir opiniões políticas que sublinham a necessidade de transcender o capitalismo foi grandemente restringida. Se um cientista quiser participar num projeto de investigação, tem de ser suficientemente aceitável para os doadores privados; e não o ajuda se ele for conhecido por ter convicções socialistas. Mesmo nomeações para universidades são determinadas pela capacidade do cientista para atrair fundos de doadores. Os mesmos constrangimentos políticos aplicam-se, portanto, mesmo numa esfera em que, até há pouco tempo, os acadêmicos tinham a liberdade de professar convicções diversas. Por outras palavras, a mercantilização da ciência produz, como consequência necessária, um conformismo político e, por conseguinte, uma irresponsabilidade social por parte do cientista. O "luxo" de interiorizar o imperativo moral de tentar ir além do capitalismo, a fim de fazer com que a sua prática científica contribua para a libertação humana, é negado ao cientista na era do neoliberalismo. Isto, por sua vez, implica a adoção de avanços científicos sem discussão adequada das consequências.

Um exemplo óbvio dessa adoção irreflectida, que hoje está a ocorrer diante dos nossos olhos, diz respeito à inteligência artificial. Esta tem, evidentemente, várias implicações que não irei abordar. A minha preocupação prende-se apenas com uma delas, a saber, a criação de desemprego em massa, para a qual a recente greve dos guionistas de Hollywood chamou a atenção. Qualquer medida que substitua o trabalho humano por um dispositivo mecânico é potencialmente libertadora: pode reduzir a fadiga do trabalho ou, em alternativa, aumentar a magnitude da produção com a mesma utilização de mão-de-obra que anteriormente e, consequentemente, a disponibilidade de bens e serviços para a população. Mas, sob o capitalismo, cada substituição do trabalho humano por um dispositivo mecânico aumenta a miséria humana.

Considere-se um exemplo. Suponhamos que uma inovação duplica a produtividade do trabalho. Sob o capitalismo, cada capitalista utilizaria a inovação para reduzir metade da força de trabalho que estava a ser empregada anteriormente. Este facto aumentaria a dimensão relativa do exército de reserva de trabalho, pelo que aqueles que continuassem empregados não experimentariam qualquer aumento do seu salário real. Haveria, portanto, uma redução para metade da massa salarial e um aumento da magnitude do excedente, se o nível anterior de produção continuasse a ser produzido. Mas, devido à passagem dos salários para o excedente no nível anterior de produção, verificar-se-ia uma queda da procura (uma vez que é consumida uma maior proporção de salários do que de excedente) e, portanto, o nível anterior de produção não seria produzido e haveria um grau adicional de desemprego, desta vez devido a uma procura insuficiente, para além do desemprego gerado pela duplicação inicial da produtividade do trabalho.

O economista inglês David Ricardo não se tinha apercebido deste desemprego adicional decorrente da insuficiência da procura. Partira do princípio da Lei de Say, ou seja, de que nunca existe qualquer défice de procura agregada e de que não só todos os salários são consumidos como todo o excedente para além da parte que é consumida é automaticamente investido. Partindo deste pressuposto, concluiu que a passagem dos salários para o excedente, se bem que diminuísse o consumo total da produção anterior, aumentaria o investimento – mas deixaria a produção anterior inalterada no início. E este aumento da percentagem de investimento elevaria a taxa de crescimento da produção e, consequentemente, a taxa de crescimento do emprego. A utilização de maquinaria, portanto, apesar de poder reduzir o emprego no imediato, aumentaria a sua taxa de crescimento, de modo que após algum tempo o emprego excederia o que teria acontecido de outro modo.

Contudo, a lei de Say não tem qualquer validade. O investimento no capitalismo é determinado pelo crescimento esperado do mercado e não pela magnitude do excedente (a não ser que existam mercados coloniais inexplorados a que se possa aceder ou que o Estado esteja sempre disposto a intervir para ultrapassar uma deficiência da procura agregada). A razão pela qual a mudança tecnológica não causou historicamente desemprego em massa na metrópole foi dupla: em primeiro lugar, os mercados coloniais estavam disponíveis, pelo que grande parte do desemprego gerado pela mudança tecnológica foi transferido para as colónias (sob a forma de desindustrialização); ou seja, houve exportação do desemprego da metrópole. Em segundo lugar, o desemprego local gerado pela evolução tecnológica não se prolongou, porque os desempregados emigraram para o estrangeiro. Durante o "longo século XIX" (até à Primeira Guerra Mundial), 50 milhões de europeus emigraram para as regiões temperadas de colonização branca, como o Canadá, os Estados Unidos, a África do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia.

Hoje, contudo, prevalece uma situação completamente diferente. Não se trata apenas de o colonialismo não existir, mas de os mercados do terceiro mundo serem inadequados para contrariar qualquer deficiência da procura agregada nas metrópoles. Da mesma forma, o Estado não pode contrariar uma deficiência da procura agregada, uma vez que não pode aumentar o seu défice orçamental para além do limite da Lei FRBM, nem tributar os ricos para aumentarem as suas despesas (tributar os trabalhadores para aumentarem as suas despesas dificilmente aumenta a procura agregada). Segue-se portanto que a mecanização, incluindo a utilização da inteligência artificial, no contexto do capitalismo atual, gerará inevitavelmente desemprego maciço.

Considere-se, em contraste, o que aconteceria numa economia socialista. Qualquer mecanização, incluindo a utilização da inteligência artificial, reduzirá a penosidade do trabalho sem reduzir o emprego, a produção e, portanto, a massa salarial dos trabalhadores, todos eles determinados a nível central. Esta diferença fundamental entre os dois sistemas explica o facto de a utilização benigna da inteligência artificial estar condicionada exclusivamente a uma transcendência do capitalismo.

17/Março/2024

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
Este artigo encontra-se em resistir.info

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