sexta-feira, 8 de março de 2024

Deus, um delírio ( gota 4 )

RICHARD DAWKINS
 

Deus, um delírio 
Tradução Fernanda Ravagnani
COMPANHIA DAS LETRAS

1. Um descrente profundamente religioso

Não tento imaginar um Deus pessoal; basta admirar assombrado a estrutura do mundo, pelo menos na proporção em que ela se permite apreciar por nossos sentidos inadequados.

 Albert Einstein


RESPEITO MERECIDO

O menino descansava de bruços na grama, o queixo apoiado nas mãos. De repente, sentiu-se invadido por uma percepção exacerbada das raízes e dos caules entrelaçados, uma floresta em microcosmo, um mundo transfigurado de formigas e besouros e até — embora na época ele não soubesse dos detalhes — de bactérias aos bilhões no solo, sustentando silenciosa e invisivelmente a economia do micromundo. De repente, a microfloresta de grama pareceu inflar e se unir ao universo, e à mente extasiada do garoto que a contemplava. Ele interpretou a experiência em termos religiosos e ela acabou levando-o ao sacerdócio. Foi ordenado padre anglicano e tornou-se capelão de minha escola, um professor de quem eu gostava. É graças a religiosos liberais e decentes como ele que ninguém jamais pôde dizer que tive a religião enfiada goela abaixo.*

* Nossa diversão durante as aulas era desviá-lo das Escrituras e conduzi-lo na direção das emocionantes histórias sobre o Comando de Caças e "Os Poucos". Ele tinha servido na RAF durante a guerra e foi com uma sensação de familiaridade, e com algo da afeição que ainda nutro pela Igreja da Inglaterra (pelo menos em comparação com a concorrência), que mais tarde li o poema de John Betjeman: Nosso padre é um velho piloto dos céus,/ Severamente, agora, cortaram-lhe as asas,/ Mas ainda o mastro no jardim da paroquial Aponta para Coisas Mais Elevadas... [Our padre is an old sky pilot,/ Severely now theyVe clipped his wings,/ But still the flagstaff in the Rect'ry garden/ Points to Higher Things...].

Em outro tempo e lugar, aquele menino podia ter estado sob as estrelas, fascinado pela Orion, pela Cassiopéia e pela Ursa Maior, com lágrimas nos olhos pela música inaudível da Via Láctea, intoxicado pelo perfume noturno dos jasmins e das solandras num jardim africano. Não é fácil responder por que motivo a mesma emoção levou meu capelão para uma direção e a mim para outra. A reação como que mística à natureza e ao universo é comum entre cientistas e racionalistas. Ela não tem nenhuma conexão com a fé sobrenatural. Em sua meninice, pelo menos, presumo que meu capelão não conhecesse (como eu também não conhecia) as linhas que encerram A origem das espécies — o famoso trecho da "margem emaranhada", "com pássaros cantando nos arbustos, com vários insetos revoando e com vermes rastejando pela terra úmida".** Se ele ás conhecesse, certamente teria se identificado com elas e, em vez de ao sacerdócio, teria sido levado na direção da visão de Darwin de que tudo foi "criado por leis que atuam à nossa volta":

Assim, é da guerra da natureza, da fome e da morte, que deriva diretamente o mais exaltado objeto que somos capazes de conceber, a produção de animais superiores. Há grandeza nessa visão da vida, com seus tantos poderes tendo sido originalmente insuflados em algumas poucas formas ou em apenas uma; e de que, enquanto este planeta girava seguindo a lei imutável da gravidade, de um começo tão simples, infinitas formas, as mais belas e as mais maravilhosas, evoluíram e continuam evoluindo. 

Carl Sagan escreveu, em Pálido ponto azul

Como é possível que praticamente nenhuma religião importante tenha olhado para a ciência e concluído: "Isso é melhor do que imaginávamos! O universo é muito maior do que disseram nossos profetas, mais grandioso, mais sutil, mais elegante"? Em vez disso, dizem: "Não, não, não! Meu deus é um deus pequenininho, e quero que ele continue assim". Uma religião, antiga ou nova, que ressaltasse a magnificência do universo como a ciência moderna o revelou poderia atrair reservas de reverência e respeito que continuam quase intocadas pelas crenças convencionais. 

** Tradução direta do inglês. A versão consagrada em português é a de Eugênio Amado, Origem das espécies, Itatiaia, 2002. (N. T.)

Todos os livros de Sagan tocam no nervo exposto do assombro transcendente monopolizado pela religião nos últimos séculos. Meus livros têm a mesma aspiração. Em conseqüência disso, muitas vezes me vejo descrito como um homem profundamente religioso. Uma estudante americana me escreveu dizendo que tinha perguntado ao seu professor se ele tinha uma opinião sobre mim. "É claro", ele respondeu. "Ele tem certeza de que a ciência é incompatível com a religião, mas vive se extasiando com a natureza e com o universo. Para mim, isso é religião!" Mas será "religião" a palavra certa? Acho que não. O físico e prêmio Nobel (e ateu) Steven Weinberg defendeu a questão melhor que ninguém em Sonhos de uma teoria final:

Algumas pessoas têm uma visão de Deus tão ampla e flexível que é inevitável que encontrem Deus onde quer que procurem por ele. Ouvimos que "Deus é o supremo" ou que "Deus é nossa melhor natureza" ou que "Deus é o universo". É claro que, como qualquer outra palavra, a palavra "Deus" pode ter o significado que quisermos. Se alguém quiser dizer que "Deus é energia", poderá encontrar Deus num pedaço de carvão. 

Weinberg está bem certo quando diz que, para que a palavra Deus não se torne completamente inútil, ela deve ser usada do modo como as pessoas normalmente a entendem: para denotar um criador sobrenatural "adequado à nossa adoração".

Infelizmente, a indistinção entre o que se pode chamar de religião einsteniana e a religião sobrenatural causa muita confusão. Einstein às vezes invocava o nome de Deus (e ele não é o único cientista ateu a fazer isso), dando espaço para mal-entendidos por parte de adeptos do sobrenaturalismo loucos para interpretá-lo mal e reclamar para o seu time pensador tão ilustre. O final dramático (ou seria malicioso?) de Uma breve história do tempo, de Stephen Hawking, "pois então conheceremos a mente de Deus", é notoriamente mal interpretado. Ele levou as pessoas a acreditar, erroneamente, é claro, que Hawking é um homem religioso. A bióloga celular Ursula Goodenough, em The sacred depths ofnature [As profundezas sagradas da natureza], soa ainda mais religiosa que Hawking e Einstein. Ela adora igrejas, mesquitas e templos, e vários trechos de seu livro são um convite a ser tirados de contexto e usados como munição para a religião sobrenatural. Ela chega até a chamar a si mesma de "naturalista religiosa". Mas uma leitura cuidadosa mostra que na verdade ela é uma ateia tão convicta quanto eu. 

"Naturalista" é uma palavra ambígua. Para mim, ela faz lembrar o herói da minha infância, o dr. Dolittle (que, aliás, tinha bem mais do que só uma pitada do naturalista "filósofo" do H. M. S. Beagle), de Hugh Lofting. Nos séculos XVIII e XIX, naturalista significava o que ainda significa para a maioria de nós hoje em dia: um estudioso do mundo da natureza. Nesse sentido, os naturalistas, a começar por Gilbert White, muitas vezes eram sacerdotes. O próprio Darwin estava destinado à Igreja quando jovem, na esperança de que a vida tranquila de padre rural lhe permitisse explorar sua paixão pelos besouros. Mas os filósofos usam "naturalista" num sentido bem diferente, como oposto de sobrenaturalista. Julian Baggini explica em Atheism: A very short introduction o significado do comprometimento de um ateu com o naturalismo: "O que a maioria dos ateus acredita é que, embora só haja um tipo de matéria no universo, e é a matéria física, dessa matéria nascem a mente, a beleza, as emoções, os valores morais — em suma, a gama completa de fenômenos que enriquecem a vida humana". 

Os pensamentos e as emoções humanas emergem de interconexões incrivelmente complexas de entidades físicas dentro do cérebro. Um ateu, nesse sentido filosófico de naturalista, é alguém que acredita que não há nada além do mundo natural e físico, nenhuma inteligência sobrenatural vagando por trás do universo observável, que não existe uma alma que sobrevive ao corpo e que não existem milagres — exceto no sentido de fenômenos naturais que não compreendemos ainda. Se houver alguma coisa que pareça estar além do mundo natural, conforme o entendemos hoje, esperamos no fim ser capazes de entendê-la e adotá-la dentro da natureza. Assim como acontece sempre que desvendamos um arco-íris, ela não será menos maravilhosa por causa disso.

Grandes cientistas de nossos tempos que soam religiosos normalmente não se revelam tão religiosos assim quando têm suas crenças examinadas mais a fundo. É esse certamente o caso de Einstein e Hawking. O atual astrônomo real e presidente da Royal Society, Martin Rees, me contou que vai à igreja como um "anglicano descrente [...] pela lealdade à tribo". Ele não tem crenças teístas, mas possui o mesmo naturalismo poético que o cosmos provoca nos outros cientistas que mencionei. Durante uma conversa recente transmitida pela televisão, desafiei meu amigo obstetra Robert Winston, um dos mais respeitados pilares da comunidade judaica britânica, a admitir que seu judaísmo era exatamente dessa natureza, e que ele não acreditava de verdade em nada sobrenatural. Ele chegou perto de fazer a admissão, mas recuou no último minuto (para ser justo, era ele quem devia estar me entrevistando, e não o contrário).3 Quando o pressionei, ele disse achar que o judaísmo proporcionava uma boa disciplina para ajudá-lo a estruturar sua vida e conduzi-la bem. Talvez seja verdade; mas isso, é claro, não influi em nada na veracidade de nenhuma das alegações sobrenaturais do judaísmo. Existem muitos intelectuais ateus que com orgulho se autodenominam judeus e observam os ritos judaicos, talvez pela lealdade a uma tradição antiga ou aos parentes assassinados, mas também pela equivocada e enganadora disposição de rotular como "religião" a reverência panteísta que muitos de nós destinam a seu expoente mais destacado, Albert Einstein. Eles podem não acreditar, mas, para tomar emprestada uma frase do filósofo Dan Dennett, eles "crêem na crença".4 

Uma das declarações mais citadas de Einstein é "Sem a religião, a ciência é capenga; sem a ciência, a religião é cega". Mas Einstein também disse: 

É claro que era mentira o que você leu sobre minhas convicções religiosas, uma mentira que está sendo sistematicamente repetida. Não acredito num Deus pessoal e nunca neguei isso, e sim o manifestei claramente. Se há algo em mim que possa ser chamado de religioso, é a admiração ilimitada pela estrutura do mundo, do modo como nossa ciência é capaz de revelar.

Parece que Einstein se contradiz? Que suas palavras podem ser escolhidas a dedo para arranjar citações que sustentem os dois lados da discussão? Não. Por "religião" Einstein quis dizer algo totalmente diferente do significado convencional. Conforme eu prosseguir esclarecendo a distinção entre a religião sobrenatural, de um lado, e a religião einsteiniana, do outro, tenha em mente que só estou chamando de delírio os deuses sobrenaturais. 

Seguem algumas outras citações de Einstein, para dar um gostinho da religião einsteiniana: 

Sou um descrente profundamente religioso. Isso é, de certa forma, um novo tipo de religião. 

Jamais imputei à natureza um propósito ou um objetivo, nem nada que possa ser entendido como antropomórfico. O que vejo na natureza é uma estrutura magnífica que só compreendemos de modo muito imperfeito, e que não tem como não encher uma pessoa racional de um sentimento de humildade. É um sentimento genuinamente religioso, que não tem nada a ver com misticismo. A ideia de um Deus pessoal me é bastante estranha, e me parece até ingênua. 

Em números cada vez maiores desde sua morte, apologistas da religião, de forma compreensível, tentam reclamar Einstein para o seu time. Alguns dos religiosos contemporâneos a ele o viram de maneira bem diferente. Em 1940, Einstein escreveu um trabalho famoso justificando sua declaração "Eu não acredito num Deus pessoal". Junto com outras semelhantes, essa declaração provocou uma enxurrada de cartas de religiosos ortodoxos, muitas delas aludindo à origem judaica de Einstein. Os trechos que se seguem são tirados do livro Einstein e a religião, de Max Jammer (que também é minha principal fonte de citações do próprio Einstein sobre as questões religiosas). O bispo católico de Kansas City disse: "É triste ver um homem que descende da raça do Velho Testamento e de seus ensinamentos negar a grande tradição dessa raça". Outro religioso católico opinou: "Não há nenhum outro Deus que não um Deus pessoal [...] Einstein não sabe do que está falando. Ele está totalmente errado. Alguns homens acham que só porque atingiram um alto nível de especialidade em determinada área são qualificados para manifestar suas opiniões em todas". A noção de que a religião é uma área adequada, em que alguém possa alegar ser especialista, não pode passar sem questionamento. Aquele religioso certamente não teria feito deferências à opinião de especialista de um autodenominado "fadólogo" sobre a forma e a cor exatas das asas das fadas. Tanto ele como o bispo achavam que Einstein, por não ter treinamento teológico, havia interpretado mal a natureza de Deus. Pelo contrário — Einstein sabia perfeitamente bem o que estava negando. 

Um advogado católico americano, em nome de uma coalizão ecumênica, escreveu para Einstein:

Lamentamos profundamente que o senhor tenha feito a declaração [...] em que ridiculariza a ideia de um Deus pessoal. Nos últimos dez anos, nada foi tão bem calculado para fazer as pessoas acharem que Hitler tinha alguma razão ao expulsar os judeus da Alemanha quanto sua declaração. Admitindo seu direito à liberdade de expressão, digo ainda assim que sua declaração o constitui em uma das maiores fontes de discórdia dos Estados Unidos. 

Um rabino de Nova York disse: "Einstein é sem dúvida um grande cientista, mas suas opiniões religiosas são diametralmente opostas ao judaísmo". 

"Mas"? "Mas"? Por que não "e"? 

O presidente de uma sociedade de história em Nova Jersey escreveu uma carta que deixa tão incriminadoramente exposta a debilidade do pensamento religioso que vale a pena lê-la duas vezes: 

Respeitamos sua sabedoria, dr. Einstein; mas existe uma coisa que o senhor não parece ter aprendido: que Deus é um espírito e não pode ser encontrado pelo telescópio ou pelo microscópio, assim como o pensamento ou a emoção humanos não podem ser encontrados na análise do cérebro. Como todo mundo sabe, a religião se baseia na Fé, não no conhecimento. Todas as pessoas que pensam talvez sejam assaltadas, às vezes, por dúvidas religiosas. Minha própria fé já vacilou muitas vezes. Mas nunca contei a ninguém sobre minhas aberrações espirituais, por dois motivos: 1) temi que pudesse, pela mera sugestão, perturbar e prejudicar a vida e as esperanças de alguém; 2) porque concordo com o escritor que disse: "Há algo de maligno em alguém que queira destruir a fé do outro". [...] Espero, dr. Einstein, que a citação esteja errada e que o senhor ainda vá dizer alguma coisa mais agradável para o vasto número de americanos que têm o prazer de homenageá-lo.

Que carta reveladora! Cada frase está encharcada de covardia intelectual e moral. 

Menos abjeta, mas mais chocante, foi a carta do fundador da Associação do Tabernáculo do Calvário, em Oklahoma: 

Professor Einstein, acredito que todo cristão nos Estados Unidos vai lhe responder: "Não vamos abrir mão de nossa crença em nosso Deus e em seu filho Jesus Cristo, mas o convidamos, se o senhor não acredita no Deus do povo desta nação, a voltar ao local de onde veio". Fiz tudo o que podia para ser uma bênção para Israel, e vem o senhor com uma declaração de sua língua blasfema e faz mais para prejudicar a causa de seu povo que todos os esforços dos cristãos que amam Israel são capazes de fazer para acabar com o anti-semitismo em nossa terra. Professor Einstein, todo cristão dos Estados Unidos vai imediatamente lhe responder: "Pegue sua teoria maluca e mentirosa da evolução e volte para a Alemanha, de onde veio, ou pare de tentar destroçar a fé de um povo que o recebeu de braços abertos quando o senhor foi obrigado a fugir de sua terra natal". 

A única coisa que todos esses críticos teístas entenderam direitinho foi que Einstein não era um deles. Ele indignou-se muitas vezes com a sugestão de que era teísta. Era então deísta, como Voltaire e Diderot? Ou panteísta, como Spinoza, cuja filosofia admirava: "Acredito no Deus de Spinoza, que se revela na harmonia ordenada daquilo que existe, não num Deus que se preocupa com os destinos e as ações dos seres humanos"? 

Refresquemos nossa memória sobre a terminologia. Um teísta acredita numa inteligência sobrenatural que, além de sua obra principal, a de criar o universo, ainda está presente para supervisionar e influenciar o destino subseqüente de sua criação inicial. Em muitos sistemas teístas de fé, a divindade está intimamente envolvida nas questões humanas. Atende a preces; perdoa ou pune pecados; intervém no mundo realizando milagres; preocupa-se com boas e más ações e sabe quando as fazemos (ou até quando pensamos em fazê-las). Um deísta também acredita numa inteligência sobrenatural, mas uma inteligência cujas ações limitaram-se a estabelecer as leis que governam o universo. O Deus deísta nunca intervém depois, e certamente não tem interesse específico nas questões humanas. Os panteístas não acreditam num Deus sobrenatural, mas usam a palavra Deus como sinônimo não sobrenatural para a natureza, ou para o universo, ou para a ordem que governa seu funcionamento. Os deístas diferem dos teístas pelo fato de o Deus deles não atender a preces, não estar interessado em pecados ou confissões, não ler nossos pensamentos e não intervir com milagres caprichosos. Os deístas diferem dos panteístas pelo fato de que o Deus deísta é uma espécie de inteligência cósmica, mais que o sinônimo metafórico ou poético dos panteístas para as leis do universo. O panteísmo é um ateísmo enfeitado. O deísmo é um teísmo amenizado. 

Há todos os motivos do mundo para se imaginar que einsteinismos famosos como "Deus é sutil, mas não é malicioso" ou "Ele não joga dados" ou "Deus teve escolha para criar o universo?" sejam panteístas, e não deístas, e certamente não teístas. "Deus não joga dados" deve ser traduzido como "A aleatoriedade não habita o cerne de todas as coisas". "Deus teve escolha para criar o universo?" significa "Teria podido o universo começar de alguma outra forma?". Einstein usou "Deus" num sentido puramente metafórico, poético. Assim como Stephen Hawking, e como a maioria dos físicos que ocasionalmente escorrega e cai na terminologia da metáfora religiosa. A mente de deus, de Paul Davies, parece estar em algum ponto entre o panteísmo einsteiniano e uma forma obscura de deísmo — pelo qual ele foi agraciado com o prémio Templeton (uma grande soma de dinheiro entregue todo ano pela Fundação Templeton, normalmente para um cientista que esteja disposto a dizer algo de positivo sobre a religião). 

Deixe-me resumir a religião einsteiniana em mais uma citação do próprio Einstein: "Ter a sensação de que por trás de tudo que pode ser vivido há alguma coisa que nossa mente não consegue captar, e cujas belezas e sublimidade só nos atingem indiretamente, na forma de um débil reflexo, isso é religiosidade. Nesse sentido, sou religioso". Nesse sentido também sou religioso, com a ressalva de que "não consegue captar" não necessariamente significa "para sempre incaptável". Mas prefiro não me autodenominar religioso, porque isso induz ao erro. Induz ao erro de forma destrutiva, porque, para a imensa maioria das pessoas, "religião" implica "sobrenatural". Carl Sagan disse bem: "[...] se por 'Deus' se quer dizer o conjunto de leis físicas que governam o universo, então é claro que esse Deus existe. É um Deus emocionalmente insatisfatório [...] não faz muito sentido rezar para a lei da gravidade". 

O engraçado é que essa última observação de Sagan foi prenunciada pelo reverendo dr. Fulton J. Sheen, professor da Catholic University of America, num veemente ataque contra a desaprovação do Deus pessoal por Einstein, em 1940. Sarcasticamente, Sheen perguntou se alguém estava disposto a dar a vida pela Via Láctea. Aparentemente ele achava que estava mesmo investindo contra Einstein, pois acrescentou: "Só há um problema com sua religião cósmica [cosmical— N. T.]: ele colocou uma letra a mais na palavra — a letra 's'". Não há nada de cômico [comical] nas crenças de Einstein. Mesmo assim, gostaria que os físicos evitassem usar a palavra Deus em seu sentido metafórico especial. O Deus metafórico ou panteísta dos físicos está a anos-luz de distância do Deus intervencionista, milagreiro, telepata, castigador de pecados, atendedor de preces da Bíblia, dos padres, mulas e rabinos, e do linguajar do dia-a-dia. Confundir os dois deliberadamente é, na minha opinião, um ato de alta traição intelectual.

RESPEITO NÃO MERECIDO 

Meu título, Deus, um delírio, não se refere ao Deus de Einstein e ao de outros cientistas esclarecidos da seção anterior. É por isso que preciso tirar a religião einsteiniana da frente antes de qualquer coisa: ela tem uma capacidade comprovada de causar confusão. No restante deste livro falo só dos deuses sobrenaturais, entre os quais o mais familiar à maioria de meus leitores será Javé, o Deus do Antigo Testamento. Chegarei a ele num instante. Mas, antes de concluir este capítulo preliminar, preciso tratar de mais uma questão que poderia comprometer o livro inteiro. Desta vez é uma questão de etiqueta. É possível que leitores religiosos fiquem ofendidos com o que tenho a dizer, e encontrem nestas páginas um respeito insuficiente por suas crenças específicas (se não às crenças cultivadas por outras pessoas).

Seria uma pena que essa ofensa os impedisse de continuar a ler, por isso quero esclarecer o problema aqui, logo de saída. 

Uma pressuposição disseminada, aceita por quase todos em nossa sociedade — incluindo os não religiosos —, é que a fé é especialmente vulnerável às ofensas e que deve ser protegida por uma parede de respeito extremamente espessa, um tipo de respeito diferente daquele que os seres humanos devem ter uns com os outros. Douglas Adams explicou tão bem, num discurso de improviso que fez em Cambridge pouco antes de morrer,5 que nunca me canso de divulgar suas palavras: 

A religião [...] tem determinadas idéias em seu cerne que denominamos sagradas, santas, algo assim. O que isso significa é: "Essa é uma idéia ou uma noção sobre a qual você não, pode falar mal; simplesmente não pode. Por que não? Porque não, e pronto!". Se alguém vota em um partido com o qual você não concorda, você pode discutir sobre isso quanto quiser; todo mundo terá um argumento, mas ninguém vai se sentir ofendido. Se alguém acha que os impostos devem subir ou baixar, você pode ter uma discussão sobre isso. Mas, se alguém disser: "Não posso apertar o interruptor da luz no sábado", você diz: "Eu respeito isso". 
Como é possível que seja perfeitamente legítimo apoiar o Partido Trabalhista ou o Partido Conservador, republicanos ou democratas, um ou outro modelo econômico, o Macintosh e não o Windows — mas não ter uma opinião sobre como o universo começou, sobre quem criou o universo [...] não, isso é sagrado? [...] Estamos acostumados a não questionar idéias religiosas, mas é muito interessante como Richard causa furor quando o faz! Todo mundo fica absolutamente louco, porque não se pode falar dessas coisas. Mas, quando se analisa racionalmente, não há nenhuma razão para que essas idéias não estejam tão sujeitas a debate quanto quaisquer outras, exceto o fato de que, de alguma forma, concordamos entre nós que elas não devem estar. 

Veja um exemplo específico do respeito exagerado de nossa sociedade pela religião, um exemplo realmente importante. De longe o meio mais fácil de obter permissão para ser dispensado do serviço militar em tempos de guerra é por motivos religiosos. Você pode ser um filósofo brilhante da moralidade, com uma tese de doutorado premiada sobre os males da guerra, e mesmo assim pode ter dificuldade diante dos avaliadores para ser dispensado por motivos de consciência. Mas, se você disser que seus pais são quakers, consegue fácil, mesmo que seja completamente iletrado e desarticulado quanto à teoria do pacifismo ou até quanto ao próprio quakerismo. 

No outro extremo do espectro do pacifismo, temos uma relutância pusilânime em usar nomes religiosos para facções de guerra. Na Irlanda do Norte, católicos e protestantes ganham os nomes eufemistas de "nacionalistas" e "legalistas", respectivamente. A própria palavra "religiões" é censurada e transformada em "comunidades", como em "guerra intercomunidades". O Iraque, em conseqüência da invasão anglo-americana de 2003, entrou numa guerra civil sectarista entre muçulmanos sunitas e xiitas. É claramente um conflito religioso — mas no The Independent do dia 20 de maio de 2006 tanto a manchete de primeira página quanto a notícia o descreviam como "limpeza étnica". "Étnica", nesse contexto, é mais um eufemismo. O que estamos vendo no Iraque é uma limpeza religiosa. Também é possível argumentar que o uso original do termo "limpeza étnica" na ex-lugoslávia tenha sido um eufemismo para limpeza religiosa, envolvendo sérvios ortodoxos, croatas católicos e bósnios muçulmanos.6 

Já chamei a atenção para o privilégio dado à religião em discussões públicas sobre ética na imprensa e no governo.7 Sempre que surge uma controvérsia sobre a moral sexual ou reprodutiva, pode-se apostar que haverá líderes religiosos dos mais diversos grupos de fiéis proeminentemente representados em comissões influentes, ou em mesasredondas no rádio ou na televisão. Não estou sugerindo que deveríamos nos dar ao trabalho de censurar as opiniões dessa gente. Mas por que nossa sociedade corre a ouvi-los, como se fossem especialistas comparáveis a, digamos, um filósofo da moralidade, um advogado de família ou um médico? 

Veja outro exemplo estranho do privilégio dado à religião. No dia 21 de fevereiro de 2006, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou, de acordo com a Constituição, que uma igreja do Novo México deveria ser isentada de cumprir uma lei, a que todo mundo tem de obedecer, que proíbe o uso de drogas alucinógenas.8 Os integrantes do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal acreditam que só conseguem compreender Deus tomando chá de ayahuasca, que contém a droga alucinógena ilegal dimetiltriptamina. Perceba que basta que eles acreditem que a droga aumenta sua compreensão. Eles não têm de fornecer provas. Por outro lado, há muitas provas de que a maconha alivia a náusea e o desconforto de doentes de câncer submetidos a quimioterapia. Mesmo assim, novamente de acordo com a Constituição, a Suprema Corte determinou, em 2005, que todos os pacientes que usarem a maconha com fins medicinais estarão sujeitos a indiciamento federal (até na minoria dos estados em que esse uso especializado foi legalizado). A religião é, como sempre, o trunfo. Imagine se os integrantes de uma sociedade de apreciadores de arte alegassem à Justiça que "acreditam" precisar de um alucinógeno para aumentar sua compreensão dos quadros impressionistas ou surrealistas. Mas, quando uma igreja alega uma necessidade semelhante, recebe o apoio da mais alta corte do país. É tal o poder da religião como talismã. 

Há dezoito anos, fui um dos 36 escritores e artistas convocados pela revista New Statesman para escrever um manifesto de apoio ao respeitado autor Salman Rushdie,9 então condenado à morte por ter escrito um romance. Irritado com as manifestações de "solidariedade" de líderes cristãos e até de alguns formadores de opinião laicos à "mágoa" e à "ofensa" dos muçulmanos, tracei o seguinte paralelo: 

Se os defensores do apartheid fossem espertos, eles teriam alegado — com sinceridade, pelo que sei — que permitir a mistura de raças era contra sua religião. Uma boa parte da oposição teria respeitosamente se afastado. E não adianta afirmar que se trata de um paralelo injusto porque o apartheid não tem justificativa racional. O grande ponto da fé religiosa, sua força e sua glória, é que ela não depende de justificativas racionais. Recai sobre o resto de nós a expectativa de que justifiquemos nossos preconceitos. Mas peça a uma pessoa religiosa que justifique sua fé e você infringirá a "liberdade de religião". 

Mal sabia eu que uma coisa muito parecida aconteceria no século XXI. O Los Angeles Times (10 de abril de 2006) afirmou que vários grupos cristãos de campi dos Estados Unidos estavam processando suas universidades por adotar normas antidiscriminação, como a proibição de agredir homossexuais. Num exemplo típico, em 2004 James Nixon, um menino de doze anos de Ohio, ganhou na Justiça o direito de usar uma camiseta na escola com as palavras "Homossexualidade é pecado, islã é mentira, aborto é assassinato. Certas questões são preto no branco!".10 A escola disse a ele que não usasse a camiseta — e os pais do menino processaram a escola. Os pais talvez tivessem um caso aceitável se houvessem se baseado na garantia de liberdade de expressão da Primeira Emenda. Mas eles não tinham. Em vez disso, os advogados de Nixon argumentaram com o direito constitucional à liberdade de religião. A ação vitoriosa recebeu o apoio do Alliance Defense Fund do Arizona, cuja missão é "pressionar por batalhas legais pela liberdade de religião". 

O reverendo Rick Scarborough, apoiando a onda de ações cristãs semelhantes para estabelecer a religião como justificativa legal para a discriminação de homossexuais e outros grupos, declarou-a como a luta pelos direitos civis do século XXI: "Os cristãos vão ter de se posicionar pelo direito de ser cristãos".11 Se essas pessoas se posicionassem em nome da liberdade de expressão, haveria relutância em apoiá-las. Mas não é disso que se trata. O "direito de ser cristão" parece, nesse caso, significar o "direito de meter o bedelho na vida privada dos outros". O caso jurídico a favor da discriminação de homossexuais está sendo montado como uma reação contra uma suposta discriminação religiosa! E a lei parece respeitar a atitude. Não dá para se safar dizendo: "Se você tentar me impedir de insultar homossexuais, estará violando minha liberdade de preconceito". Mas dá para se safar dizendo: "Isso viola minha liberdade de religião". Qual é a diferença, pensando bem? A religião, mais uma vez, supera tudo. 

Encerro o capítulo com um estudo de caso especial, que escancara de forma iluminadora o respeito exagerado da sociedade pela religião, acima de todo respeito humano comum. O caso pegou fogo em fevereiro de 2006 — um episódio ridículo, que oscilou loucamente entre os extremos da comédia e da tragédia. Em setembro do ano anterior, o jornal dinamarquês Jyllands - Posten publicou doze caricaturas do profeta Maomé. Ao longo dos três meses seguintes, a indignação foi sendo cuidadosa e sistematicamente alimentada no mundo islâmico por um pequeno grupo de muçulmanos que moram na Dinamarca, liderado por dois imãs que haviam recebido guarida ali.12 No fim de 2005, esses exilados malévolos viajaram da Dinamarca para o Egito carregando consigo um dossiê, que foi copiado e circulou em todo o mundo islâmico, incluindo, decisivamente, a Indonésia. O dossiê continha falsidades sobre supostos maus-tratos sofridos por muçulmanos na Dinamarca, e a mentira tendenciosa de que o Jyllands-Posten era um jornal estatal. Também continha as doze caricaturas, às quais os imãs haviam acrescentado, de forma crucial, mais três, cuja origem era misteriosa, mas que certamente não tinha nenhuma ligação com a Dinamarca. Ao contrário das doze originais, essas três novas caricaturas eram genuinamente ofensivas — ou teriam sido se tivessem, como alegaram os zelosos propagandistas, retratado Maomé. Uma das três novas imagens, particularmente negativa, não era nem um desenho, e sim a reprodução por fax de uma foto de um homem barbado usando um nariz de porco falso, preso por um elástico. Depois foi revelado que era uma foto da Associated Press de um francês que participava de um concurso de imitação de porcos numa feira rural da França.13 A foto não tinha a menor conexão com o profeta Maomé, nem com o islã, nem com a Dinamarca. Mas os ativistas muçulmanos, em sua missão agitadora ao Cairo, insinuaram as três conexões... com resultados previsíveis. 

A "mágoa" e a "ofensa" cuidadosamente cultivadas explodiram cinco meses depois da publicação original das doze caricaturas. Manifestantes no Paquistão e na Indonésia queimaram bandeiras dinamarquesas (onde será que eles foram arrumá-las?) e exigências histéricas foram feitas para que o governo da Dinamarca pedisse desculpas. (Desculpas pelo quê? Eles não desenharam as caricaturas, nem as publicaram. Os dinamarqueses só vivem num país com liberdade de imprensa, uma coisa que muitos países islâmicos podem ter dificuldade de entender.) Jornais na Noruega, na Alemanha, na França e até nos Estados Unidos (mas, notavelmente, não na Grã-Bretanha) republicaram as caricaturas num gesto de solidariedade ao Jyllands-Posten, o que pôs mais lenha na fogueira. Embaixadas e consulados foram depredados, produtos dinamarqueses foram boicotados, cidadãos dinamarqueses — e até ocidentais em geral — foram fisicamente ameaçados; igrejas católicas no Paquistão, sem nenhum tipo de ligação com dinamarqueses ou europeus, foram incendiadas. Nove pessoas morreram quando manifestantes líbios atacaram e incendiaram o consulado italiano em Benghazi. Como escreveu Germaine Greer, o que essa gente gosta mesmo, e faz melhor, é de pandemônio.14 

Uma recompensa de 1 milhão de dólares pela cabeça do "cartunista dinamarquês" foi estabelecida por um imã paquistanês — que aparentemente não sabia que eram doze cartunistas dinamarqueses diferentes, e que decerto não sabia que as três imagens mais ofensivas jamais tinham sido publicadas na Dinamarca (e, aliás, de onde ia vir aquele milhão?). Na Nigéria, manifestantes muçulmanos que protestavam contra as caricaturas dinamarquesas queimaram várias igrejas católicas, e usaram machados para atacar e matar cristãos (nigerianos negros) nas ruas. Um cristão foi enfiado dentro de um pneu, encharcado de gasolina e incendiado. Na Grã-Bretanha, manifestantes foram fotografados segurando faixas com os dizeres "Matem quem insulta o islã", "Assassinem quem ridiculariza o islã", "Europa, você vai pagar: a demolição está a caminho" e "Decapitem aqueles que insultam o islã". Felizmente, nossos líderes políticos estavam a postos para nos lembrar que o islã é uma religião de paz e compaixão. 

Nos desdobramentos que se seguiram a isso tudo, o jornalista Andrew Mueller entrevistou o principal muçulmano "moderado" da Grã-Bretanha, sir Iqbal Sacranie.15 Ele pode ser moderado pelos padrões islâmicos atuais, mas, segundo relato de Andrew Mueller, ele ainda faz jus à declaração que deu quando Salman Rushdie foi condenado à morte por ter escrito um romance: "Talvez a morte seja fácil demais para ele" — uma declaração que estabelece um contraste ignominioso com seu corajoso antecessor, o muçulmano mais influente da Grã-Bretanha, o falecido dr. Zaki Badawi, que ofereceu refúgio em sua própria casa a Salman Rushdie. Sacranie disse a Mueller quanto estava preocupado com as caricaturas dinamarquesas. Mueller também estava preocupado, mas por um motivo diferente: "Temo que a reação ridícula, desproporcional, a alguns desenhos sem graça de um jornal escandinavo obscuro confirme que [...] o islã e o Ocidente são fundamentalmente irreconciliáveis". Sacranie, por sua vez, elogiou os jornais britânicos por não terem reproduzido as caricaturas, e Mueller respondeu ecoando as suspeitas da maior parte do país, de que "a contenção dos jornais britânicos deveu-se menos à sensibilidade em relação ao descontentamento muçulmano e mais ao desejo de não ter suas janelas depredadas". 

Sacranie explicou que "a pessoa do Profeta, que a paz esteja com ele, é profundamente reverenciada no mundo muçulmano, com um amor e uma afeição que palavras não conseguem explicar. Vai além de seus pais, dos entes queridos, dos filhos. Isso faz parte da fé. Também há um ensinamento islâmico de que não se retrata o Profeta". Isso pressupõe, como observou Mueller, 

que os valores do islã têm um trunfo sobre todos os outros — coisa que todo seguidor do islã pressupõe, do mesmo modo como todo seguidor de toda religião acredita que o seu é o único caminho, a verdade e a luz. Se as pessoas querem amar um religioso do século VII mais que a suas próprias famílias, problema delas, mas ninguém é obrigado a levar isso a sério [...] 

Exceto que, se você não levar isso a sério e não lhe destinar o respeito adequado, sofrerá ameaças físicas, numa escala a que nenhuma outra religião aspirou desde a Idade Média. Não dá para não se perguntar por que esse tipo de violência é necessário, considerando que, como observa Mueller: "Se vocês, palhaços, tiverem alguma razão, os cartunistas vão mesmo para o inferno — não basta? Enquanto isso, se vocês quiserem ficar mesmo abalados com afrontas a muçulmanos, leiam os relatórios da Anistia Internacional sobre a Síria e a Arábia Saudita". 

Muita gente já ressaltou o contraste entre a "mágoa" histérica professada pelos muçulmanos e a prontidão com que a imprensa árabe publica charges antijudaicas estereotipadas. Numa manifestação no Paquistão contra as caricaturas dinamarquesas, uma mulher de burca negra foi fotografada carregando um cartaz que dizia "Deus abençoe Hitler". 

Em resposta a todo esse pandemônio, os jornais condenaram a violência e fizeram um pouco de barulho em defesa da liberdade de expressão. Mas ao mesmo tempo manifestaram "respeito" e "solidariedade" pela "ofensa" e pela "mágoa" profundas "sofridas" pelos muçulmanos. A "mágoa" e o "sofrimento" consistiam, lembre-se, não na imposição de qualquer violência ou dor real a uma pessoa: nada mais que alguns traços de tinta impressa num jornal sobre o qual ninguém jamais teria ouvido falar fora da Dinamarca se não fosse por uma campanha deliberada de incitação à desordem. 

Não sou a favor de ofender nem magoar ninguém sem motivo. Mas fico intrigado e espantado com o privilégio desproporcional da religião em nossas sociedades ditas laicas. Todos os políticos têm de se acostumar às caricaturas desrespeitosas de seu rosto, e ninguém faz atos públicos em sua defesa. O que a religião tem de tão especial para que asseguremos a ela um respeito tão privilegiado e singular? Como disse H. L. Mencken: "Devemos respeitar a religião do outro, mas só no mesmo sentido e na mesma proporção com que respeitamos sua teoria de que sua mulher é linda e que seus filhos são inteligentes". 

É sob a luz da pressuposição de respeito pela religião sem paralelos que faço meu aviso sobre este livro. Não farei ofensas gratuitas, mas tampouco usarei luvas de pelica para tratar da religião com mais delicadeza do que trataria qualquer outra coisa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12