sábado, 16 de março de 2024

Deus, um delírio ( gota 7 )

RICHARD DAWKINS

Deus, um delírio
Tradução Fernanda Ravagnani
COMPANHIA DAS LETRAS

4. Por que quase com certeza Deus não existe

Os padres de várias seitas religiosas [...] temem o avanço da ciência como as bruxas temem a chegada da luz do sol, e franzem o cenho para o arauto fatal anunciando as subdivisões dos ludíbrios que defendem. 
Thomas Jefferson 

O BOEING 747 DEFINITIVO

O argumento da improbabilidade é o grande argumento. Em sua forma tradicional, o argumento do design é certamente o mais popular da atualidade a favor da existência de Deus e é encarado, por um número incrivelmente grande de teístas, como completa e absolutamente convincente. Ele é realmente um argumento fortíssimo e desconfio que irrespondível — mas exata-mente na direção contrária da intenção dos teístas. O argumento da improbabilidade, empregado de forma adequada, chega perto de provar que Deus não existe. O nome que dei à demonstração estatística de que Deus quase com certeza não existe é a tática do Boeing 747 Definitivo. 

O nome vem da interessante imagem do Boeing 747 e do ferro-velho, de Fred Hoyle. Não estou certo de que Hoyle a tenha colocado no papel, mas ela foi atribuída a ele por sua colega Chandra Wickramasinghe e presume-se que seja autêntica.58 Hoyle disse que a probabilidade de a vida ter surgido na Terra não é maior que a chance de um furacão, ao passar por um ferro-velho, ter a sorte de construir um Boeing 747. Outras pessoas tomaram a metáfora emprestada para se referir à evolução dos seres mais complexos, onde ela tem uma plausibilidade espúria. A chance de se montar um cavalo, um besouro ou um avestruz plenamente funcionais misturando aleatoriamente suas partes pertence ao mesmo terreno do 747. Esse, em termos muito resumidos, é o argumento favorito dos criacionistas — um argumento que só poderia ter sido pensado por uma pessoa que não entende o essencial da seleção natural: alguém que acha que a seleção natural é uma teoria do acaso, quando — no sentido relevante de acaso — se trata do contrário.

A apropriação equivocada do argumento da improbabilidade pelos criacionistas sempre assume o mesmo formato básico, e não faz nenhuma diferença se o criacionista prefere disfarçá-lo na vestimenta politicamente mais atraente de "design inteligente".* Algum fenómeno — com frequência uma criatura viva ou um de seus órgãos mais complexos, mas pode ser qualquer coisa desde uma molécula até o próprio universo — é corretamente enaltecido como estatisticamente improvável. Às vezes é usada a terminologia da teoria da informação: o darwiniano é desafiado a explicar a fonte de toda a informação da matéria viva, no sentido técnico de conteúdo de informação como medida de improbabi-lidade ou "valor surpresa". Ou o argumento pode invocar o lema banal dos economistas: não existe almoço grátis — e o darwinis-mo é acusado de tentar tirar alguma coisa do nada. Na realidade, como mostrarei neste capítulo, a seleção natural darwiniana é a única solução conhecida para o enigma insolúvel sobre a origem da informação. É a Hipótese de que Deus Existe que tenta tirar alguma coisa do nada. Deus tenta comer seu almoço grátis e também ser o almoço. Por mais estatisticamente improvável que for a entidade que se queira explicar através da invocação de um designer, o próprio designer tem de ser no mínimo tão improvável quanto ela. Deus é o Boeing 747 Definitivo.

O argumento da improbabilidade afirma que coisas complexas não podem ter surgido por acaso. Mas muitas pessoas definem "surgir por acaso" como sinônimo de "surgir na ausência de um design deliberado". Não surpreende, portanto, que elas achem que a improbabilidade seja uma evidência do design. A seleção natural darwiniana mostra quanto isso está errado a respeito da improbabilidade biológica. E, embora o darwinismo possa

* O design inteligente já foi descrito, com bastante deselegância, como o criacionismo num smoking vagabundo.

não ser diretamente relevante para o mundo inanimado — a cosmologia, por exemplo —, ele nos conscientiza a pensar sobre áreas externas ao território original da biologia.

O entendimento profundo do darwinismo nos ensina a desconfiar da afirmação fácil de que o design é a única alternativa para o acaso, e nos ensina a buscar rampas gradativas de uma complexidade que aumente lentamente. Antes de Darwin, filósofos como Hume compreenderam que a improbabilidade da vida não significa que ela necessariamente tenha sido projetada, mas não conseguiram imaginar qual seria a alternativa. Depois de Darwin, todos nós deveríamos desconfiar, no fundo dos ossos, da simples idéia do design. A ilusão do design é uma armadilha que já nos pegou no passado, e Darwin devia nos ter imunizado, conscientizando-nos. Quem dera ele tivesse sido bem-sucedido com todos nós.

A SELEÇÃO NATURAL COMO CONSCIENTIZADORA

Numa nave espacial da ficção científica, os astronautas estavam nostálgicos: "Só imagine que lá na Terra é primavera!". Você pode não enxergar imediatamente o que há de errado, tão impregnado é o chauvinismo inconsciente do hemisfério norte naqueles que moram lá, e até em algumas pessoas que não moram. "Inconsciente" é precisamente correto. E aí que entra a conscientização. Há um motivo mais profundo que apenas um artifício engraçadinho para o fato de que na Austrália e na Nova Zelândia é possível comprar mapas do mundo com o pólo Sul no alto. Que conscientizadores esplêndidos seriam esses mapas, pendurados nas paredes de nossas salas de aula do hemisfério norte! A cada dia, as crianças seriam lembradas de que o "norte" é uma polaridade arbitrária que não detém o monopólio do "alto". O mapa as intrigaria e as conscientizaria. Elas iriam para casa e contariam para os pais — e, aliás, entregar às crianças algo com que elas possam surpreender os pais é um dos maiores presentes que um professor pode dar. 

Foram as feministas que me conscientizaram para o poder da conscientização. O termo "herstory" é obviamente ridículo, no mínimo porque o his de "history" não tem nenhuma ligação etimológica com o pronome masculino his ["dele" — N. T.]. É tão etimologicamente bobo quanto a deposição, em 1999, de uma autoridade de Washington, cujo emprego da palavra niggardly ["de forma mesquinha" — N. T.] foi considerado ofensa racial. Mas até mesmo exemplos idiotas como "niggardly" e "herstory" conseguiram promover a conscientização. Quando passa nosso calafrio filológico e paramos de dar risada, "herstory" nos mostra a história a partir de um ponto de vista diferente. Os pronomes de gênero estão notoriamente na linha de frente desse tipo de conscientização. Ele ou ela deve perguntar a si mesmo ou a si mesma se o senso de estilo dele ou dela vai um dia permitir que ele ou ela escrevam desse jeito. Mas, se conseguirmos deixar de lado a infelicidade imposta à língua, isso nos conscientiza para os sentimentos de metade da raça humana. Homem, humanidade [mankind], os Direitos do Homem, todos os homens foram criados iguais, um homem, um voto — o inglês parece excluir as mulheres com frequência demais.* Quando jovem, nunca me ocorreu que as mulheres pudessem se sentir desprezadas por um termo como "o futuro do homem". Nas décadas que se seguiram, todos nós fomos conscientizados. Mesmo aqueles que ainda usam "homem" em vez de "ser humano" o fazem com um ar de desculpa consciente — ou de truculência, em defesa da linguagem tradicional, até de forma deliberada para irritar as feministas. Todos os participantes do Zeitgeist foram conscientizados, até aqueles que preferiram responder negativamente firmando posição e redobrando a ofensa. 

O feminismo mostra-nos o poder da conscientização, e quero tomar a técnica emprestada para a seleção natural. A seleção natural não só explica a vida toda; ela também nos conscientiza para o poder que a ciência tem para explicar como a complexidade organizada pode surgir de princípios simplórios, sem nenhuma orientação deliberada. A plena compreensão da seleção natural incentiva-nos a avançar corajosamente por outras áreas.

* O latim e o grego clássicos eram mais bem equipados. Homo, do latim (an-thropo - em grego), significa humano, enquanto vir (andro-) significa homem e femina (gyne-) significa mulher. Assim a antropologia pertence a toda a humanidade, enquanto a andrologia e a ginecologia são ramos da medicina sexualmente excludentes.

Ela suscita nossa desconfiança, nessas outras áreas, na espécie de alternativas falsas que um dia, no tempo pré-darwiniano, iludiu a biologia. Quem, antes de Darwin, poderia ter imaginado que algo tão aparentemente projetado quanto a asa de uma libélula ou o olho de uma águia é na verdade o resultado de uma longa sequência de causas não aleatórias, mas puramente naturais?

O relato emocionante e engraçado de Douglas Adams sobre sua conversão ao ateísmo radical — ele insistiu no "radical" para que ninguém o confundisse com um agnóstico — é um testemunho do poder de conscientização do darwinismo. Espero ser perdoado pela auto-indulgência que vai ficar evidente na citação a seguir. Minha desculpa é que a conversão de Douglas por meus livros anteriores — que não saíram para converter ninguém — inspirou-me a dedicar à sua memória este livro — que saiu, sim, para converter! Numa entrevista, reimpressa postumamente em The salmon ofdoubt [O salmão da dúvida], um jornalista perguntou-lhe como ele virou ateu. Ele começou a resposta explicando como virara agnóstico, e continuou: 

E pensei, pensei, pensei. Mas simplesmente não tinha com o que continuar, então não cheguei a uma resolução. Tinha dúvidas enormes quanto à ideia de um deus, mas não sabia o bastante sobre nada para ter um bom modelo de qualquer outra explicação, para, bem, a vida, o universo, e tudo o mais que pudesse colocar em seu lugar. Mas insisti, e continuei lendo e continuei pensando. Em algum ponto por volta dos trinta e poucos anos, tropecei na biologia evolutiva, especialmente na forma dos livros O gene egoísta e depois O relojoeiro cego, de Richard Dawkins, e de repente (acho que na segunda leitura de O gene egoísta) tudo se encaixou. Era um conceito de uma simplicidade impressionante, mas ele fez surgir, naturalmente, toda a infinita e desconcertante complexidade da vida. O maravilhamento que ele me inspirou fez o maravilhamento da experiência religiosa, de que as pessoas tanto falam, parecer francamente tolo. Não hesitaria um segundo em trocar o maravilhamento da ignorância pelo maravilhamento da compreensão.59 

O conceito de impressionante simplicidade de que ele estava falando não tinha, é claro, nada a ver comigo. Era a teoria da evolução pela seleção natural de Darwin — a conscientizadora definitiva. Que saudade, Douglas. Você é meu convertido mais inteligente, mais engraçado, mais cabeça aberta, mais sagaz, mais alto e talvez o único. Minha esperança é que este livro seja do tipo capaz de fazer você rir — embora não tanto quanto você me fez.

O filósofo Daniel Dennett, dono de sabedoria científica, afirmou que a evolução contraria uma das nossas idéias mais antigas: "a ideia de que é necessária uma coisa superinteligente para fazer uma coisa menor. Chamaria isso de teoria gota a gota da criação. Você nunca vai ver uma lança fazendo um fabricador de lança. Nunca verá uma ferradura fazendo um ferreiro. Nunca verá um vaso fazendo um ceramista".60 A descoberta, por Darwin, de um processo viável que faz uma coisa tão contrária à nossa intuição é o que torna sua contribuição ao pensamento humano tão revolucionária, e tão armada com o poder de conscientizar.

É surpreendente quão necessário é esse tipo de conscientização, mesmo na mente de cientistas excelentes em outras áreas que não a biologia. Fred Hoyle foi um físico e cosmólogo brilhante, mas sua compreensão equivocada na teoria do Boeing 747 e outros erros biológicos como sua tentativa de chamar de farsa o fóssil Archaeopteryx sugere que ele precisava ter sido conscientizado por uma boa dose de exposição ao mundo da seleção natural. No nível intelectual, suponho que ele compreendesse a seleção natural. Mas talvez seja necessário ser impregnado de seleção natural, imerso nela, nadar nela, para que se possa realmente apreciar seu poder.

Outros cientistas nos conscientizam de formas diferentes. A própria ciência da astronomia de Fred Hoyle nos coloca em nosso devido lugar, metafórica e literalmente falando, encolhendo nossa vaidade para que ela caiba no minúsculo palco onde representamos nossa vida — nosso pedacinho de detrito de explosão cósmica. A geologia nos faz lembrar da brevidade de nossa existência, tanto como indivíduos quanto como espécie. Ela conscientizou John Ruskin e provocou seu memorável clamor em 1851: "Se pelo menos os geólogos me deixassem em paz, eu ficaria muito bem, mas aqueles terríveis martelos! Ouço o martelar deles ao fim de cada cadência dos versos da Bíblia". A evolução faz a mesma coisa com nosso senso temporal — coisa nada surpreendente, já que ela funciona com base na escala temporal geológica. Mas a evolução darwiniana, especificamente a seleção natural, faz mais que isso. Ela destrói a ilusão do design dentro do domínio da biologia, e nos incita a desconfiar de qualquer hipótese de design também na física e na cosmologia. 

Acho que o físico Leo-nard Susskind tinha isso em mente quando escreveu: "Não sou historiador, mas vou me arriscar a dar uma opinião: a cosmologia moderna começou de verdade com Darwin e Wallace. Como ninguém antes, eles deram explicações para nossa existência que rejeitaram completamente os agentes sobrenaturais [...] Darwin e Wallace estabeleceram um padrão não apenas para as ciências da vida, mas também para a cosmologia".61 Outros cientistas da área da física que estão bem longe de precisar de tal conscientização são Victor Stenger, cujo livro Hás science found God? [A ciência encontrou Deus?] (a resposta é não) recomendo vivamente,* e Peter Atkins, cujo Creation revisited é minha obra favorita de poesia científica em prosa.

Fico permanentemente espantado com aqueles teístas que, longe de ser conscientizados do modo como proponho, parecem louvar a seleção natural como "a maneira como Deus realizou a criação". Eles dizem que a evolução pela seleção natural seria um modo facílimo e divertido de obter um mundo cheio de vida. Deus não precisaria nem fazer nada! Peter Atkins, no livro que acabei de mencionar, leva essa linha de pensamento a uma conclusão sensatamente ateia quando postula um Deus hipoteticamente preguiçoso que tenta fazer o menos possível para criar um universo que contenha a vida. O Deus preguiçoso de Atkins é ainda mais preguiçoso que o Deus deísta do Iluminismo do século xvio: deus otiosus — literalmente Deus ocioso, desocupado, desempregado, supérfluo, inútil. Passo a passo, Atkins consegue reduzir a quantidade de trabalho que o Deus preguiçoso tem de fazer, até que ele finalmente fica sem nada: ele pode nem se dar ao trabalho de existir. Minha memória chega a ouvir o resmungo sagaz de Woody Allen: "Se descobrirmos que Deus existe, não acho que ele seja mau. Mas a pior coisa que se pode dizer dele é que, basicamente, ele é um desperdício de potencial".

 * Veja também seu livro God, the failed hypothesis: How science shows that God does not exist [Deus, a hipótese falsa: como a ciência mostra que Deus não existe], de 2007.

COMPLEXIDADE IRREDUTÍVEL 

É impossível exagerar a magnitude do problema que Darwin e Wallace solucionaram. Eu poderia mencionar a anatomia, a estrutura celular, a bioquímica e o comportamento de literalmente todo organismo vivo como exemplo. Mas os feitos mais impressionantes de evidente design são aqueles escolhidos a dedo — por motivos óbvios — pelos autores criacionistas, e é com uma ironia sutil que extraio meu exemplo de um livro criacionista. Life — How did it get here? [Vida: como chegou aqui], sem autor definido, mas publicado pela Watchtower Bible and Tract Society* em dezesseis idiomas e com 11 milhões de exemplares, é obviamente um dos grandes favoritos, porque nada menos que seis dos 11 milhões de exemplares me foram enviados na forma de presentes não solicitados por simpatizantes do mundo inteiro.

Abrindo uma página aleatória dessa obra anónima e tão difundida, encontramos a esponja conhecida como cesto-de-vê-nus (Euplectella), acompanhada por uma citação de ninguém menos que sir David Attenborough: "Quando se observa um esqueleto complexo de uma esponja como o feito de espículas de sílica conhecido como cesto-de-vênus, a imaginação fica desnorteada. Como podem células microscópicas quase independentes colaborar entre si para secretar 1 milhão de agulhas de vidro e construir uma estrutura tão bela e intricada? Não sabemos". Os autores da Torre da Vigia não perderam tempo e acrescentaram: "Mas de uma coisa nós sabemos: o acaso não deve ter sido o autor". Não mesmo, o acaso não deve ter sido o autor. Isso é algo com que todos concordamos. A improbabilidade estatística de fenômenos como o esqueleto da Euplectella é o problema central que qualquer teoria da vida tem de solucionar. Quanto maior a improbabilidade estatística, menos plausível é o acaso como solução: é isso que improvável significa. Mas as soluções-candidatas para o enigma da improbabilidade não são, como se implica erroneamente, o design e o acaso. Elas são o design e a seleção natural. 

* Sociedade da Torre da Vigia, das Testemunhas de Jeová. A tradução do livro citado não consta da lista de publicações disponíveis no Brasil. (N. T.)

O acaso não é uma solução, considerando os níveis elevadíssimos de improbabilidade que encontramos nos organismos vivos, e nenhum biólogo são jamais sugeriu que ele fosse. O design também não é uma solução real, como veremos mais tarde; mas por enquanto quero continuar demonstrando o problema que qualquer teoria da vida tem de solucionar: o problema de como escapar do acaso.

Virando a página da publicação da Torre da Vigia, encontramos a maravilhosa planta conhecida como angélico (Aristolochia trilobata), com todas aquelas partes que parecem ter sido elegantemente projetadas para capturar insetos, cobri-los de pólen e enviá-los para outro angélico. A intricada elegância da flor faz a Torre da Vigia perguntar: "Tudo isso aconteceu por acaso? Ou aconteceu pelo design inteligente?". Outra vez, é claro que não aconteceu por acaso. Outra vez, o design inteligente não é a alternativa adequada para o acaso. A seleção natural não é apenas uma solução parcimoniosa, plausível e elegante; é a única alternativa viável ao acaso a ter sido sugerida. O design inteligente padece exatamente das mesmas objeções que o acaso. Simplesmente não é uma solução plausível para o enigma da improba-bilidade estatística. E, quanto maior a improbabilidade, mais im-plausível fica o design inteligente. Para o observador atento, o design inteligente revela-se uma duplicação do problema. Mais uma vez, isso acontece porque o/a próprio/a designer já suscita imediatamente o problema maior de sua própria origem. Qualquer entidade capaz de projetar de forma inteligente uma coisa tão improvável quanto o angélico (ou o universo) teria de ser ainda mais improvável que um angélico. Longe de pôr fim à regressão viciosa, Deus a exacerba furiosamente.

Vire outra página da Torre da Vigia para um relato eloquente sobre a sequoia-gigante (Sequoiadendron giganteum), uma árvore pela qual tenho uma afeição especial porque tenho uma em meu quintal — um mero bebezinho, com pouco mais de um século, mas ainda assim a árvore mais alta da vizinhança. "Um homem diminuto de pé na base da sequoia só pode olhar para cima num silencioso assombro com sua grandiosidade. Faz sentido acreditar que a definição da forma desse gigante majestoso e da minúscula semente que acontém não tenha ocorrido pelo design?" Ainda outra vez, se você acha que a única alternativa ao design é o acaso, então não, não faz sentido. Mas novamente os autores omitem qualquer menção à alternativa real, a seleção natural, seja porque genuinamente não a entendem ou porque não querem entendê-la.

O processo através do qual as plantas, seja primulazinhas minúsculas ou sequoias gigantescas, obtêm energia para crescer é a fotossíntese. De novo a Torre da Vigia: '"Existem cerca de setenta reações químicas diferentes envolvidas na fotossíntese', disse um biólogo. 'É um fato realmente milagroso.' As plantas verdes já foram chamadas de as 'fábricas' da natureza — belas, silenciosas, não poluentes, produzindo oxigénio, reciclando a água e alimentando o mundo. Elas simplesmente apareceram por acaso? Pode-se acreditar mesmo nisso?". Não, não se pode; mas a repetição de um exemplo atrás do outro não nos leva a lugar nenhum. A "lógica" criacionista é sempre a mesma. O design é a única alternativa que os autores conseguem imaginar para o acaso. Portanto um projetista deve ser o autor. E a resposta da ciência para essa lógica defeituosa também é sempre a mesma. O design não é a única alternativa ao acaso. A seleção natural é uma alternativa melhor. Na verdade, o design não é nem mesmo uma alternativa de verdade, porque suscita um problema maior do que o que solucionou: quem projetou o projetista? Tanto o acaso como o design fracassam como soluções para o problema da improbabilidade estatística, porque um deles é o problema, e o outro retorna a ele. A seleção natural é a solução verdadeira. É a única solução viável já sugerida. E não é apenas uma solução viável, é uma solução de incrível poder e elegância.
 
O que é que faz a seleção natural ser bem-sucedida como solução para o problema da improbabilidade, para o qual o acaso e o design fracassam já de saída? A resposta é que a seleção natural é um processo cumulativo, que divide o problema da improbabilidade em partículas pequenas. Cada uma das partículas é ligeiramente improvável, mas não definitivamente. Quando grandes números desses fatos ligeiramente improváveis são reunidos em série, o resultado final do acúmulo é mesmo improbabilíssimo, improvável o bastante para estar muito além do alcance do acaso. São esses produtos finais que dão forma aos objetos do argumento cansativamente reciclado pelos criacionistas. O criacionista não enxerga o cerne da questão, porque ele (pelo menos uma vez, as mulheres não deviam se importar por serem excluídas pelo pronome) insiste em tratar a gênese da improbabilidade estatística como um evento único e isolado. Ele não entende o poder do acúmulo

Em A escalada do monte Improvável, manifestei essa questão na forma de uma parábola. Um lado da montanha é um despenhadeiro, impossível de escalar, mas o outro lado é uma encosta de subida amena até o topo. No topo está um dispositivo complexo, como um olho ou um flagelo bacteriano. A idéia absurda de que tamanha complexidade possa se montar sozinha, espontaneamente, é simbolizada por um pulo só, do pé do penhasco até o cume. A evolução, pelo contrário, vai por trás da montanha e pega a subida amena até o topo: fácil! O princípio da comparação entre escalar a encosta amena e pular pelo lado do precipício é tão simples que ficamos tentados a nos espantarmos com o fato de ter demorado tanto para um Darwin aparecer e descobri-lo. Quando ele fez isso, quase dois séculos haviam se passado desde o annus mirabilis de Newton, embora sua realização pareça, pensando bem, ter sido mais difícil que a de Darwin. 

Outra metáfora popular para a improbabilidade extrema é o segredo de um cofre de banco. Teoricamente, um ladrão de banco pode ter sorte e conseguir acertar a combinação dos números por acaso. Na prática, o segredo do cofre é projetado com um tanto de improbabilidade suficiente para aproximar essa hipótese do impossível — quase tão improvável quanto o Boeing 747 de Fred Hoyle. Mas imagine uma tranca de segredo mal projetada, que fosse dando pequenas dicas de forma progressiva — o equivalente ao "está quente" da brincadeira das crianças. Imagine que, quando cada um dos discos se aproximasse da posição correta, a porta do cofre abrisse um pouquinho, e deixasse sair um pouco de dinheiro. O ladrão ia pegar a bolada rapidinho.

Os criacionistas que tentam usar o argumento da improbabilidade a seu favor sempre assumem que a adaptação biológica é uma questão de tudo — acertar na loteria — ou nada. Outro nome para essa falácia é "complexidade irredutível". O olho vê ou não vê. A asa voa ou não voa. Assume-se que não existem intermediários úteis. Mas isso está simplesmente errado. Intermediários assim abundam na prática — exatamente o que deveríamos esperar na teoria. O segredo do cofre da vida é um mecanismo de "está quente, está frio". A vida real busca as encostas de subida amena por trás do monte Improvável, enquanto os criacionistas enxergam apenas o assustador precipício da frente. 

Darwin dedicou um capítulo inteiro de A origem das espécies às "Objeções apresentadas contra a teoria da descendência com modificações", e é razoável dizer que esse curto capítulo previu e descartou cada uma das supostas objeções propostas desde então até os dias atuais. As objeções mais formidáveis são os "órgãos de extrema perfeição e complexidade" de Darwin, que às vezes são erroneamente descritos como "de complexidade irredutível". Darwin destacou o olho como um problema especialmente desafiador: "Supor que o olho, com todos os seus inimitáveis artifícios para ajustar o foco a várias distâncias, para admitir várias quantidades de luz e para corrigir aberrações esféricas e cromáticas, tenha sido formado pela seleção natural parece, confesso abertamente, o grau mais elevado de absurdo". Os criacionistas citam essa frase alegremente, sem parar. Nem é necessário dizer que eles nunca citam sua sequência. A confissão exageradamente aberta de Darwin revela-se um artifício de retórica. Ele estava atraindo seus oponentes para que o golpe, quando viesse, os atingisse em cheio. O golpe, é claro, é a explicação simples de Darwin sobre como de fato o olho evoluiu gradativamente. Darwin pode não ter usado o termo "complexidade irredutível", ou a "gradação suave para subir o monte Improvável", mas de certo compreendia o princípio de ambos. 

"Para que serve meio olho?" e "Para que serve meia asa?" são exemplos do argumento da "complexidade irredutível". Diz-se que uma unidade é irredutivelmente complexa se a remoção de uma de suas partes provocar a interrupção do funcionamento do todo. Assumiu-se que se trata de uma verdade óbvia tanto para olhos quanto para asas. Mas, assim que pensamos um pouco nessas suposições, enxergamos imediatamente a falácia. Um paciente de catarata que tenha tido o cristalino removido cirurgicamente não consegue ver imagens claras sem óculos, mas vê o suficiente para não trombar com uma árvore ou cair num precipício. Meia asa de fato não é tão eficiente quanto uma asa inteira, mas certamente é melhor que asa nenhuma. Meia asa pode salvar sua vida amenizando a queda de cima de uma árvore de determinada altura. E 51% de uma asa pode salvá-lo se você cair de uma árvore um pouquinho mais alta. Seja qual for a fração de asa que você tiver, há uma queda da qual ela o salvaria, e uma asa menor não salvaria. O experimento mental das árvores de diferentes alturas, da qual alguém pode cair, é apenas um modo de enxergar, na teoria, que é preciso haver uma gradação suave de vantagem desde o 1% de asa até o 100%. As florestas estão cheias de animais que planam ou fazem pára-quedismo, ilustrando, na prática, cada passo da subida daquele lado do monte Improvável.

Por analogia com as árvores de diferentes alturas, é fácil imaginar situações em que metade de um olho salvaria a vida de um animal, e 49% de um olho não salvaria. Os múltiplos gradientes são proporcionados por variações nas condições de iluminação, variações na distância da qual se consegue avistar sua presa — ou seus predadores. E, assim como as asas e as superfícies de voo, intermediários plausíveis não são só fáceis de imaginar: eles abundam em todo o reino animal. Um platelminto tem um olho que, por qualquer medida racional, é menos de metade de um olho humano. O Nautilus (e talvez seus primos extintos, os amonites, que dominaram os mares no Paleozoico e no Mesozoico) tem um olho que é intermediário em qualidade entre o do platelminto e o do ser humano. Diferentemente do olho do platelminto, que é capaz de detectar luz e sombra, mas não vê imagens, o olho de "câmera escura" do Nautilus cria uma imagem real; mas é uma imagem borrada e indistinta se comparada com a nossa. Seria de uma precisão espúria dar números aos avanços, mas ninguém pode negar conscientemente que esses olhos de invertebrados, e muitos outros, são bem melhores do que não ter olho nenhum, e todos estão numa subida amena e contínua no monte Improvável, como nossos olhos perto de um pico — não o pico mais elevado, mas um pico elevado. Em A escalada do monte Improvável, dediquei um capítulo inteiro ao olho e outro à asa, demonstrando como foi fácil para eles evoluir através de gradações lentas (ou até, talvez, não tão lentas assim), e vou encerrar o assunto aqui.

Vimos portanto que olhos e asas certamente não são irredutivelmente complexos; mas mais interessantes que esses exemplos específicos é a lição genérica que podemos tirar deles. O fato de que tanta gente esteja tão redondamente enganada a respeito desses casos tão óbvios devia servir para nos alertar para outros exemplos menos óbvios, como as teses celulares e bioquímicas que vêm sendo defendidas por criacionistas que se abrigam sob o eufemismo político de "teóricos do design inteligente".

É uma história que deve servir de exemplo, e ela nos diz o seguinte: não declare que as coisas são irredutivelmente complexas; é bem provável que você não tenha observado os detalhes com o cuidado necessário, ou pensado com o cuidado necessário sobre eles. Por outro lado, nós, do lado da ciência, não devemos ser confiantes e dogmáticos demais. Talvez haja alguma coisa na natureza que realmente objete, por uma complexidade irredutível genuína, o gradiente ameno do monte Improvável. Os criacionistas têm razão em dizer que, se a complexidade irredutível puder ser adequadamente demonstrada, isso arruinará a teoria de Darwin. O próprio Darwin disse isso: "Se fosse demonstrado que qualquer órgão complexo existisse e que ele não pudesse ter sido formado por numerosas, sucessivas e pequenas modificações, minha teoria absolutamente ruiria. Mas não consigo encontrar nenhum caso assim". Darwin não conseguiu encontrar nenhum caso assim, nem ninguém desde os tempos de Darwin, apesar dos esforços extenuantes, desesperados mesmo. Muitos candidatos a esse santo graal do criacionismo já foram sugeridos. Nenhum resistiu à análise. 
 
De qualquer maneira, embora a complexidade irredutível arruinasse a teoria de Darwin se um dia fosse encontrada, por que ela não arruinaria também a teoria do design inteligente? Na verdade, ela arruinou a teoria do design inteligente, pois, como continuo repetindo e repetirei de novo, embora saibamos pouquíssimo sobre Deus, a única coisa de que podemos ter certeza é que ele teria de ser complexíssimo, e de complexidade supostamente irredutível! 

A ADORAÇÃO DAS LACUNAS 

Procurar exemplos específicos de complexidade irredutível é um procedimento fundamentalmente acientífico: um caso especial de argumentação a partir da ignorância atual. É um apelo à mesma lógica defeituosa da estratégia do "Deus das Lacunas", condenada pelo teólogo Dietrich Bonhoeffer. Os criacionistas procuram avidamente uma lacuna no conhecimento ou na compreensão atuais. Se uma aparente lacuna é encontrada, assume-se que Deus, por padrão, deve preenchê-la. O que preocupa teólogos conscientes como Bonhoeffer é que as lacunas diminuem conforme a ciência avança, e Deus fica ameaçado de acabar sem nada para fazer, e sem ter onde se esconder. O que preocupa os cientistas é outra coisa. É uma parte essencial do empreendimento científico admitir a ignorância, até mesmo exultar na ignorância, já que ela é um desafio para conquistas futuras. Como escreveu meu amigo Matt Ridley, "a maioria dos cientistas fica entediada com o que já descobriu. É a ignorância que os impele". Os místicos exultam com o mistério e querem que ele continue misterioso. Os cientistas exultam com o mistério por um motivo diferente: ele lhes dá o que fazer. Em termos mais gerais, como repetirei no capítulo 8, um dos efeitos verdadeiramente negativos da religião é que ela nos ensina que é uma virtude satisfazer-se com o não-entendimento.

Admissões de ignorância e a mistificação temporária são vitais para a boa ciência. É portanto infeliz, para dizer o mínimo, o fato de a principal estratégia dos propagandistas da criação ser a tática negativa de procurar lacunas no conhecimento científico e querer preenchê-las automaticamente com o "design inteligente". O exemplo a seguir é hipotético, mas totalmente típico. Um criacionista diz: "A articulação do cotovelo do sapo-doninha malhado é irredutivelmente complexa. Nenhuma parte dele servia para nada enquanto o conjunto não estivesse montado. Aposto que você não consegue pensar num modo de o cotovelo do sapo-doninha ter evoluído por gradações lentas". Se o cientista não der uma resposta imediata e compreensível, o criacionista tira a conclusão default: "Então, a teoria alternativa, o 'design inteligente', ganha por eliminação". Repare na lógica tendenciosa: se a teoria A falha em algum particular, a teoria B tem de estar certa. Não é preciso nem dizer que o argumento não funciona no sentido inverso. Somos estimulados a pular para a teoria-padrão sem nem mesmo prestar atenção para ver se ela não falha exatamente no mesmo ponto que a teoria que ela substitui. O design inteligente ganha um passe livre incondicional, uma imunidade encantada às exigências rigorosas feitas à evolução. Mas o ponto que defendo agora é que a trama criacionista questiona o regozijo natural do cientista — necessário mesmo — com a incerteza (temporária). Por motivos puramente políticos, o cientista de hoje em dia pode hesitar antes de dizer: "Hum, interessante essa tese. Fico imaginando como aconteceu realmente a evolução da articulação do cotovelo nos ancestrais do sapo-doninha. Não sou especialista em sapos-doninha, terei de ir até a biblioteca da universidade para dar uma olhada. Talvez dê um projeto interessante para um aluno de pós-graduação". No minuto em que um cientista disser alguma coisa parecida com isso — e muito antes que o aluno comece a trabalhar no projeto —, a conclusão-padrão virara manchete de um panfleto criacionista: "Sapo-doninha só pode ter sido projetado por Deus". 

Existe, portanto, uma ligação infeliz entre a necessidade metodológica da ciência de buscar áreas de ignorância para definir seus alvos de pesquisas e a necessidade do design inteligente de buscar áreas de ignorância para reivindicar a vitória por eliminação. É exatamente o fato de o design inteligente não dispor de provas de si mesmo, mas florescer nas lacunas deixadas pelo conhecimento científico, que cria o desconforto na necessidade da ciência de identificar e declarar as mesmíssimas lacunas como prelúdio para pesquisá-las. Nesse aspecto, a ciência alia-se a teólogos sofisticados como Bonhoeffer, unidos contra os inimigos da teologia ingênua e populista e da teologia das lacunas, do design inteligente.

O caso de amor dos criacionistas com as "lacunas" dos registros fósseis simboliza toda a teologia das lacunas. Uma vez abri um capítulo sobre a chamada explosão cambriana com a frase: "É como se os fósseis tivessem sido plantados lá sem nenhum histórico evolutivo". Mais uma vez, tratava-se de uma abertura retórica, com a intenção de estimular o apetite do leitor para a explicação completa que vinha em seguida. Retrospectivamente, constato com tristeza como era previsível que minha explicação paciente seria removida e minha abertura seria alegremente citada fora de contexto. Os criacionistas adoram as "lacunas" dos registros fósseis, do mesmo modo como adoram lacunas em geral. 

Muitas transições evolutivas estão elegantemente documentadas por séries mais ou menos contínuas de fósseis intermediários com alterações gradativas. Algumas não estão, e são essas as famosas "lacunas". Michael Shermer apontou com perspicácia que, se uma nova descoberta de fóssil aparece para ocupar o meio de uma "lacuna", os criacionistas declaram que agora há o dobro de lacunas! De qualquer maneira, perceba de novo o uso do automatismo. Se não há fósseis para documentar uma transição evolutiva postulada, a conclusão automática é que não há transição evolutiva, portanto Deus tem de ter intervindo.

 É totalmente ilógico exigir documentação completa de cada passo de qualquer narrativa, seja na evolução, seja em qualquer outra ciência. Ê como exigir, antes de condenar alguém por assassinato, um registro cinematográfico completo de cada passo do assassino até o crime, sem nenhum quadro faltando. Só uma fração minúscula dos corpos fossiliza-se, e temos sorte de ter tantos fósseis intermediários. Seria bastante provável não termos fóssil nenhum, e ainda assim as evidências da evolução provenientes de outras fontes, como a genética molecular e a distribuição geográfica, seriam incrivelmente contundentes. Por outro lado, a evolução professa que, se um único fóssil aparecesse no estrato geológico errado, a teoria cairia por terra. Quando desafiado por um popperiano zeloso a dizer como a evolução poderia ser desmentida, J. B. S. Haldane retrucou: "Fósseis de coelho no Pré-cambriano". Nenhum fóssil anacrônico como esse jamais foi encontrado, apesar das lendas desacreditadas de criacionistas sobre crânios humanos do Carbonífero e pegadas humanas entremeadas com as de dinossauros.

As lacunas, pelo padrão da cabeça dos criacionistas, são preenchidas por Deus. A mesma coisa se aplica a todos os precipícios aparentes do maciço do monte Improvável, onde a subida gradual não está imediatamente óbvia ou então é ignorada. As áreas onde há escassez de dados, ou de entendimento, são automaticamente atribuídas a Deus. O recurso apressado à declaração dramática da "complexidade irredutível" demonstra um fracasso imaginativo. Algum órgão biológico, quando não um olho, o flagelo bacteriano ou uma via bioquímica, é decretado, sem mais, irredutivelmente complexo. Nenhuma tentativa se faz para demonstrar a complexidade irredutível. Apesar das explicações sobre o olho, a asa e muitas outras coisas, cada novo candidato ao duvidoso título é considerado de uma complexidade irredutível transparente e óbvia, e seu status é declarado por decreto. Mas pense nisso. Como a complexidade irredutível está sendo usada como argumento para o design, ela não devia ser afirmada por decreto, como é o próprio design. É como simplesmente afirmar que o sapo-doninha (besouro-bombardeiro etc.) demonstra o design, sem nenhum outro argumento ou justificativa. Não é assim que se faz ciência. 

A lógica revela-se tão convincente quanto a seguinte afirmação: "Eu [insira o nome] não consigo, pessoalmente, pensar em nenhuma maneira pela qual [insira o fenômeno biológico] possa ter sido construído passo a passo. Portanto ele é irredutivelmente complexo. Isso significa que ele foi projetado". Basta dizer isso para ver que o argumento é vulnerável à possibilidade de algum cientista aparecer e encontrar um intermediário; ou pelo menos imaginar um intermediário plausível. Mesmo que nenhum cientista dê uma explicação, é simplesmente uma lógica de má qualidade assumir que o "design" se sairia melhor. O raciocínio que sustenta a teoria do "design inteligente" é preguiçoso e derrotista — o clássico raciocínio do "Deus das Lacunas". Já o apelidei, no passado, de Argumento da Incredulidade Pessoal.

Imagine que você esteja assistindo a um truque de mágica excelente. O celebrado duo de ilusionistas Penn e Teller tem um número em que eles parecem atirar um no outro, com pistolas, simultaneamente, e cada um deles parece ter pegado a bala com os dentes. São tomadas precauções elaboradas para fazer marcas de identificação nas balas antes de elas serem colocadas nas armas, o procedimento inteiro é testemunhado de perto pelo público, experiente em armas de fogo, e aparentemente todas as possibilidades de truque são eliminadas. A bala marcada de Teller acaba aparecendo na boca de Penn, e a bala marcada de Penn acaba aparecendo na de Teller. Eu [Richard Dawkins] não consigo absolutamente pensar em nenhuma maneira pela qual isso possa ser um truque. O Argumento da Incredulidade Pessoal berra das profundezas dos meus centros cerebrais pré-científicos e quase me compele a dizer: "Tem de ser um milagre. Não há explicação científica. Tem de ser sobrenatural". Mas a vozinha da educação científica diz outra coisa. Penn e Teller são ilusionistas famosos no mundo todo. Há uma explicação totalmente cabível. Mas sou ingênuo demais, ou pouco observador e pouco criativo demais para pensar nela. Essa é a resposta normal para um truque. Também é a resposta certa para um fenômeno biológico que pareça ser irredutivelmente complexo. As pessoas que partem da estupefação pessoal com um fenômeno natural direto para a invocação apressada do sobrenatural não são melhores que os tolos que vêem um ilusionista dobrando uma colher e assumem que se trata de um "paranormal". 

Em seu livro Seven clues to the origin oflife [Sete pistas para a origem da vida], o químico escocês A. G. Cairns-Smith dá outra explicação, usando a analogia de um arco. Um arco de pedras soltas, sem argamassa, mas que fica de pé, pode ser uma estrutura estável, mas é irredutivelmente complexo: ele desaba se qualquer pedra for retirada. Como, então, ele foi construído? Uma maneira é juntar uma pilha sólida de pedras e depois retirar com cuidado as rochas, uma a uma. Em termos mais gerais, há muitas estruturas que são irredutíveis no sentido de que não conseguem sobreviver à subtração de qualquer uma de suas partes, mas que foram construídas com a ajuda de andaimes que depois foram subtraídos e que já não são visíveis. Uma vez que a estrutura tenha sido concluída, o andaime pode ser retirado com segurança e a estrutura permanece de pé. Na evolução, também, o órgão ou estrutura que se observa pode ter tido um andaime num ancestral, que depois foi removido.

A "complexidade irredutível" não é uma ideia nova, mas o termo em si foi inventado pelo criacionista Michael Behe em 1996.62 Pertence a ele o crédito (se é que crédito é a palavra) pela transferência do criacionismo para uma nova área da biologia: a bioquímica e a biologia celular, que ele achou que talvez fossem um terreno mais profícuo para lacunas que olhos ou asas. Sua melhor abordagem para um bom exemplo (que ainda é ruim) foi o motor do flagelo bacteriano.

O flagelo bacteriano é um prodígio da natureza. Ele é o único exemplo conhecido, externo à tecnologia humana, de um eixo de rotação livre. Rodas para animais de grande porte seriam, suspeito eu, exemplos genuínos de complexidade irredutível, e é provavelmente por isso que elas não existem. Como os nervos e vasos sanguíneos passariam pela biela?* O flagelo é um propulsor bem fino, com o qual a bactéria escava seu caminho através da água. Digo "escava" e não "nada" porque, na escala bacteriana de existência, um líquido como a água não seria percebido como nós percebemos um líquido. Seria mais parecido com um melado, uma gelatina, ou até mesmo areia, e a bactéria pareceria cavar ou rodar como um parafuso pela água, em vez de nadar. Diferentemente dos chamados flagelos de organismos maiores como os protozoários, o flagelo bacteriano não se mexe só como um chicote, ou como um remo. Ele possui um eixo verdadeiro e rotativo, que gira continuamente dentro de uma biela, impulsionado por um motor molecular incrivelmente pequeno. No nível molecular, o motor usa basicamente o mesmo princípio que um músculo, mas em rotação livre, em vez de em contração intermitente.** Ele vem sendo fagueiramente descrito como um minúsculo motor externo (embora pelos padrões da engenharia — e de modo incomum para um mecanismo biológico — seja um motor de uma ineficiência espetacular).  

Sem nenhuma palavra de justificativa, explicação ou amplificação, Behe simplesmente proclama o motor flagelar bacteriano como irredutivelmente complexo. Como ele não oferece nenhum argumento a favor de sua declaração, podemos começar desconfiando de uma falha imaginativa. Ele alega que a literatura biológica especializada ignorou o problema. A falsidade dessa alegação

* Há um exemplo na ficção. O autor de livros infantis Philip Pullman, em His dark materiais [Os utensílios obscuros dele], imagina uma espécie de animal, a "mulefa", que coexiste com árvores que produzem frutos perfeitamente redondos com um buraco no meio. Esses frutos a mulefa adota como rodas. As rodas, como não são parte do corpo, não têm nervos nem vasos sanguíneos que fiquem enrolados em torno do "eixo" (um pedaço sólido de chifre ou osso). Pullman ressalta, de forma perspicaz, um outro ponto: o sistema só funciona porque o planeta é recoberto de faixas de basalto, que servem de "estradas". Rodas não adiantam muito em terrenos acidentados. 
** De maneira fascinante, o princípio do músculo é empregado ainda de uma terceira forma em alguns insetos como as moscas, as abelhas e os besouros, em que o músculo do voo é intrinsecamente oscilante, como um motor alternativo. Enquanto outros insetos, como os gafanhotos, enviam instruções nervosas para cada batida de asa (como faz o pássaro), as abelhas enviam uma instrução para ligar (ou desligar) o motor oscilante. As bactérias possuem um mecanismo que não é nem um contrator simples (como o músculo do voo de um pássaro) nem um alternador (como o músculo de voo da abelha), mas um verdadeiro rotor. nesse sentido, ele é como um motor elétrico, ou um motor Wankel.

foi maciça e embaraçosamente (para Behe) documentada no tribunal do juiz John E. Jones, na Pensilvânia, em 2005, onde Behe depôs como testemunha especialista a favor de um grupo de criacionistas que tinha tentado impor o "design inteligente" ao currículo de ciências de uma escola pública local — uma medida de "estupidez de tirar o fôlego", para citar o juiz Jones (frase e homem certamente destinados à fama duradoura). Essa não foi a única vergonha a que Behe foi submetido na audiência, como veremos.

O essencial para comprovar a complexidade irredutível é demonstrar que nenhuma das partes poderia ter sido útil de forma isolada. Todas elas precisariam estar no lugar para que qualquer uma delas tivesse alguma utilidade (a analogia favorita de Behe é uma ratoeira). Na verdade, os biólogos moleculares não têm dificuldade de encontrar partes que funcionem fora do todo, tanto para o flagelo bacteriano como para outros exemplos de Behe de suposta complexidade irredutível. Esse ponto é bem explicado por Kenneth Miller, da Universidade Brown, para mim a nême-se mais convincente do "design inteligente", principalmente pelo fato de ele ser um cristão devoto. Recomendo com frequência o livro de Miller, Finding Darwins Goa [Encontrando o Deus de Darwin], a pessoas religiosas que me escrevem depois de terem sido iludidas por Behe.

No caso do rotor bacteriano, Miller chama a nossa atenção para um mecanismo chamado Sistema de Secreção Tipo Três (ssir).63 O SSTT não é usado para o movimento rotativo. É um dos vários sistemas usados por bactérias parasitas para emitir substâncias tóxicas através de suas paredes celulares para envenenar o organismo hospedeiro. Em nossa escala humana, podemos pensar em um líquido sendo derramado ou espirrado por um buraco; mas, mais uma vez, na escala bacteriana as coisas têm um aspecto diferente. Cada molécula de substância secretada é uma proteína grande com uma estrutura definida e tridimensional, da mesma escala da própria estrutura do SSTT: mais como uma escultura sólida que como um líquido. Cada molécula é lançada individualmente através de um mecanismo meticulosamente moldado, como uma máquina de venda automática que liberasse, por exemplo, brinquedos e garrafas, e não apenas um simples buraco pelo qual a substância "fluiria". A máquina em si é feita de um número bem pequeno de moléculas de proteína, cada qual comparável, no tamanho e na complexidade, às moléculas que estão sendo secretadas por ela. O interessante é que essas máquinas de venda automática são muitas vezes semelhantes em bactérias que não têm relações próximas entre si. É provável que o genes para produzi-la tenham sido "copiados e colados" de outras bactérias: uma coisa que as bactérias fazem incrivelmente bem, e que é um tópico fascinante por si só, mas preciso seguir em frente.

As moléculas de proteína que formam a estrutura do SSTT são muito semelhantes aos componentes do rotor flagelado. Para um evolucionista, fica claro que componentes do SSTT foram convocados para uma nova — embora não totalmente independente — função quando o motor bacteriano evoluiu. Como o SSTT movimenta moléculas através de si mesmo, não surpreende que ele use uma versão rudimentar do princípio usado pelo motor bacteriano, que movimenta as moléculas do eixo para fazê-lasrodar. É evidente que componentes cruciais do motor do flagelo bacteriano já estavam no lugar e funcionando antes de o motor do flagelo ter evoluído. A convocação de mecanismos existentes é um caminho óbvio pelo qual uma peça de aparente complexidade irredutível pode escalar o monte Improvável.

Ainda há muito trabalho a fazer, é claro, e tenho certeza de que ele será feito. Esse trabalho jamais seria feito se os cientistas ficassem satisfeitos com um padrão preguiçoso como o estimulado pela "teoria do design inteligente". Esta é a mensagem que um "teórico" imaginário do design inteligente poderia transmitir aos cientistas: "Se vocês não entendem como uma coisa funciona, não tem problema: simplesmente desistam e digam que Deus a criou. Vocês não sabem como o impulso nervoso funciona? Tudo bem! Não entendem como as lembranças são depositadas no cérebro? Excelente! A fotossíntese é um processo desconcertante-mente complexo? Maravilha! Por favor não saiam trabalhando em cima do problema, apenas desistam e apelem a Deus. Caro cientista, não estude seus mistérios. Traga seus mistérios a nós, pois podemos usá-los. Não desperdice a ignorância preciosa pesquisando por aí. Precisamos dessas gloriosas lacunas para o último refúgio de Deus". Santo Agostinho disse de forma bem clara: "Existe outra forma de tentação, ainda mais cheia de perigo. É a doença da curiosidade. É ela que nos leva a tentar descobrir os segredos da natureza, segredos que estão além de nossa compreensão, que nada nos podem dar e que nenhum homem deveria querer descobrir" (citado em Freeman, 2002). 

Outro dos exemplos favoritos de Behe de suposta "complexidade irredutível" é o sistema imunológico. Que o próprio juiz Jones assuma a palavra: 

De fato, ao ser interrogado pelo outro lado, o professor Behe foi questionado sobre sua alegação, feita em 1996, de que a ciência jamais encontraria uma explicação evolutiva para o sistema imune. Ele foi colocado diante de 58 publicações avaliadas por pares acadêmicos, nove livros e vários capítulos sobre imunologia de livros didáticos a respeito da evolução do sistema imunológico; no entanto ele simplesmente insistiu que isso ainda não era evidência suficiente da evolução, e que não era "bom o bastante".

Behe, ao ser interrogado por Eric Rothschild, advogado-chefe dos querelantes, foi obrigado a admitir que não tinha lido a maioria daqueles 58 trabalhos acadêmicos. O que não surpreende, já que a imunologia é difícil. Menos perdoável é o fato de Behe ter desqualificado essas pesquisas, chamando-as de "estéreis". Elas certamente são estéreis se seu objetivo é fazer propaganda para leigos ingênuos e políticos, em vez de descobrir verdades importantes sobre o mundo real. Depois de ouvir Behe, Rothschild resumiu de modo eloquente aquilo que qualquer pessoa honesta deve ter sentido naquele tribunal: 

Por sorte existem cientistas que pesquisam em busca de respostas para a pergunta sobre a origem do sistema imunológico [...] Ele é nossa defesa contra doenças debilitantes e fatais. Os cientistas que escreveram esses livros e artigos trabalham no escuro, sem direitos autorais nem palestras remuneradas. Seu empenho nos ajuda a combater e curar condições médicas graves. O professor Behe e todo o movimento do design inteligente, pelo contrário, não estão fazendo nada para obter avanços no conhecimento científico ou médico, e estão dizendo às gerações futuras de cientistas: não liguem para isso.64

Como disse o geneticista americano Jerry Coyne na resenha do livro de Behe, "se a história da ciência nos mostra alguma coisa, é que não chegamos a lugar nenhum ao chamar nossa ignorância de 'Deus'". Ou, nas palavras de um blogger eloquente, que comentava um artigo sobre design inteligente escrito por Coyne e por mim e publicado no The Guardian,

Por que Deus é considerado explicação para tudo? Ele não é — é a não-explicação, o dar de ombros, um "sei lá" enfeitado de espiritualidade e rituais. Se alguém atribui alguma coisa a Deus, geralmente isso quer dizer que ele não faz a menor ideia, por isso está atribuindo a coisa a uma fada celeste inalcançável e incognoscível. Peça uma explicação sobre de onde veio aquele cara, e são grandes as chances de você receber uma resposta vaga e pseudofílosófica dizendo que ele sempre existiu, ou que não pertence à natureza. O que, é claro, não explica nada.65

O darwinismo nos conscientiza de outras maneiras. Órgãos evoluídos, quase sempre tão elegantes e eficientes, também demonstram falhas reveladoras — exatamente como seria de esperar se eles tivessem um histórico evolutivo, e exatamente como não seria de esperar se eles tivessem sido projetados. Já discuti exemplos em outros livros: o recorrente nervo laríngeo, que denuncia seu histórico evolutivo com um enorme e inútil desvio até seu destino. Muitos de nossos males humanos, da dor lombar às hérnias, de prolapsos de útero à nossa suscetibilidade a infecções respiratórias, resultam diretamente do fato de que hoje caminhamos eretos, com um corpo que foi moldado ao longo de centenas de milhões de anos para caminhar sobre quatro patas. Também somos conscientizados pela crueldade e pelo desperdício da seleção natural. Os predadores parecem ter sido lindamente "projetados" para capturar suas presas, enquanto as presas parecem tão lindamente "projetadas" quanto para escapar deles. De que lado Deus está?66

O PRINCÍPIO ANTRÓPICO: VERSÃO PLANETÁRIA 

Os teólogos lacunares que desistem de olhos e asas, flagelos bacterianos e sistemas imunológicos freqüentemente depositam suas últimas esperanças na origem da vida. A raiz da evolução na química não biológica parece, de alguma forma, representar uma lacuna maior que qualquer outra transição específica durante a evolução subseqüente. E, de certa maneira, realmente é uma lacuna maior. Essa maneira é bastante específica, e não oferece nenhum consolo aos apologistas da religião. A origem da vida só teve que acontecer uma vez. Portanto podemos permitir que ela tenha sido um evento altamente improvável, muitas ordens de magnitude mais improvável que a maioria das pessoas imagina, como mostrarei. Os passos evolutivos subsequentes foram duplicados, de formas mais ou menos semelhantes, por milhões e milhões de espécies de modo independente, contínua e repetidamente ao longo do tempo geológico. Para explicar a evolução da vida complexa, portanto, não podemos recorrer ao mesmo tipo de raciocínio estatístico que podemos aplicar na origem da vida. Os eventos que constituem a evolução ordinária, distintos de sua origem singular (e talvez alguns casos especiais), não podem ter sido muito improváveis.

Essa distinção pode parecer confusa, e preciso explicá-la melhor, usando o chamado princípio antrópico. O princípio antrópico foi balizado assim pelo matemático Brandon Cárter em 1974 e ampliado pelos físicos John Barrow e Frank Tipler em seu livro sobre o assunto.67 O argumento antrópico costuma ser aplicado ao cosmos, e vou chegar a tal. Mas vou apresentar a ideia numa escala menor, planetária. Existimos aqui, na Terra. Portanto a Terra tem de ser o tipo de planeta que é capaz de nos gerar e nos sustentar, não importa quão incomum seja esse tipo de planeta. Por exemplo, nosso tipo de vida não consegue sobreviver sem a água em estado líquido. Os exobiólogos que procuram evidências da vida extraterrestre estão vasculhando os céus, na prática, em busca de sinais de água. Em torno de uma estrela típica como nosso Sol, existe uma zona chamada de "Cachinhos Dourados"* — nem quente demais nem fria demais, na temperatura certa — para os planetas com água no estado líquido. Uma estreita faixa de órbitas fica entre aquelas que ficam longe demais da estrela, onde a água congela, e as que ficam perto demais, onde ela ferve.

Supõe-se, também, que uma órbita adequada à vida tenha de ser próxima de circular. Uma órbita elíptica em excesso, como a do recém-descoberto planeta-anão conhecido informalmente como Xena, permitiria no máximo uma passagem-relâmpago pela zona Cachinhos Dourados uma vez por década ou por século (da Terra). Xena na verdade nem entra na zona Cachinhos Dourados, mesmo no ponto mais próximo ao Sol de sua órbita, que ele atinge 

* "Goldilocks". (N. T.)

uma vez a cada 560 anos da Terra. A temperatura do cometa Halley varia entre cerca de 47 °C no periélio e 270 °C negativos no afélio. A órbita da Terra, assim como a de todos os planetas, é tecnicamente uma elipse (está mais perto do Sol em janeiro e mais distante em julho);** mas um círculo é um caso especial de elipse, e a órbita da Terra é tão próxima de ser circular que ela nunca se afasta da zona Cachinhos Dourados. A situação da Terra no sistema solar é propícia também de outras formas que a destacaram para a evolução da vida. O enorme aspirador gravitacional que é Júpiter está no lugar certo para interceptar asteroides que poderiam nos ameaçar com uma colisão letal. A Lua única e relativamente grande da Terra serve para estabilizar nosso eixo de rotação,68 e ajuda a estimular a vida de várias outras maneiras. Nosso Sol é incomum por não ser binário, preso numa órbita mútua com outra estrela. É possível estrelas binárias terem planetas, mas suas órbitas tendem a ser caóticas e variáveis demais para incentivar a evolução da vida.

Duas explicações principais foram sugeridas para a amistosidade peculiar de nosso planeta à vida. A teoria do design diz que Deus criou o mundo, colocou-o na zona Cachinhos Dourados e estabeleceu deliberadamente todos os detalhes em nosso benefício. A abordagem antrópica é bem diferente, e tem um leve ar darwiniano. A grande maioria dos planetas do universo não está nas zonas Cachinhos Dourados de suas respectivas estrelas, e não é adequada à vida. Em nenhum planeta dessa maioria há vida. Por menor que seja a minoria de planetas com as condições certas para a vida, necessariamente temos de estar em um que pertença a essa minoria, porque estamos aqui pensando no problema.

É um fato estranho, aliás, o de que os apologistas da religião adorem o princípio antrópico. Por algum motivo que não faz absolutamente nenhum sentido, eles acham que isso sustenta a tese deles. A verdade é exatamente o contrário. O princípio antrópico, assim como a seleção natural, é uma alternativa à hipótese do design. Ele provê uma explicação racional, sem nada de design, para o fato de nos encontrarmos numa situação propícia à nossa 

** Se você fica surpreso com isso, pode estar sofrendo da síndrome do chauvinismo do hemisfério norte, como descrito na página 157.

existência. Acho que a confusão aparece na cabeça dos religiosos porque o princípio antrópico só é mencionado dentro do contexto do problema que ele soluciona, isto é, o fato de que vivemos em um lugar adequado à vida. O que a cabeça religiosa não percebe é que há duas candidatas a solução para o problema. Deus é uma. O princípio antrópico é a outra. Elas são alternativas entre si.

A água em estado líquido é uma condição necessária para a vida da forma como a conhecemos, mas está longe de ser suficiente. A vida ainda tem de se originar na água, e a origem da vida pode ter sido uma acontecimento altamente improvável. A evolução darwiniana prossegue faceiramente depois que a vida se origina. Mas como a vida começou? A origem da vida foi o evento químico, ou a série de eventos, através dos quais as condições vitais para a seleção natural surgiram pela primeira vez. O principal ingrediente foi a hereditariedade, seja o DNA ou (mais provavelmente) alguma coisa que faz cópias como o DNA, mas com menos precisão, talvez seu primo, o RNA. Uma vez que o ingrediente vital — algum tipo de molécula genética — está no lugar certo, a seleção natural darwiniana pode acontecer, e a vida complexa emerge como conseqüência. Mas o surgimento espontâneo, por acaso, da primeira molécula hereditária é considerado improvável por muita gente. Talvez seja — improbabilíssimo, e tratarei disso, pois é um ponto central para esta parte do livro.

A origem da vida é um objeto de pesquisa pródigo, embora especulativo. A especialidade necessária para tal é a química, que não é a minha. Acompanho-a à distância com curiosidade, e não ficarei surpreso se, daqui a poucos anos, os químicos anunciarem que conseguiram parir uma nova origem da vida em laboratório. Mas isso ainda não aconteceu, e ainda é possível sustentar que a probabilidade de que isso aconteça seja, como sempre foi, baixíssima — embora tenha mesmo acontecido uma vez!

Assim como fizemos com as órbitas Cachinhos Dourados, podemos afirmar que, por mais improvável que seja a origem da vida, sabemos que ela aconteceu na Terra porque estamos aqui. Assim como com a temperatura, há duas hipóteses para explicar o que aconteceu — a hipótese do design e a hipótese científica ou "antrópica". A abordagem que defende o design postula um Deus que produziu um milagre deliberado, lançando o fogo divino sobre o caldo prebiótico e lançando o DNA, ou alguma coisa equivalente, em sua grandiosa carreira. 

Novamente, assim como com Cachinhos Dourados, a alternativa antrópica à hipótese do design é estatística. Os cientistas invocam a mágica dos números enormes. Já se estimou que haja entre 1 bilhão e 30 bilhões de planetas em nossa galáxia, e cerca de 100 bilhões de galáxias no universo. Eliminando alguns zeros por mera prudência, 1 bilhão de bilhões é uma estimativa conservadora do número de planetas disponíveis no universo. Suponha que a origem da vida, o surgimento espontâneo de alguma coisa equivalente ao DNA, realmente seja um evento incrivelmente improvável. Suponha que seja tão improvável que aconteça em apenas um entre 1 bilhão de planetas. Uma instituição de financiamento de pesquisas riria na cara de qualquer químico que admitisse que a chance de sua pesquisa ser bem-sucedida fosse de uma em cem. Mas cá estamos nós, falando de probabilidades de uma em 1 bilhão. Mesmo assim... mesmo com probabilidades tão absurdamente escassas, a vida ainda teria surgido em 1 bilhão de planetas — entre os quais está, é claro, a Terra.69

A conclusão é tão surpreendente que vou repeti-la. Se a probabilidade de a vida surgir espontaneamente num planeta fosse de uma em um bilhão, mesmo assim esse evento embasbacadoramente improvável teria acontecido em l bilhão de planetas. A chance de encontrar qualquer um entre esse 1 bilhão de planetas remete ao provérbio da agulha no palheiro. Mas não temos de sair por aí procurando uma agulha porque (de volta ao princípio antrópico) qualquer ser capaz de procurar precisa estar exatamente dentro de uma dessas prodigiosas agulhas, mesmo antes de dar início à busca.

Qualquer afirmação de probabilidade é feita dentro do contexto de um determinado nível de ignorância. Se não soubermos nada sobre um planeta, podemos postular as chances de a vida surgir como, digamos, de uma em 1 bilhão. Mas se importarmos algumas hipóteses novas para nossa estimativa, as coisas mudam.

Um planeta em particular pode ter algumas propriedades peculiares, talvez um perfil especial de abundância de elementos em suas rochas, que alterem as chances em favor do surgimento da vida. Alguns planetas, em outras palavras, são mais "terrestres" que outros. A própria Terra, é claro, é especialmente "terrestre"! Isso deveria animar nossos químicos que tentam recriar o evento no laboratório, pois reduziria as probabilidades adversas a seu sucesso. Mas meu cálculo inicial demonstrou que até mesmo um modelo químico com chances de sucesso tão baixas como de uma em 1 bilhão ainda assim prevê que a vida surgiria em 1 bilhão de planetas no universo. E a beleza do princípio antrópico é que ele nos diz, contrariando nossa intuição, que um modelo químico só precisa prever que a vida vá surgir em um planeta entre 1 bilhão de bilhões para nos dar uma boa e totalmente satisfatória explicação para a presença da vida aqui. Nem por um momento acredito que a origem da vida tenha sido tão improvável assim na prática. Acho que definitivamente vale a pena gastar dinheiro tentando reproduzir o evento em laboratório e — na mesma moeda — no programa SETI, porque acho provável que exista vida inteligente em outro lugar.

Mesmo aceitando a estimativa mais pessimista para a probabilidade de que a vida possa surgir espontaneamente, esse argumento estatístico demole completamente qualquer sugestão de que devamos postular o design para preencher a lacuna. De todas as lacunas visíveis na história evolutiva, a lacuna da origem da vida pode parecer intransponível para cérebros calibrados para avaliar probabilidade e risco na escala das coisas do dia-a-dia: a escala que as instituições fomentadoras de pesquisa usam para avaliar os projetos submetidos pelos químicos. Mesmo assim, até uma lacuna tão grande como essa é facilmente preenchida pela ciência informada em termos de estatística, enquanto as mesmíssimas regras estatísticas da ciência descartam um criador divino no sentido do 747 Definitivo, que conhecemos previamente.

Mas voltemos agora à interessante questão que iniciou esta parte do livro. Suponha que alguém tente explicar o fenômeno genérico da adaptação biológica ao longo das mesmas linhas que acabamos de aplicar à origem da vida: apelando a um número imenso de planetas disponíveis. O fato observado é que toda espécie, assim como todo órgão que já tenha sido visto dentro de cada espécie, é boa no que faz. As asas de pássaros, abelhas e morcegos voam bem. Os olhos enxergam bem. As folhas fazem fotossíntese bem. Vivemos num planeta cercados por talvez 10 milhões de espécies, cada uma com uma ilusão poderosa de um aparente design. Cada espécie encaixa-se bem em seu estilo específico de vida. Não poderíamos nos safar com o argumento dos "números imensos de planetas" para explicar todas essas ilusões diferentes de design? Não, não poderíamos, repito, não. Nem pense nisso. Isso é importante, pois toca no cerne de um dos equívocos mais graves na compreensão do darwinismo.

Independentemente de com quantos planetas estejamos lidando, o acaso jamais seria suficiente para explicar a luxuriante diversidade de organismos complexos na Terra do mesmo modo que o utilizamos para explicar a existência da vida aqui. A evolução da vida é um caso completamente diferente do da origem da vida, porque, repetindo, a origem da vida foi (ou pode ter sido) um evento singular, que teve que acontecer apenas uma vez. A adaptação das espécies a seus diversos ambientes, por outro lado, ocorreu milhões de vezes, e continua ocorrendo.

Está claro que aqui na Terra estamos lidando com um processo generalizado para a otimização das espécies biológicas, um processo que funciona em todo o planeta, em todos os continentes e ilhas, e em todos os momentos históricos. Podemos prever com segurança que, se esperarmos mais 10 milhões de anos, um conjunto totalmente novo de espécies estará tão bem adaptado a seu estilo de vida quanto as espécies atuais são adaptadas ao estilo delas. É um fenômeno recorrente, previsível e múltiplo, não um caso de sorte estatística reconhecido retrospectivamente. E, graças a Darwin, sabemos como ele aconteceu: pela seleção natural.

O princípio antrópico é impotente para explicar os detalhes tão variados das criaturas vivas. Precisamos mesmo do poderoso guindaste de Darwin para dar conta da diversidade da vida na Terra, e especialmente a ilusão persuasiva de design. A origem da vida, pelo contrário, fica fora do alcance do guindaste, porque a seleção natural não pode ocorrer sem ela. Nesse ponto o princípio antrópico dá o máximo de si. Conseguimos tratar da origem singular da vida postulando um número muito grande de oportunidades planetárias. Uma vez que aquele golpe inicial da sorte tenha sido assegurado — e o princípio antrópico decisivamente o assegura para nós —, a seleção natural assume: e a seleção natural não é — e o não é enfático — uma questão de sorte.

 De qualquer maneira, é possível que a origem da vida não seja a única grande lacuna da história evolutiva a ser superada pela pura sorte, antropicamente justificada. Por exemplo, meu colega Mark Ridley, em MendeFs demon (reintitulado The cooperative gene, de forma gratuita e que causa confusão, pela editora americana), sugeriu que a origem da célula eucarionte (nosso tipo de célula, com um núcleo e vários outros dispositivos complicados como as mitocôndrias, que não estão presentes nas bactérias) foi um passo ainda mais rápido, difícil e estatisticamente improvável que a origem da vida. Eventos únicos como esse podem ser explicados pelo princípio antrópico, ao longo da seguinte linha: existem bilhões de planetas que desenvolveram a vida no nível das bactérias, mas apenas uma pequena proporção dessas formas de vida conseguiu chegar a algo parecido com uma célula eucarionte. E, entre esses, uma proporção ainda menor conseguiu cruzar o Rubicão até a consciência. Se esses dois eventos forem únicos, não estamos lidando com um processo onipresente e disseminado, como fazemos ao tratar da adaptação biológica ordinária e tradicional. O princípio antrópico afirma que, como estamos vivos e somos eucariontes e conscientes, nosso planeta tem de ser um dos raríssimos planetas que superaram todas as três lacunas.

A seleção natural funciona porque ela é uma avenida de mão única, cumulativa, para o aperfeiçoamento. Ela precisa de alguma sorte para ser iniciada, e o princípio antrópico dos "bilhões de planetas" nos assegura tal sorte. Talvez algumas lacunas posteriores na história evolutiva também precisem de grandes doses de sorte, com a justificativa antrópica. Mas, não importa o que mais possamos dizer, o design certamente não funciona como explicação para a vida, porque o design não é cumulativo e portanto suscita mais perguntas do que responde — ele nos leva diretamente para a regressão infinita na linha do 747 Definitivo. 

Vivemos num planeta que é amistoso para nosso tipo de vida, e já vimos duas razões para isso. Uma é que a vida evoluiu de modo a florescer nas condições proporcionadas pelo planeta. Isso se deve à seleção natural. A outra razão é a antrópica. Existem bilhões de planetas no universo, e, por menor que seja a minoria dos planetas propícios à evolução, nosso planeta necessariamente tem de fazer parte dela. Chegou agora o momento de levar o princípio antrópico de volta para um estágio anterior, da biologia para a cosmologia. 

O PRINCÍPIO ANTRÓPICO: VERSÃO COSMOLÓGICA

Vivemos não apenas num planeta amistoso, mas também num universo amistoso. Isso provém do fato inerente à nossa existência de que as leis da física têm de ser amistosas o suficiente para permitir que a vida surja. Não é por acaso que, quando olhamos à noite para o céu, vemos estrelas, pois estrelas são um pré-requisito necessário para a existência da maioria dos elementos químicos, e sem química não haveria vida. Os físicos calcularam que, se as leis e constantes da física fossem ligeiramente diferentes, o universo teria se desenvolvido de tal forma que a vida seria impossível. Físicos diferentes disseram isso de formas diferentes, mas a conclusão é sempre quase a mesma. Martin Rees, em Apenas seis números, lista seis constantes fundamentais, as quais se acredita que se mantenham em todo o universo. Cada um desses seis números é sintonizado no sentido de que, se fosse um pouquinho diferente, o universo seria muito diferente e presumivelmente nada propício à vida.* 

Um exemplo dos seis números de Rees é a magnitude da chamada "força forte", a força que liga os componentes do núcleo do átomo: a força nuclear que tem de ser superada quando se "divide" o átomo. Ela é medida como E, a proporção da massa de um núcleo de hidrogênio que é convertida em energia quando o hidrogênio se funde para formar o hélio. O valor desse

* Digo "presumivelmente" em parte porque não sabemos como podem ser as várias formas de vida alienígena, e em parte porque é possível que estejamos enganados ao levar em conta apenas as conseqüências de mudar uma constante por vez. Não poderia haver outra combinação de valores dos seis números que resultasse propícia à vida, de maneiras que não conseguimos descobrir se consideramos apenas um por vez? De qualquer maneira, procederei, em nome da simplicidade, como se realmente tivéssemos um grande problema a ser explicado na aparente sintonia fina das constantes fundamentais.

número em nosso universo é 0,007, e aparentemente era preciso que ele fosse muito próximo a esse valor para que pudesse existir qualquer química (que é um pré-requisito para a vida). A química, do modo como a conhecemos, consiste na combinação e na recombinação de mais ou menos noventa elementos de ocorrência natural da tabela periódica. O hidrogênio é o mais simples e o mais comum dos elementos. Todos os outros elementos do universo são feitos, em última instância, de hidrogênio, pela fusão nuclear. A fusão nuclear é um processo complicado que ocorre nas condições extremamente quentes do interior das estrelas (e nas bombas de hidrogênio). Estrelas relativamente pequenas, como nosso Sol, são capazes de produzir apenas elementos leves como o hélio, o segundo mais leve da tabela periódica, depois do hidrogênio. São necessárias estrelas maiores e mais quentes para gerar as altas temperaturas necessárias para forjar a maioria dos elementos mais pesados, numa cascata de processos de fusão nuclear cujos detalhes foram descritos por Fred Hoyle e dois colegas (uma realização pela qual, misteriosamente, Hoyle não teve direito à parcela do prêmio Nobel recebido pelos outros). Essas grandes estrelas podem explodir na forma de super-novas, espalhando seus materiais, inclusive os elementos da tabela periódica, em nuvens de poeira. As nuvens de poeira acabam se condensando e formando novas estrelas e planetas, como o nosso. É por isso que a Terra é rica em elementos que vão além do onipresente hidrogênio: elementos sem os quais a química — e a vida — seria impossível. 

O ponto relevante aqui é que o valor da força forte determina de forma crucial quão longe na tabela periódica vai a cascata de fusão nuclear. Se a força fosse pequena demais, de 0,006 em vez de 0,007, por exemplo, o universo não teria nada além de hidrogênio, e daí nenhuma química interessante poderia resultar. Se ela fosse grande demais, de 0,008, por exemplo, todo o hidrogênio teria se fundido e criado elementos mais pesados. Uma química sem hidrogênio não teria sido capaz de gerar a vida como a conhecemos. Em primeiro lugar, não haveria água. O valor Gadanhos Dourados — 0,007 — é o ideal para produzir a riqueza de elementos de que precisamos para que haja uma química interessante e capaz de sustentar a vida.

Não vou examinar o restante dos seis números de Rees. O ponto principal de cada um deles é o mesmo. O número real fica numa faixa Cachinhos Dourados de valores fora da qual a vida não teria sido possível. Como deveríamos responder a isso? Mais uma vez, temos a resposta teísta de um lado e a resposta antró-pica do outro. A teísta diz que Deus, quando criou o universo, sintonizou as constantes fundamentais do universo para que cada uma delas ficasse em sua zona Cachinhos Dourados para a produção da vida. É como se Deus tivesse seis botões que pudesse ajustar, e tivesse girado cuidadosamente cada um deles até o seu valor Cachinhos Dourados. Como sempre, a resposta teísta é profundamente insatisfatória, porque deixa inexplicada a existência de Deus. Um Deus capaz de calcular os valores Cachinhos Dourados para os seis números teria de ser no mínimo tão improvável quanto a própria combinação afinada dos números, e isso é mesmo muito improvável — esta, na verdade, é a premissa de toda a discussão que estamos mantendo. Assim, a resposta teísta não consegue obter nenhum avanço para solucionar o problema de que estamos tratando. Não vejo alternativa senão desqualificá-la, estupefato ao mesmo tempo com o número de pessoas que não conseguem enxergar o problema e parecem genuinamente satisfeitas com o argumento do "Ajustador de Botões Divino".

Talvez a razão psicológica para essa incrível cegueira tenha a ver com o fato de muita gente não ter sido conscientizada, como os biólogos, pela seleção natural e seu poder de domar a impro-babilidade. J. Anderson Thomson, de sua perspectiva de psiquiatra evolucionário, aponta uma outra razão, a tendência psicológica que todos nós temos para personificar objetos inanimados e enxergá-los como agentes. Como diz Thomson, somos mais inclinados a confundir uma sombra com um ladrão que um ladrão com uma sombra. Um falso positivo pode ser uma perda de tempo. Um falso negativo pode ser fatal. Numa carta para mim, ele sugeriu que, em nosso passado ancestral, nosso maior desafio em nosso ambiente eram os outros. "O legado disso é a suposição automática, muitas vezes com medo, da intenção humana. Temos grande dificuldade de enxergar outra coisa que não a causa-ação humana." Naturalmente generalizamos isso para a intenção divina. Retornarei à sedução dos "agentes" no capítulo 5.

Os biólogos, conscientizados para o poder da seleção natural como explicação das coisas improváveis, dificilmente ficarão satisfeitos com qualquer teoria que fuja do problema da improbabilidade. E a resposta teísta para o problema da improbabilidade é uma fuga de proporções estupendas. É mais que a reformulação do mesmo problema, é uma amplificação grotesca dele. Voltemo-nos, então, para a alternativa antrópica. A resposta an-trópica, em sua forma mais genérica, é que só poderíamos estar discutindo a questão num universo que fosse capaz de nos produzir. Nossa existência, portanto, determina que as constantes fundamentais da física tinham de estar em suas respectivas zonas Cachinhos Dourados. Físicos diferentes adotam tipos diferentes de solução antrópica para o problema de nossa existência.

Físicos pragmáticos dizem que os seis ajustes na verdade nunca tiveram a liberdade de variar. Quando finalmente chegarmos à almejada Teoria de Tudo, veremos que os seis números-chave dependem um dos outros, ou de alguma coisa que ainda não se sabe qual é, de maneiras que hoje não conseguimos imaginar. É possível que os seis números se revelem impedidos de variar, assim como a proporção da circunferência de um círculo para seu diâmetro. Ficará evidente que só há um modo como o universo pode existir. Longe de um Deus que precise girar seis botões de ajuste, não há botões a serem ajustados. 

Outros físicos (o próprio Martin Rees é um exemplo) consideram essa explicação pouco satisfatória, e acho que concordo com eles. É perfeitamente plausível que só haja uma maneira como o universo possa existir. Mas por que ela teve de ser tão adequada à nossa evolução? Por que ela teve de ser o tipo de universo que quase parece que, nas palavras do físico teórico Freeman Dyson, "sabia que estávamos chegando"? O filósofo John Leslie usa a analogia de um homem condenado à morte pelo pelotão de fuzilamento. Há uma possibilidade mínima de que todos os dez homens do pelotão de fuzilamento errem o alvo. Em retrospecto, o sobrevivente que se veja na posição de refletir a respeito de sua sorte pode dizer, contente: "Bem, obviamente todos erraram, ou eu não estaria aqui pensando nisso". Mas ele ainda poderia, compreensivelmente, especular por que todos erraram, e flertar com a hipótese de que eles tenham sido subornados, ou então estivessem bêbados. 

 Essa objeção pode ser respondida pela sugestão, sustentada pelo próprio Martin Rees, de que existem muitos universos, coexistindo como bolhas de espuma, num "multiverso" (ou "mega-verso", como Leonard Susskind prefere chamá-lo).* As leis e constantes de qualquer universo, como nosso universo observável, são leis locais. O multiverso como um todo tem uma pletora de conjuntos alternativos de leis locais. O princípio antrópico aparece para explicar que temos de estar em um desses universos (presumivelmente uma minoria) cujas leis locais por acaso foram propícias à nossa evolução, e daí passar à contemplação do problema.

Uma versão intrigante da teoria do multiverso provém das considerações sobre o destino final de nosso universo. Dependendo dos valores de números como as seis constantes de Martin Rees, nosso universo pode estar destinado a se expandir indefinidamente, ou pode se estabilizar num equilíbio, ou a expansão pode se reverter e virar contração, culminando no chamado "big crunch". Alguns modelos de big crunch prevêem que o universo voltaria a se expandir, e assim por diante, num ciclo de, digamos, 20 bilhões de anos. O modelo-padrão para o nosso universo diz que o tempo começou no big bang, junto com o espaço, cerca de 13 bilhões de anos atrás. O modelo da série de big crunchs corrigiria essa declaração: nosso tempo e espaço realmente começaram no nosso big bang, mas foi apenas o mais recente numa longa série de big bangs, cada um iniciado pelo big crunch que encerrou o universo anterior da série. Ninguém entende o que acontece em singularidades como o big bang, portanto é concebível que as leis e as constantes sejam zeradas e tenham novos valores a cada vez. Se os ciclos de 

* Susskind (2006) faz uma defesa esplêndida do princípio antrópico no mega-verso. Ele diz que a ideia é abominada pela maioria dos físicos. Não entendo por quê. Acho que ela é linda — talvez por eu ter sido conscientizado por Darwin.

bang-expansão-contração-crunch vêm acontecendo desde sempre, como num acordeão cósmico, temos uma versão seriada, e não paralela, de multiverso. Mais uma vez, o princípio antrópico exerce seu papel explanatório. De todos os universos da série, apenas uma minoria tem o "dial" acertado para condições biogênicas. E, é claro, o universo atual tem de estar nessa minoria, porque estamos nele. Essa versão seriada de multiverso precisa ser hoje considerada menos provável do que no passado, porque evidências recentes estão começando a nos afastar do modelo do big crunch. Parece, agora, que nosso universo está destinado a se expandir para sempre.

Outro físico teórico, Lee Smolin, desenvolveu uma variante darwiniana tentadora para a teoria do multiverso, incluindo elementos seriados e paralelos. A idéia de Smolin, exposta em A vida do cosmos, sustenta-se na teoria de que universos-filhos nascem de universos-pais, não num big crunch completo, mas de modo mais local, em buracos negros. Smolin acrescenta uma forma de hereditariedade: as constantes fundamentais de um uni-verso-filho são versões ligeiramente "mutadas" das constantes de seu progenitor. A hereditariedade é o ingrediente essencial da seleção natural darwiniana, e o restante da teoria de Smolin vem naturalmente. Os universos que têm o necessário para "sobreviver" e "reproduzir-se" acabam predominando no multiverso. O "necessário" inclui durar tempo suficiente para se "reproduzir". Como o ato da reprodução acontece nos buracos negros, os universos bemsucedidos precisam ter o necessário para criar buracos negros. Essa capacidade exige várias outras propriedades. Por exemplo, a tendência da matéria de se condensar em nuvens e depois em estrelas é um pré-requisito para produzir buracos negros. As estrelas, como já vimos, também são precursoras do desenvolvimento de uma química interessante, e portanto da vida. Assim, sugere Smolin, houve uma seleção natural darwiniana de universos no multiverso, favorecendo diretamente a evolução da fecundidade nos buracos negros e indiretamente a produção da vida. Nem todos os físicos ficaram entusiasmados com a ideia de Smolin, embora o físico e prêmio Nobel Murray Gell-Mann tenha dito, segundo uma citação: "Smolin? Não é aquele jovem com aquelas idéias malucas? Ele pode não estar enganado".70 Um biólogo sarcástico poderia se perguntar se alguns outros físicos não estão precisando de um pouco de conscientização darwiniana. 

É tentador pensar (e muitos sucumbiram) que postular uma pletora de universos é um luxo exagerado que não deveria ser permitido. Se é para nos permitir a extravagância de um multiverso, afirma o argumento, também poderíamos chutar o balde logo de uma vez e permitir a existência de um Deus. Não se trata de duas hipóteses igualmente excessivas ad hoc, e igualmente insatisfatórias? As pessoas que pensam assim não foram conscientizadas pela seleção natural. A diferença principal entre a hipótese da existência de Deus genuinamente extravagante e a hipótese aparentemente extravagante do multiverso é de improbabilidade estatística. O multiverso, com toda a sua extravagância, é simples. Deus, ou qualquer agente inteligente, capaz de tomar decisões e de fazer cálculos, teria de ser altamente improvável, no mesmíssimo sentido estatístico das entidades que se supõe que ele explique. O multiverso pode parecer extravagante no mero número de universos. Mas, se cada um desses universos for simples em suas leis fundamentais, não estamos postulando nada de muito improvável. É preciso dizer exatamente o contrário sobre qualquer tipo de inteligência.

Alguns físicos são conhecidos por sua religiosidade (Russell Stannard e o reverendo John Polkinghorne são os dois exemplos britânicos que já mencionei). Como era de imaginar, eles aproveitam a improbabilidade da sintonia das constantes físicas em suas razoavelmente estreitas zonas Cachinhos Dourados para sugerir que deve haver uma inteligência cósmica que fez a sintonia deliberadamente. Já desqualifiquei todas essas sugestões porque elas suscitam problemas maiores que os que solucionam. Mas que tentativas os teístas fizeram de responder? Como eles lidam com o argumento de que qualquer Deus capaz de projetar um universo, cuidadosa e sagazmente sintonizado para levar à nossa evolução, precisa ser uma entidade de suprema complexidade e improbabilidade, que exige uma explicação maior que aquela que ele supostamente dá? 

O teólogo Richard Swinburne, como já aprendemos a esperar, acha que tem uma resposta para esse problema, e ele a expõe em seu livro Is there a God?. Ele começa mostrando que tem o coração no lugar certo, demonstrando de modo convincente por que devemos sempre preferir a hipótese mais simples a se encaixar nos fatos. A ciência explica coisas complexas em termos da inte-ração de coisas mais simples, até o extremo da interação das partículas fundamentais. Eu (e ouso dizer você) acho uma idéia de uma simplicidade encantadora a de que todas as coisas são feitas de partículas fundamentais que, embora numerosíssimas, provêm de um grupo pequeno e limitado de tipos de partícula. Se somos céticos, é provável que seja porque achemos a idéia simples demais. Mas para Swinburne ela não é nada simples, pelo contrário. 

Como o número de partículas de qualquer um dos tipos, elétrons, por exemplo, é grande, Swinburne acha coincidência demais que tantas tenham as mesmas propriedades. Um elétron ele engoliria. Mas bilhões e bilhões de elétrons, todos com as mesmas propriedades, isso é o que realmente instiga sua incredulidade. Para ele seria mais simples, mais natural, menos carecedor de explicação, se todos os elétrons fossem diferentes entre si. Pior, nenhum elétron deveria manter naturalmente suas propriedades por mais que um instante por vez; cada um deles deveria mudar, caprichosa, aleatória e fugazmente a cada momento. Essa é a visão de Swinburne para o estado simples, nativo das coisas. Qualquer coisa mais uniforme (o que eu ou você chamaríamos de mais simples) exige uma explicação especial. "É só porque os elétrons e pedacinhos de cobre e todos os outros objetos materiais têm os mesmos poderes no século XX do que tinham no século XIX que as coisas são como são agora."

Entra Deus. Deus vem ao resgate mantendo deliberada e continuamente as propriedades de todos esses bilhões de elétrons e pedacinhos de cobre, e neutralizando sua inclinação inata para a flutuação errática e tresloucada. É por isso que, quando você vê um elétron, já viu todos; é por isso que pedacinhos de cobre agem todos como pedacinhos de cobre, e é por isso que cada elétron e cada pedacinho de cobre permanecem iguais a cada microssegundo e a cada século. É porque Deus mantém permanentemente o dedo em cada uma das partículas, contendo seus excessos e organizando-as junto com suas companheiras, fazendo com que elas fiquem sempre iguais.

Mas como Swinburne pode sustentar que sua hipótese, a de que Deus mantém 1 zilhão de dedos ao mesmo tempo em elé-trons rebeldes, é uma hipótese simples! Ela é, claro, exatamente o contrário da simplicidade. Swinborne se sai com uma peça de chutzpah intelectual de tirar o fôlego. Ele afirma, sem justificar, que Deus é uma substância única. Que incrível economia de causas explicativas, comparada com todos aqueles zilhões de elétrons independentes que só por acaso são iguais!

O teísmo alega que todos os objetos que existem têm uma causa para existir e são mantidos na existência por apenas uma substância, Deus. E alega que todas as propriedades que cada substância tem devem-se ao fato de Deus tê-la causado ou ter permitido sua existência. A marca registrada das explicações simples é postular poucas causas. Não poderia haver, nesse sentido, explicação mais simples que aquela que postula apenas uma causa. O teísmo é mais simples que o politeísmo. E o teísmo postula para sua causa única uma pessoa [com] poder infinito (Deus pode fazer tudo que seja logicamente possível), conhecimento infinito (Deus sabe tudo que seja logicamente possível saber) e liberdade infinita.

 Swinburne admite generosamente que Deus não é capaz de realizar feitos que sejam logicamente impossíveis, e pode-se ficar grato por tal contenção. Dito isso, não há limite para os fins explanatórios para os quais o poder infinito de Deus é empregado. A ciência está tendo um pouco de dificuldade para explicar X? Tudo bem. Deixe X para lá. O poder infinito de Deus é convocado sem problemas para explicar X (junto com tudo o mais), e é sempre uma explicação de uma simplicidade suprema, porque, afinal de contas, só existe um Deus. O que poderia ser mais simples que isso?

Bem, na verdade, quase tudo. Um Deus capaz de monitorar e controlar permanentemente o status individual de cada partícula do universo não pode ser simples. Só sua existência já exigirá uma explicação do tamanho de um mamute. Pior que isso (do ponto de vista da simplicidade), outros cantos da consciência gigantesca de Deus estão ao mesmo tempo preocupados com os atos e as emoções e as orações de cada ser humano — e de quaisquer alienígenas inteligentes que possam existir nos outros planetas nesta e nos 100 bilhões de outras galáxias. Ele até, segundo Swinburne, tem de decidir constantemente não intervir milagrosamente para nos salvar quando ficamos com câncer. Isso jamais poderia acontecer, porque, "se Deus atendesse à maioria das orações para que um parente se recuperasse do câncer, o câncer não seria mais um problema a ser solucionado pelos seres humanos". E aí o que íamos fazer com todo o nosso tempo livre? 

Nem todos os teólogos vão tão longe quanto Swinburne. Mesmo assim, a notável sugestão de que a Hipótese de que Deus Existe é simples pode ser encontrada em outros escritos teológicos modernos. Keith Ward, então professor régio de divindade em Oxford, foi muito claro a respeito da questão em seu livro God, chance and necessity, de 1996:

Na realidade, o teísta alega que Deus é uma explicação bastante elegante, econômica e pródiga para a existência do universo. É econômica porque atribui a existência e a natureza de absolutamente tudo no. universo a apenas um ser, a causa definitiva responsável pela razão da existência de tudo, inclusive de si mesmo. É elegante porque a partir de uma ideia central — a ideia do mais perfeito ser possível — é possível explicar de forma inteligível toda a natureza de Deus e a existência do universo.

Assim como Swinburne, Ward equivoca-se quanto ao que significa explicar alguma coisa, e também parece não entender o que significa dizer que alguma coisa é simples. Não tenho certeza se Ward realmente acha que Deus é simples ou se o trecho anterior foi apenas um exercício temporário "pelo bem do argumento". Sir John Polkinghorne, em Science and Christian belief [Ciência e fé cristã], cita as críticas prévias de Ward ao pensamento de Tomás de Aquino: "Seu erro básico é supor que Deus é simples em termos lógicos — simples não apenas no sentido de ser indivisível, mas no sentido bem mais contundente de que o que vale para qualquer parte de Deus vale para o todo. É bastante coerente, porém, supor que Deus, embora indivisível, seja internamente complexo". Ward capta bem a questão aqui. O biólogo Julian Huxley, em 1912, definiu complexidade como "heterogeneidade de partes", termo que implicava uma espécie particular de indivisibilidade.71

De resto, Ward dá evidências da dificuldade que a mente teológica tem em perceber de onde vem a complexidade da vida. Ele cita outro cientista-teólogo, o bioquímico Arthur Peacocke (o terceiro integrante do meu trio de cientistas religiosos britânicos), afirmando que ele postula a existência, na matéria viva,

de uma "propensão à complexidade cada vez maior". Ward caracteriza isso como "uma tendência inerente da mudança evolucionária que favorece a complexidade". Ele prossegue sugerindo que tal tendência "deve ter algum peso no processo mutacional, para garantir que mutações mais complexas ocorram". Ward é cético quanto a isso, como devia ser. O impulso evolutivo na direção da complexidade não vem, nas linhagens em que ele aparece, de nenhuma propensão inerente à complexidade, nem de mutações tendenciosas. Ele vem da seleção natural: o processo que, até onde sabemos, é o único capaz de gerar complexidade a partir da simplicidade. A teoria da seleção natural é genuinamente simples. Assim como a origem de onde ela parte. Aquilo que ela explica, por outro lado, é tão complexo que quase não dá para explicar: mais complexo que qualquer coisa que possamos imaginar, tirando um Deus capaz de projetá-la. 

UM INTERLÚDIO EM CAMBRIDGE

Numa conferência recente em Cambridge sobre ciência e religião, onde apresentei o argumento que aqui estou chamando de argumento do 747 Definitivo, encontrei o que, para dizer o mínimo, foi um fracasso cordial da realização de uma reunião de cabeças pensantes em torno da questão da simplicidade de Deus. A experiência foi reveladora, e gostaria de compartilhá-la.

Primeiro devo confessar (essa é provavelmente a palavra certa) que a conferência foi patrocinada pela Fundação Templeton. O público era um pequeno número de jornalistas científicos escolhidos a dedo, da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Eu era o pobre ateu em meio aos dezoito palestrantes convidados. Um dos jornalistas, John Horgan, afirmou que cada um deles recebeu a bela quantia de 15 mil dólares para participar da conferência, além de todas as despesas pagas. Isso me surpreendeu. Minha longa experiência em conferências acadêmicas não inclui nenhum caso em que a audiência (e não os conferencistas) tenha sido paga para participar. Se eu tivesse sabido, minhas suspeitas teriam imediatamente sido atiçadas. Estava a Templeton usando seu dinheiro para subornar jornalistas da área da ciência e subverter sua integridade científica? John Horgan depois questionou a mesma coisa e escreveu um artigo sobre a experiência.72 Nele, ele revelou, para meu desgosto, que a propaganda sobre o meu envolvimento como conferencista tinha contribuído para que ele e outras pessoas superassem suas dúvidas:

O biólogo britânico Richard Dawkins, cuja participação no encontro ajudou a me convencer e a outros companheiros de sua legitimidade, foi o único conferencista que denunciou que as crenças religiosas são incompatíveis com a ciência, irracionais e prejudiciais. Os outros conferencistas — três agnósticos, um judeu, um deísta e doze cristãos (um filósofo muçulmano cancelou sua participação em cima da hora) — ofereceram uma perspectiva claramente distorcida a favor da religião e do cristianismo.

O artigo de Horgan é, ele mesmo, de uma ambivalência cativante. Apesar de suas reservas, houve aspectos da experiência que ele claramente valorizou (assim como eu, como ficará claro a seguir). Horgan escreveu:

Minhas conversas com os fiéis aprofundaram minha avaliação dos motivos que levam pessoas inteligentes e cultas a abraçar a religião. Um repórter discutiu a experiência do dom de línguas, e outro descreveu o relacionamento íntimo que mantém com Jesus. Minhas convicções não mudaram, mas as de outros sim. Pelo menos um companheiro disse que sua fé estava balançada em conseqüência da dissecação da religião feita por Dawkins. E, se a Fundação Templeton pode ajudar a proporcionar um passo minúsculo na direção do meu ideal de um mundo sem religião, que mal poderia fazer?

 O artigo de Horgan foi republicado pelo agente literário John Brockman em seu site Edge (muitas vezes descrito como um salon científico on-line), onde provocou respostas variadas, incluindo a do físico teórico Freeman Dyson. Respondi a Dyson, citando o discurso que ele proferiu ao receber o prêmio Templeton. Tenha gostado ou não, quando aceitou o prêmio Templeton Dyson enviou um sinal poderoso para o mundo. Ele seria tomado como o endosso da religião por um dos físicos mais destacados do mundo.

Estou satisfeito em fazer parte da multidão de cristãos que não ligam muito para a doutrina da Trindade ou para a verdade histórica dos evangelhos

Mas isso não é exatamente o que qualquer cientista ateu diria, se quisesse soar cristão? Fiz mais citações do discurso de Dyson, entremeando-as de forma satírica com perguntas imaginárias (em itálico) para um integrante da Templeton: 

Ah, você quer também alguma coisa um pouco mais profunda? Que tal: 

"Não faço nenhuma distinção clara entre a mente e Deus. Deus é o que a mente se torna quando ultrapassa a escala de nossa compreensão". 

Já disse o suficiente? Posso voltar à física agora? Ah, ainda não? O.k., então, que tal isso: 

"Até mesmo na temerária história do século XX, vejo evidências de progresso na religião. Os dois indivíduos que tipificaram os demônios de nosso século, Adolf Hitler e Josef Stálin, eram ambos ateus".* 

Posso ir agora?

Dyson poderia facilmente refutar a implicação dessas citações de seu discurso de aceitação do prêmio Templeton se explicasse claramente quais são as evidências que encontra para acreditar em Deus, num sentido maior que o sentido einsteniano que, como expliquei no capítulo 1, todos nós podemos adotar sem ressalvas. Se eu entendo a tese de Horgan, ela é que o dinheiro da Templeton corrompe a ciência. Tenho certeza de que Freeman Dyson está muito acima de ser corrompido. Mas seu discurso de aceitação ainda assim é infeliz, se parece estabelecer um exemplo para outras pessoas. O prêmio Templeton é duas ordens de magnitude maior que os incentivos oferecidos aos jornalistas em Cambridge, e foi explicitamente estabelecido para ser maior que o prêmio Nobel. Numa veia fáustica, meu amigo, o filósofo Daniel Dennett, uma vez brincou comigo: "Richard, se algum dia você cair em tempos difíceis...". 

Para o bem ou para o mal, participei de dois dias da conferência em Cambridge, proferindo uma palestra e tomando parte na discussão em várias outras. Desafiei os teólogos a responder ao problema de que um Deus capaz de projetar um universo, ou qualquer outra coisa, teria de ser complexo e estatisticamente improvável. A resposta mais contundente que ouvi foi que eu estava forçando brutalmente uma epistemologia científica goela abaixo de 

* Essa calúnia será discutida no capítulo 7. 206

uma teologia relutante.* Os teólogos sempre definiram Deus como algo simples. Quem era eu, um cientista, para dizer aos teólogos que o Deus deles tinha de ser complexo? Argumentos científicos, como os que eu estava acostumado a empregar em minha área, eram inadequados, já que os teólogos sempre sustentaram que Deus está fora do âmbito da ciência.

Não fiquei com a impressão de que os teólogos que montaram essa defesa evasiva estivessem sendo desonestos de propósito. Acho que estavam sendo sinceros. Mesmo assim, não consegui deixar de me lembrar do comentário de Peter Medawar sobre O fenômeno humano, do padre Teilhard de Chardin, ao longo daquela que provavelmente seja a resenha mais negativa que um livro já recebeu em todos os tempos: "Seu autor só pode ser eximido de desonestidade porque, antes de enganar os outros, fez de tudo para enganar a si mesmo".73 Os teólogos de meu encontro em Cambridge estavam se autodefinindo numa Zona de Segurança epistemológica onde ficavam imunes aos argumentos racionais, porque haviam decretado que assim era. Quem era eu para dizer que o argumento racional era o único tipo admissível de argumento? Existem outros meios de conhecimento além do científico, e é um desses outros meios de conhecimento que precisa ser empregado para conhecer a Deus. 

 O mais importante entre esses outros meios de conhecimento revelou-se a experiência pessoal e subjetiva de Deus. Vários debatedores em Cambridge alegaram que Deus havia falado com eles, dentro da cabeça deles, de modo tão real e tão pessoal como qualquer outro ser humano teria falado. Já tratei da ilusão e da alucinação no capítulo 3 ("O argumento da experiência pessoal"), mas na conferência de Cambridge acrescentei mais dois pontos. Em primeiro lugar, se Deus realmente se comunicasse com seres humanos, esse fato não estaria, de jeito nenhum, fora do âmbito da ciência. Deus aparece vindo de onde quer que fiquem seus domínios sobrenaturais e aterrissa no nosso mundo, onde suas mensagens podem ser interceptadas por cérebros humanos — e esse fenômeno não tem nada a ver com a 

* Essa acusação remete ao mni, cujas alegações exageradas discuti no capítulo 2.

ciência? Em segundo lugar, um Deus que é capaz de enviar sinais inteligíveis a milhões de pessoas simultaneamente, e de receber mensagens de todas elas simultaneamente, não pode ser, de jeito nenhum, simples. Isso é que é banda larga! Deus pode não ter um cérebro feito de neurônios, ou uma cpu feita de silício, mas se possui os poderes que lhe são atribuídos deve ter alguma coisa de construção bem mais elaborada — e nada aleatória — que o maior cérebro ou o maior computador que conhecemos.

Continuamente meus amigos teólogos voltavam à questão de que tinha de haver um motivo para alguma coisa existir, em vez de existir o nada. É preciso haver uma causa inicial para tudo, e a ela podemos chamar Deus. Sim, eu disse, mas ela precisa ter sido simples e portanto, seja qual for o modo como a chamemos, Deus não é um nome adequado (a menos que neguemos de modo explícito toda a bagagem que a palavra "Deus" carrega na cabeça dos crentes mais religiosos). A causa primordial que buscamos tem de ter sido a base simples para um guindaste auto-su-ficiente que acabou elevando o mundo, como nós o conhecemos, a sua existência complexa atual. Sugerir que esse motor primário e original era complicado o suficiente para se dar ao luxo de fazer o design inteligente, sem falar do fato de ler os pensamentos de milhões de seres humanos ao mesmo tempo, é o equivalente a dar a você mesmo uma mão perfeita no bridge. Dê uma olhada em volta para o mundo cheio de vida, para a floresta amazônica com seu rico entrelaçamento de lianas, bromélias, raízes e arcos; seus exércitos de formigas e suas onças, suas antas e seus porcos-do-mato, suas pererecas e seus papagaios. Você está olhando para o equivalente estatístico a uma mão perfeita de baralho (pense em todos os outros modos como você poderia trocar as partes, sendo que nenhuma funcionaria) — exceto pelo fato de que sabemos como ela surgiu: pelo guindaste gradual da seleção natural. Não são só os cientistas que se revoltam com a aceitação muda de que tamanha improbabilidade tenha surgido espontaneamente; o bom senso também empaca. Sugerir que a causa primeira, o grande desconhecido que é responsável por alguma coisa existir, é um ser capaz de projetar o universo e de falar com l milhão de pessoas simultaneamente é a abdicação completa da responsabilidade de encontrar uma explicação. É uma manifestação temerosa de um "guinchismo celeste" indulgente e cego. 

Não estou defendendo uma espécie de pensamento estritamente científico. Mas o mínimo dos mínimos que qualquer investigação honesta da verdade deve ter, ao tentar explicar tamanhas monstruosidades de improbabilidade como uma floresta tropical, um recife de corais ou um universo, é um guindaste, e não um guincho celeste. Esse guindaste não precisa ser a seleção natural. É verdade que ninguém nunca pensou em alternativa melhor. Mas pode haver outras ainda a ser descobertas. Talvez a "inflação" que os físicos postulam ter ocupado uma fração do primeiro setilionésimo de segundo da existência do universo revele-se, quando for entendida melhor, um guindaste cosmológico que faça par com o biológico de Darwin. Ou talvez o guindaste elusivo que os cosmólogos buscam seja uma versão da própria idéia de Darwin: ou o modelo de Smolin ou alguma coisa parecida. Ou talvez seja o multiverso mais o princípio antrópico encampado por Martin Rees e outros pesquisadores. Pode até ser um designer sobre-humano — mas, se for esse o caso, certamente não será um designer que simplesmente apareceu e começou a existir, ou que sempre existiu. Se (coisa em que não acredito nem por um instante) nosso universo foi projetado, e a fortiori se o projetista ler nossos pensamentos e nossas ações com conselhos, perdão e redenção oniscientes, esse projetista tem de ser o produto final de algum tipo de escada cumulativa ou guindaste, quem sabe uma versão do darwinismo em outro universo. 

O último recurso da defesa daqueles que me criticavam em Cambridge foi o ataque. Toda a minha visão de mundo foi condenada, considerada "oitocentista". É um argumento tão ruim que quase o deixei de fora. Mas infelizmente eu o encontro com bastante frequência. Nem é preciso dizer que chamar um argumento de oitocentista não é a mesma coisa que explicar o que há de errado com ele. Algumas idéias oitocentistas eram muito boas, como a própria e perigosa idéia de Darwin. De todo modo, essa forma específica de xingamento pareceu um tanto forte vindo, como veio, de um indivíduo (um geólogo destacado de Cambridge, certamente já com um bom caminho andado na faustiana rota para um futuro prêmio Templeton) que justificou sua própria crença cristã invocando o que ele chamou de a historicidade do Novo Testamento. Foi exatamente no século XIX que teólogos, especialmente na Alemanha, colocaram em séria dúvida essa suposta historicidade, usando métodos baseados em evidências do estudo de história para fazê-lo. Isso foi, aliás, mencionado apressadamente pelos teólogos na conferência de Cambridge. 
 
De qualquer maneira, já conheço o sarcasmo "oitocentista" faz tempo. Ele vem junto com o ataque do "ateu provinciano". Vem junto com o "ao contrário do que você parece achar, ha-ha-ha, não acreditamos mais num velhinho de barbas brancas e compridas, ha-ha-ha". Todas as três piadas são a senha para outra coisa, assim como, quando morei nos Estados Unidos, no fim dos anos 1960, "lei e ordem" era a senha para o preconceito contra os negros.* Qual, então, é o significado oculto de "Você é tão oitocentista" no contexto de uma discussão sobre religião? É a senha para: "Você é tão bruto, tão pouco sutil, como pode ser tão insensível e mal-educado a ponto de me fazer uma pergunta dire-ta, à queima-roupa, como 'Você acredita em milagres?' ou 'Você acredita que Jesus nasceu de uma virgem?'. Você não sabe que entre pessoas educadas não se faz esse tipo de pergunta? Esse tipo de pergunta acabou no século XIX". Mas reflita por que é indelicado fazer perguntas tão diretas e factuais para as pessoas religiosas hoje em dia. É porque dá vergonha! Só que é a resposta que dá vergonha, se ela for sim.

A conexão com o século XIX agora está clara. O século XIX foi o último momento em que foi possível para uma pessoa culta admitir acreditar em milagres como a gravidez da virgem sem sentir vergonha. Quando pressionados, muitos cristãos cultos hoje em dia são leais demais para negar a virgindade de Maria e a ressurreição. Mas isso os faz sentir vergonha porque sua mente racional sabe que é absurdo, portanto eles preferem não ser questionados sobre o assunto. Assim, se alguém como eu insiste na pergunta, eu é que sou acusado de ser "oitocentista". É na verdade uma coisa bem engraçada, se pensarmos bem. 

* Na Grã-Bretanha, "centro velho" das cidades [inner cities] tinha o mesmo significado codificado, o que fez Auberon Waugh mencionar, hilariamente, os "centros velhos de ambos os sexos".

Deixei a conferência animado e revigorado, e com minha convicção reforçada de que o argumento da improbabilidade — a tática do 747 Definitivo — é um argumento muito sério contra a existência de Deus, e para o qual ainda não vi nenhum teólogo dar uma resposta convincente, apesar das várias oportunidades e convites para fazê-lo. Dan Dennett descreve bem isso como "uma refutação irrefutável, tão devastadora hoje como quando Filo a usou para derrotar Cleantes nos Diálogos de Hume, dois séculos antes. Um guincho celeste no máximo adiaria a solução para o problema, mas Hume não conseguiu pensar em nenhum guindaste, por isso desabou".74 Darwin, é claro, forneceu o guindaste vital. Como Hume o teria adorado!

Este capítulo abordou o argumento central do meu livro e, portanto, com o risco de soar repetitivo, vou resumi-lo numa série de pontos numerados: 

1 Um dos grandes desafios para o intelecto humano, ao longo dos séculos, vem sendo explicar de onde vem a aparência complexa e improvável de design no universo. 

2 A tentação natural é atribuir a aparência de design a um design verdadeiro. No caso de um artefato de fabricação humana, como um relógio, o projetista realmente era um engenheiro inteligente. É tentador aplicar a mesma lógica a um olho ou a uma asa, a uma aranha ou a uma pessoa. 

3 A tentação é falsa, porque a hipótese de que haja um projetista suscita imediatamente o problema maior sobre quem projetou o projetista. O problema que tínhamos em nossas mãos quando começamos era o da improbabilidade estatística. Obviamente não é solução postular uma coisa ainda mais improvável. Precisamos de um "guindaste", não de um "guincho celeste", pois apenas um guindaste é capaz de avançar de forma gradativa e plausível da simplicidade para a complexidade, que de outra maneira seria improvável. 

4 O guindaste mais engenhoso e poderoso descoberto até agora é a evolução darwiniana, pela seleção natural. Darwin e seus sucessores mostraram como as criaturas vivas, com sua improbabilidade estatística espetacular e enorme aparência de ter sido projetadas, evoluíram através de degraus gradativos, a partir de um início simples. Podemos dizer hoje com segurança que a ilusão do design nas criaturas vivas não passa disso — uma ilusão. 

5 Não temos ainda um guindaste equivalente para a física. Alguma teoria do tipo da do multiverso pode em princípio fazer pela física o mesmo trabalho explanatório que o darwinismo fez pela biologia. Esse tipo de explicação é, na superfície, menos satisfatório que a versão biológica do darwinismo, porque faz exigências maiores à sorte. Mas o princípio antrópico nos dá o direito de postular uma dose de sorte bem maior que aquela com a qual nossa intuição humana limitada consegue se sentir confortável. 

6 Não devemos perder a esperança de que surja um guindaste melhor na física, algo tão poderoso quanto o darwinismo é para a biologia. Mas, mesmo na ausência de um guindaste altamente satisfatório equivalente ao biológico, os guindastes relativamente fracos que temos hoje são, com a ajuda do princípio antrópico, obviamente melhores que a hipótese contraproducente de um guincho celeste, o projetista inteligente.

Se o argumento deste capítulo for aceito, a premissa factual da religião — a Hipótese de que Deus Existe — fica indefensável. Deus, quase com certeza, não existe. Essa é a principal conclusão do livro até agora. Várias perguntas vêm a seguir. Mesmo que aceitemos que Deus não existe, a religião não serve para muita coisa ainda assim? Ela não é reconfortante? Não incentiva as pessoas a fazer o bem? Se não fosse pela religião, como saberíamos o que é o bem? Por que, de qualquer maneira, ser tão hostil? Por que, se ela é falsa, todas as culturas do mundo têm religião? Verdadeira ou falsa, a religião é onipresente, então qual é a sua origem? É para esta última pergunta que nos voltaremos agora.











 


 


 
 

 

 
 




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