Deus, um delírio
Tradução Fernanda Ravagnani
COMPANHIA DAS LETRAS
6. As raízes da moralidade: por que somos bons?
Estranha é nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós vem para uma curta passagem, sem saber por quê, ainda que algumas vezes tentando adivinhar um propósito. Do ponto de vista da vida cotidiana, porém, de uma coisa sabemos: o homem está aqui pelo bem de outros homens — acima de tudo daqueles de cujos sorrisos e bem-estar nossa própria felicidade depende.
Albert Einstein
Muitas pessoas religiosas acham difícil imaginar como, sem a religião, é possível ser bom, ou mesmo querer ser bom. Discutirei esse tipo de questionamento neste capítulo. Mas as dúvidas vão mais longe, e levam algumas pessoas religiosas a paroxismos de ódio contra aqueles que não compartilham de sua fé. Trata-se de uma coisa importante, porque considerações morais se escondem por trás de atitudes religiosas em relação a outros tópicos que não têm ligação real com a moralidade. Boa parte da oposição ao ensinamento da evolução não tem nenhuma conexão com a evolução em si, ou com qualquer coisa de científico, mas é incitada por uma revolta moral. Isso vai desde o ingênuo "Se você ensinar às crianças que elas evoluíram dos macacos, elas vão agir como macacos" até a motivação subjacente mais sofisticada para toda a estratégia do "design inteligente", como impiedosamente desnudada por Barbara Forrest e Paul Gross em Creationism's Trojan horse: The wedge of intelligent design [Cavalo de Tróia do criacionismo: a consolidação do design inteligente]. Recebo grandes quantidades de cartas de leitores de meus livros,* a maioria delas agradável e entusiasmada, algumas com críticas úteis, e umas
* Mais do que posso responder de forma adequada, fato pelo qual peço desculpas.
poucas horríveis e até cruéis. E as mais horríveis de todas, lamento dizer, são quase invariavelmente motivadas pela religião. Tal abuso tão anticristão costuma ser sentido por aqueles que são considerados inimigos do cristianismo. Aqui, por exemplo, está uma carta, publicada na internet e endereçada a Brian Flemming, autor e diretor de The god who wasrít there [O Deus que não estava lá],86 um filme sincero e emocionante que prega o ateísmo. Intitulada "Queime enquanto damos risada" e datada de 21 de dezembro de 2005, a carta a Flemming diz o seguinte:
Vocês têm mesmo muita cara-de-pau. Queria pegar uma faca, destripar vocês, seus idiotas, e gritar de alegria quando suas tripas saírem para fora bem na sua frente. Vocês estão tentando deflagrar uma guerra santa em que algum dia eu, e outros como eu, posso ter o prazer de tomar medidas como a mencionada acima.
O autor, nesse ponto, parece admitir com um certo atraso que seus
termos não são muito cristãos, pois prossegue, mais caridoso:
No entanto, DEUS nos ensina a não buscar a vingança, mas a rezar por aqueles como vocês.
Sua caridade, porém, dura pouco:
Vou me conformar em saber que a punição que deus infligirá a vocês será mil vezes pior que qualquer coisa que eu possa causar. A melhor parte é que vocês sofrerão por toda a eternidade por esses pecados que ignoram totalmente. A Ira de deus não terá misericórdia. Pelo seu próprio bem, espero que a verdade seja revelada a vocês antes que a faca se conecte a sua carne. Feliz NATAL!!!P. S. Vocês não fazem mesmo a menor ideia do que os aguarda... Agradeço a deus por não ser vocês.
Acho genuinamente intrigante que uma mera diferença de opiniões
teológicas possa gerar tamanha virulência. Segue uma amostra das cartas ao
editor da revista Freethought Today, publicada pela Fundação pela Liberdade da
Religião (Freedom From Religion Foundation — FFRF), que faz campanhas
pacifistas contra a erosão da separação constitucional entre a Igreja e o Estado:
Olá, comedores de queijo asquerosos. Tem muito mais de nós, cristãos, que de vocês, seus otários. NÃO tem separação de Igreja e Estado e vocês, pagãos, vão se dar mal..
Qual é a do queijo? Amigos americanos sugeriram uma ligação com o
estado de Wisconsin, famoso por ser liberal — sede da FFRF e centro da indústria
do laticínio —, mas certamente é mais que isso. E aqueles "macacos rendidos
comedores de queijo" franceses? Qual é a iconografia semiótica do queijo?
Continuando:
Escória adoradora de Satã [...] Por favor morram e vão para o inferno [...] Espero que vocês peguem uma doença doída como câncer retal e morram uma morte lenta e dolorosa, para que vocês possam encontrar o seu Deus, SATÃ [...] Ei, cara, essa coisa de liberdade da religião é uma droga [...] Então, bichas e sapatonas, vão com calma e olhem por onde andam que quando menos esperarem deus vai pegar vocês [...] Se vocês não gostam deste país e aquilo sobre o que e para que ele foi fundado, vão embora, porra, e vão direto para o inferno [...]P. S. Fodam-se, vagabundas comunistas [...] Tirem suas bundas pretas dos EUA [...] Vocês não têm desculpa. A criação é prova mais que suficiente do poder onipotente do SENHOR JESUS CRISTO.
Por que não do poder onipotente de Alá? Ou do Senhor Brahma? Ou até de
Javé?
Vocês não sairão impunes. Se no futuro isso exigir violência, lembrem-se de que foram vocês que provocaram. Meu fuzil está carregado.
Por que — não consigo deixar de questionar — se acha que Deus precisa
de uma defesa tão feroz? Era de esperar que ele fosse amplamente capaz de
tomar conta de si mesmo. Saiba, enquanto isso, que o editor que estava sendo
agredido e ameaçado de forma tão cruel é uma moça educada e encantadora.
Talvez porque não moro nos Estados Unidos, a maioria da
correspondência agressiva que recebo não pertence bem a esse time, mas
também não exibe muito mais daquela caridade pela qual o fundador do
cristianismo ficou famoso. A seguinte carta, datada de maio de 2005, de um
médico britânico com doutorado, embora seja certamente agressiva, soa-me
mais perturbada que odiosa, e revela como a questão da moralidade é um poço
profundo de hostilidade contra o ateísmo. Depois de alguns parágrafos preliminares atacando a evolução (e perguntando sarcasticamente se um "Negro" "ainda está
evoluindo"), insultando Darwin pessoalmente, fazendo citações enganosas de
Huxley, dizendo que ele era antievolucionista, e incentivando-me a ler um livro (eu
o li) que argumenta que o mundo só tem 8 mil anos de idade (como ele pode ter
obtido um doutorado?), ele conclui:
Seus livros, seu prestígio em Oxford, tudo o que você ama na vida e já conseguiu conquistar, são um exercício de inutilidade completa [...] A pergunta-desafio de Camus torna-se inescapável: Por que não cometemos suicídio todos nós? Sua visão de mundo realmente tem esse tipo de efeito sobre estudantes e muitas outras pessoas [...] que nós todos evoluímos pelo acaso cego, do nada, e retornamos ao nada. Mesmo se a religião não fosse verdade, é melhor, muito melhor, acreditar em um mito nobre, como o de Platão, se ele traz paz de espírito enquanto vivemos. Mas sua visão de mundo leva à ansiedade, à dependência das drogas, à violência, ao niilismo, ao hedonismo, à ciência Frankenstein, e ao inferno na terra, e à Terceira Guerra Mundial [...] Fico imaginando se você é feliz em seus relacionamentos pessoais. Divorciado? Viúvo? Gay? Aqueles como você nunca são felizes, ou então não se esforçariam tanto para provar que não existe felicidade nem significado em nada.
O sentimento dessa carta, se não seu tom, é típico de muitas delas. O
darwinismo, acredita essa pessoa, é inerentemente niilista, ensinando que
evoluímos pelo acaso cego (pela enésima vez, a seleção natural é exatamente o
contrário de um processo casual) e que somos aniquilados quando morremos.
Como conseqüência direta de tamanho suposto negativismo, acontece todo tipo
de mal. Presumo que ele não tenha mesmo querido sugerir que a viuvez pudesse
ser conseqüência direta do meu darwinismo, mas sua carta, naquele ponto, já
havia chegado àquele nível de malevolência frenética que reconheço tantas vezes
entre meus correspondentes cristãos. Dediquei um livro inteiro (Desvendando o
arco-íris) ao significado último, à poesia da ciência e a rebater, especificamente e a
fundo, a acusação de negativismo niilista, portanto devo me conter aqui. Este
capítulo é sobre o mal, e seu oposto, o bem; sobre a moralidade: de onde ela vem,
por que devemos adotá-la, e se precisamos da religião para fazê-lo.
NOSSO SENSO MORAL TEM ORIGEM DARWINIANA?
Vários livros, como Why good is good [Por que o bom é bom], de Robert
Hinde, The science of good and evil [A ciência do bem e do mal], de Michael
Shermer, Can we be good without God? [Podemos ser bons sem Deus?], de
Robert Buckman, e Moral minds [Mentes morais], de Marc Hauser,
argumentaram que nosso senso de certo e errado pode ser resultado de nosso
passado darwiniano. Essa seção representa a minha visão sobre esse argumento.
À primeira vista, a ideia darwiniana de que a evolução é impulsionada pela
seleção natural parece inadequada para explicar bondades como a que possuímos,
ou nosso sentimento de moralidade, decência, empatia e piedade. A seleção natural
explica com facilidade a fome, o medo e o desejo sexual, que contribuem diretamente para nossa sobrevivência ou para a preservação de nossos genes. Mas e a
compaixão arrebatadora que sentimos quando vemos uma criança órfã chorando,
uma viúva idosa desesperada de solidão ou um animal ganindo de dor? O que
nos fornece o fortíssimo impulso de mandar uma doação anônima em dinheiro ou
roupas para vítimas do tsunami do outro lado do mundo, que jamais
encontraremos, e que dificilmente devolverão o favor? De onde vem o Bom
Samaritano que existe em nós? A bondade não é incompatível com a teoria do
"gene egoísta"? Não. Esse é um equívoco comum na compreensão da teoria
— um equívoco perturbador (e, analisando em retrocesso, previsível).* É
necessário colocar a ênfase na palavra certa. O gene egoísta é a ênfase correta,
pois contrasta com o organismo egoísta, digamos, ou a espécie egoísta. Deixeme explicar.
A lógica do darwinismo conclui que a unidade na hierarquia da vida que
sobrevive e passa pelo filtro da seleção natural tenderá a ser egoísta. As
unidades que sobrevivem no mundo serão aquelas que forem bem-sucedidas
* Fiquei mortificado quando li no The Guardian ("Animal Instincts", 27 de maio de 2006)
que O gene egoísta é o livro favorito de Jeff Skilling, CEO da malfadada Enron Corporation,
e que ele se inspirou numa característica do darwinismo social tirada dele. O jornalista do
The Guardian Richard Conniff dá uma boa explicação sobre o equívoco:
http://money.guardian.co.uk/workweekly/story/ 0,,1783900,00.html. Tentei impedir
equívocos de interpretação semelhantes em meu novo prefácio à edição de trigésimo
aniversário de O gene egoísta, recém-lançada pela Oxford University Press.
em sobreviver em detrimento de seus rivais em seu próprio nível de hierarquia.
É precisamente isso o que egoísta quer dizer nesse contexto. A questão é: qual
é o nível da ação? A idéia do gene egoísta, com a ênfase devidamente aplicada
na palavra gene, é que a unidade da seleção natural (isto é, a unidade do
egoísmo) não é o organismo egoísta, nem o grupo egoísta ou a espécie egoísta
ou o ecossistema egoísta, mas o gene egoísta. É esse gene que, na forma de
informação, ou sobrevive por muitas gerações ou não sobrevive.
Diferentemente do gene (e talvez do meme), o organismo, o grupo e a
espécie não são o tipo certo de entidade para funcionar como unidade nesse
sentido, porque não fazem cópias exatas de si mesmos, e não competem num
universo de unidades auto-replicantes. Isso é exatamente o que os genes
fazem, e essa é a justificativa — essencialmente lógica — para destacar o gene
como a unidade de "egoísmo" no sentido especial e darwiniano de egoísmo.
O modo mais óbvio de os genes garantirem sua sobrevivência "egoísta"
em relação a outros genes é programando organismos isolados para que eles
sejam egoístas. Há muitas circunstâncias em que a sobrevivência de um
organismo isolado favorecerá a sobrevivência dos genes que viajam dentro
dele. Mas circunstâncias diferentes favorecem táticas diferentes. Existem
circunstâncias — que não são especialmente raras — em que os genes garantem
sua sobrevivência egoísta influenciando os organismos a agir de forma altruísta.
Essas circunstâncias são hoje bastante bem compreendidas e encaixam-se em
duas categorias principais. Um gene que programa organismos isolados para
favorecer seus parentes genéticos é estatisticamente mais propenso a
beneficiar cópias de si mesmo. A freqüência de um gene como esse pode
aumentar, no universo genético, até o ponto em que o altruísmo entre os
pares se transforme em norma. Tratar bem o filho dos outros é o exemplo
óbvio, mas não é o único. Abelhas, vespas, formigas, cupins e, em menor
proporção, determinados vertebrados como o rato-toupeira pelado, os
suricatos e os pica-paus bolotei-ros desenvolveram sociedades em que os
irmãos mais velhos tomam conta dos mais novos (com quem eles
provavelmente compartilham os genes para cuidar). Em geral, como mostrou
meu falecido colega W. D. Hamilton, os animais tendem a cuidar de familiares, defendê-los, dividir recursos com eles, adverti-los de perigos e mostrar
altruísmo em relação a eles por causa da probabilidade estatística de que
aquele parente tenha cópias dos mesmos genes.
O outro tipo principal de altruísmo para o qual há uma razão darwiniana
bem explicada é o altruísmo recíproco ("Coce as minhas costas que eu coço as
suas"). Essa teoria, apresentada pela primeira vez na biologia evolutiva por
Robert Trivers, e freqüentemente expressa na terminologia matemática da
teoria dos jogos, não se apoia no compartilhamento de genes. Na verdade, ela
funciona tão bem quanto, e talvez até melhor, entre membros de espécies
totalmente diferentes, situação em que muitas vezes é chamada de simbiose. O
princípio é a base de todo o comércio e dos escambos também para os seres
humanos. O caçador precisa de uma lança e o ferreiro quer carne. A assimetria
serve de intermediária para o acordo. A abelha precisa de néctar e a flor
precisa da polinização. As flores não voam, portanto pagam às abelhas, na
moeda do néctar, pelo aluguel de suas asas. Pássaros chamados indicadores
encontram as colmeias de abelhas, mas não conseguem penetrar nelas. Os
rateis conseguem entrar nas colmeias, mas não têm asas para procurá-las. Os
indicadores levam os rateis (e às vezes os homens) até o mel com um voo
especialmente chamativo, que não tem nenhum outro objetivo. Os dois lados
beneficiam-se com a transação. Pode haver um pote de ouro sob uma pedra
que seja pesada demais para ser removida pelo autor da descoberta. Ele pede
a ajuda de outras pessoas, mesmo que tenha de dividir o ouro, porque sem a
ajuda ficaria sem ouro nenhum. Os reinos vivos estão cheios desses
relacionamentos mutualistas: búfalos e pica-bois, lobélias e beija-flores,
garoupas e bodiões-limpadores, vacas e os micro-organismos de seu sistema
digestivo. O altruísmo recíproco funciona por causa das assimetrias nas
necessidades e na capacidade de satisfazê-las. É por isso que ele funciona
especialmente bem entre espécies diferentes: as assimetrias são maiores.
Entre os seres humanos, as duplicatas e o dinheiro são dispositivos que
permitem um intervalo de tempo entre as transações. Os dois lados do
negócio não precisam entregar os bens simultaneamente, mas podem ficar
devendo para o futuro, ou mesmo negociar a dívida com outras pessoas. Que eu saiba, nenhum animal não humano possui um equivalente direto do
dinheiro. Mas a memória da identidade individual faz o mesmo papel, de
maneira mais informal. Morcegos vampiros descobrem em que outros
indivíduos de seu grupo social podem confiar, quem paga suas dívidas (em
sangue regurgitado) e quais são os que trapaceiam. A seleção natural favorece
os genes que predisponham os indivíduos, em relacionamentos em que haja
necessidade assimétrica e oportunidade, a ajudar quando podem, e a solicitar
favores quando não podem. Ela também favorece a tendência a lembrar-se de
obrigações, a guardar ressentimentos, a policiar relacionamentos de troca e a
punir traidores que aceitam favores, mas não os fazem quando chega sua vez.
Pois sempre haverá traidores, e as soluções estáveis para os enigmas de
altruísmo recíproco da teoria dos jogos sempre envolvem um elemento de
punição para os traidores. A teoria matemática permite duas categorias amplas
de solução estável para "jogos" desse tipo. "Trair sempre" é estável porque, se
todo mundo fizer isso, um indivíduo isolado que seja honesto não vai se dar
bem. Mas existe outra estratégia que também é estável. ("Estável" quer dizer
que, uma vez que ela supere determinada frequência numa população,
nenhuma alternativa se sai melhor.) É a estratégia "Comece sendo legal, e dê
aos outros o benefício da dúvida. A seguir pague as boas ações com boas ações,
mas vingue-se das más ações". Na terminologia da teoria dos jogos, essa
estratégia (ou família de estratégias relacionadas) possui vários nomes, como
Tit for Tat, olho por olho ou de replicadores. Ela é evolutivamente estável sob
certas condições no sentido em que, tomando-se uma população dominada
por replicadores, nenhum indivíduo traidor, e nenhum indivíduo
incondicionalmente cooperativo, terá vantagem. Existem outras variações mais
complexas de olho por olho que sob algumas circunstâncias podem ter
vantagem.
Mencionei o relacionamento familiar e a reciprocidade como os pilares
gémeos do altruísmo num mundo darwiniano, mas existem estruturas
secundárias que se apoiam nesses pilares. Especialmente na sociedade humana,
com a linguagem e as fofocas, a reputação é importante. Um indivíduo pode ter
reputação de bondade e generosidade. Outro indivíduo pode ter reputação de não ser confiável, por trapacear e descumprir acordos. Outro pode ter reputação
de generosidade quando a confiança já se consolidou, mas de punir
impiedosamente as traições. A teoria bruta do altruísmo recíproco prevê que
animais de qualquer espécie baseiem seu comportamento na resposta
inconsciente a essas características em seus iguais. Nas sociedades humanas, ainda
há o poder que a linguagem tem para espalhar reputações, normalmente na
forma de fofoca. Você não precisa ter sido pessoalmente vítima do fato de o
fulano não ter querido pagar as bebidas no bar quando chegou a vez dele. Ouve
"boatos" de que fulano é mão-de-vaca, ou — para acrescentar uma complicação
irônica ao exemplo — que sicrano é um fofoqueiro incorrigível. A reputação é
importante, e os biólogos reconhecem o valor de sobrevivência darwiniana não só
em ser um bom replicador, mas também em cultivar uma reputação de bom
replicador. O livro As origens da virtude, de Matt Ridley, além de ser uma
explicação lúcida sobre o campo da moralidade darwiniana, é especialmente bom
no que diz respeito à reputação.*
O economista americano de origem norueguesa Thorstein Veblen e, de um
jeito bastante diferente, o zoólogo israelense Amotz Zahavi acrescentaram uma
idéia ainda mais fascinante. A doação altruísta pode ser uma propaganda de
dominância ou superioridade. Os antropólogos conhecem esse fenômeno como
Efeito Potlatch, o nome do costume pelo qual chefes rivais de tribos do noroeste
do Pacífico competem entre si em duelos de festas de uma generosidade
destrutiva. Nos casos extremos, o entretenimento retaliatório prossegue até que
um dos lados esteja reduzido à penúria, e o vencedor não fica numa situação
muito melhor. O conceito de Veblen de "consumo conspícuo" tem grande
impacto sobre vários observadores do cenário moderno. A contribuição de
Zahavi, desprezada por muitos anos pelos biólogos, até ser ratificada pelos
brilhantes modelos matemáticos do teórico Alan Grafen, oferece uma versão
* A reputação não se restringe aos seres humanos. Foi recentemente demonstrado que ela se aplica a um dos
casos clássicos do altruísmo recíproco em animais, o relacionamento simbiótico entre o pequeno peixe limpador e
seus clientes, os peixes maiores. Num experimento engenhoso, um bodião-limpador específico, o Labroides
dimidtatus, que já tivesse sido observado pelo potencial cliente limpando diligentemente, tinha mais chance de
ser escolhido pelo cliente que outros limpadores rivais que tivessem sido vistos negligenciando a limpeza. Veja R.
Bshary e A. S. Grutter, "Image scoring and cooperation in a cleaner fish mutualism" [Avaliação de imagem e
cooperação no mutualismo do peixe limpador], Nature 441, 22/6/2006, pp. 975-8.
evolutiva da ideia do potlatch. Zahavi estuda zaragateiros-árabes, pequenos
pássaros marrons que vivem em grupos sociais e reproduzem-se de forma
cooperativa. Como muitos passarinhos, os zaragateiros dão gritos de alerta e
também doam alimentos entre si. Uma investigação darwiniana-padrão sobre
tais atos de altruísmo procuraria, em primeiro lugar, por relações de
replicação e de laços familiares entre os pássaros. Quando um zaragateiro
alimenta seu companheiro, faz isso na expectativa de ser alimentado depois?
Ou o beneficiário do favor é um parente genético próximo? A interpretação de
Zahavi é radicalmente surpreendente. Os zaragateiros dominantes afirmam sua
dominância alimentando os subordinados. Para usar o tipo de linguagem
antropomórfica que Zahavi adora, o pássaro dominante está dizendo o
equivalente a: "Olhe como sou superior em relação a você, posso até lhe dar
comida". Ou:, "Olhe como sou superior, posso até ficar vulnerável de propósito
às águias parando num ramo alto, agindo como sentinela para alertar o resto
do grupo que está comendo no chão". As observações de Zahavi e seus colegas
sugerem que os zaragateiros competem ativamente pelo perigoso papel de
sentinela. E, quando um zaragateiro subordinado tenta oferecer comida a um
indivíduo dominante, a aparente generosidade é rejeitada com violência. A
essência da ideia de Zahavi é que a propaganda de superioridade ganha
autenticidade por seu custo. Só um indivíduo genuinamente superior pode se
dar ao luxo de propagandear esse fato como um presente caro. Os indivíduos
compram o sucesso, por exemplo na atração de parceiros, através de
demonstrações caras de superioridade, incluindo a generosidade ostentatória
e as situações de perigo cujo objetivo é ser vistas pelo público.
Temos agora quatro bons motivos darwinianos para que os indivíduos
sejam altruístas, generosos ou "morais" uns com os outros. Em primeiro lugar, há
o caso especial do parentesco genético. Em segundo, há a replicação: o
pagamento dos favores recebidos, e a execução de favores "antecipando" seu
pagamento. Depois desses vem, em terceiro lugar, o benefício darwiniano de
adquirir uma reputação de generosidade e bondade. E, em quarto, se Zahavi
estiver certo, vem o benefício adicional específico da generosidade conspícua,
como forma de comprar uma propaganda autêntica e impossível de falsificar.
Pela maior parte de nossa pré-história, os seres humanos viveram sob
condições que teriam favorecido fortemente a evolução de todos os quatro
tipos de altruísmo. Morávamos em aldeias, ou, antes, em bandos nômades
independentes como os dos babuínos, parcialmente isolados em relação a
bandos ou aldeias vizinhos. A maioria dos outros membros de nosso bando
teria sido formada por familiares, com uma relação mais próxima a você que
os membros de outros bandos — muitas oportunidades para a evolução do
altruísmo familiar. E, parente ou não, você tenderia a encontrar sempre os
mesmos indivíduos ao longo de sua vida — condições ideais para a evolução
do altruísmo recíproco. Essas também são as condições ideais para a
construção de uma reputação de altruísmo, e ao mesmo tempo as condições
ideais para propagandear a generosidade conspícua. Por qualquer um desses
quatro caminhos, as tendências genéticas para o altruísmo teriam sido
favorecidas nos primeiros seres humanos. Dá para entender com facilidade
por que nossos ancestrais pré-históricos seriam bons com seu próprio grupo
mas cruéis — até o ponto da xenofobia — para com outros grupos. Mas por
que — agora que a maioria de nós mora em grandes cidades, onde não
somos mais cercados pelos parentes, e onde todo dia encontramos indivíduos
que nunca mais veremos na vida —, por que ainda somos tão bons uns com os
outros, e às vezes até com outros que se imaginaria pertencerem a um grupo de
fora? É importante não exagerar o alcance da seleção natural. A seleção não
favorece a evolução de uma consciência cognitiva sobre o que é bom para os
seus genes. Essa consciência teve de esperar pelo século XX para alcançar o
nível cognitivo, e mesmo agora o entendimento pleno está confinado a uma
minoria de especialistas em ciência. O que a seleção natural favorece são regras
gerais, que funcionam na prática para promover os genes que as constroem.
As regras gerais, por natureza, às vezes dão errado. No cérebro de um pássaro,
a regra "Cuide das coisinhas pequenas que piam em seu ninho, e jogue comida
no biquinho aberto delas" normalmente tem o efeito de preservar os genes que
criam essa regra, porque os objetos piantes de biquinho aberto no ninho de
um pássaro adulto costumam ser sua própria cria. A regra dá errado se outro
filhote de passarinho conseguir entrar no ninho, uma circunstância usada de forma positiva pelos cucos. Não é possível que nossos impulsos de Bom
Samaritano sejam erros, análogos ao equívoco dos instintos paternos de um
rouxinol-dos-caniços que se esforça para alimentar um jovem cuco? Uma
analogia ainda mais próxima é o impulso humano de adotar uma criança. Devo
me apressar a dizer que "erro" refere-se apenas ao sentido estritamente
darwiniano. Não carrega nenhum tom pejorativo.
A ideia do "erro" ou do "subproduto", que estou adotando, funciona
assim. A seleção natural, nos tempos ancestrais, quando vivíamos em bandos
pequenos e estáveis como o dos babuí-nos, programou impulsos altruístas em
nosso cérebro, junto com impulsos sexuais, impulsos de fome, impulsos
xenofóbicos, e assim por diante. Um casal inteligente pode ler Darwin e saber
que o motivo último de seus impulsos sexuais é a procriação. Eles sabem que a
mulher não ficará grávida porque está tomando pílula. Mesmo assim seu
interesse sexual não fica diminuído por esse conhecimento. Desejo sexual é
desejo sexual, e sua força, na psicologia individual, independe da pressão
darwiniana que o provocou. É um forte impulso que existe de forma
independente de sua explicação racional.
Estou sugerindo que a mesma coisa aconteça com a bondade — com o
altruísmo, a generosidade, a empatia, a compaixão. Nos tempos ancestrais, só
tínhamos a oportunidade de ser altruístas em relação aos parentes próximos e
a potenciais replicadores. Hoje essa restrição não existe mais, mas a regra geral
persiste. Por que não persistiria? É a mesma coisa que o desejo sexual. Não
podemos fazer nada para deixar de sentir pena quando vemos um
desafortunado chorando (que não seja nosso parente e não seja capaz de
retribuir), assim como não podemos fazer nada para deixar de sentir desejo por
um integrante do sexo oposto (que pode ser estéril ou incapaz de se
reproduzir). As duas situações são "erros", equívocos darwinianos: equívocos
abençoados e maravilhosos.
Não encare, nem por um segundo, essa darwinização como
desmerecedora das nobres emoções da compaixão e da generosidade. Nem do
desejo sexual. O desejo sexual, quando canalizado pelos conduítes da cultura
linguística, ressurge na forma de grandes obras de poesia e de dramaturgia: os
poemas de amor de John Donne, por exemplo, ou Romeu e Julieta. E é claro que
a mesma coisa acontece com o redirecionamento equivocado da compaixão
baseada no parentesco e na retribuição. A piedade em relação a um devedor,
quando vista fora de contexto, é tão antidarwiniana quanto adotar o filho de
outra pessoa:
A qualidade da misericórdia não é forçada.
Ela cai como a chuva mansa dos céus
Sobre o que está embaixo.*
O desejo sexual é a força que impulsiona uma grande proporção da
ambição e do esforço humanos, e boa parte dela constitui um erro. Não há
nenhum motivo para que o mesmo não possa acontecer com o desejo de ser
generoso e piedoso, se essa é a conseqüência equivocada da vida nas aldeias de
nossos ancestrais. A melhor maneira de a seleção natural imprimir os dois tipos
de desejo nos tempos ancestrais foi instalando regras gerais no cérebro. Essas
regras ainda nos influenciam hoje em dia, mesmo quando as circunstâncias as
tornam inadequadas a suas funções originais.
Essas regras gerais ainda nos influenciam, não de uma forma
calvinisticamente determinista, mas filtradas pelas influências civilizadoras da
literatura e dos costumes, da lei e das tradições — é, é claro, da religião. Assim
como a regra cerebral primitiva do desejo sexual passa pelo filtro da civilização
para ressurgir nas cenas românticas de Romeu e Julieta, as regras primitivas do
"nós-contra-eles" no cérebro ressurgem na forma das batalhas entre os
Capuleto e os Montecchio; enquanto as regras primitivas do cérebro de
altruísmo e empatia acabam provocando o equívoco que nos anima na
reconciliação punitiva da cena final de Shakespeare.
* "The quality of mercy is not strained./ It droppeth as the gentle rain from heaven/ Upon the place beneath."
(N. T.)
UM ESTUDO DE CASO DAS RAÍZES DA MORALIDADE
Se nosso senso moral, assim como nosso desejo sexual, estiver mesmo
profundamente enraizado em nosso passado darwiniano, que precede a
religião, a expectativa seria de que pesquisas na mente humana revelassem
algumas universais da moral, cruzando fronteiras geográficas e culturais, e
também, o mais crucial, barreiras religiosas. O biólogo de Harvard Marc Hauser,
em seu livro Moral minas: How nature designed our universal sense ofright and
wrong [Mentes morais: como a natureza desenhou nosso senso de certo e
errado], ampliou uma linha fértil de experiências de pensamento que havia sido
originalmente sugerida por filósofos morais. O estudo de Hauser servirá ainda
para apresentar o modo como pensam os filósofos morais. Um dilema moral
hipotético é formulado, e a dificuldade que sentimos para responder a ele é
reveladora em relação a nosso senso de certo e errado. Hauser vai além dos
filósofos porque realiza pesquisas estatísticas e experiências psicológicas, usando
questionários na internet, por exemplo, para investigar o senso moral de
pessoas de verdade. Do ponto de vista atual, o interessante é que a maioria
das pessoas chega às mesmas decisões quando fica diante desses dilemas, e
sua concordância em relação às próprias decisões é mais forte que sua
capacidade de articular suas motivações. É o que esperaríamos se tivéssemos
um senso moral que esteja impresso em nosso cérebro, como nosso instinto
sexual ou nosso medo de altura, ou, como Hauser prefere dizer, como nossa
capacidade para a linguagem (os detalhes variam de cultura para cultura, mas a
estrutura subjacente da gramática é universal). Como veremos, o modo como
as pessoas respondem a esses testes morais, e sua incapacidade de articular
suas motivações, parece ser em grande parte independente de suas crenças
religiosas ou da ausência delas. A mensagem do livro de Hauser, para antecipála nas próprias palavras dele, é essa: "Orientando nossos juízos morais há uma
gramática moral universal, uma faculdade da mente que evoluiu ao longo de
milhões de anos, até incluir um conjunto de princípios para formar uma série
de sistemas morais possíveis. Assim como com a linguagem, os princípios que
compõem nossa gramática moral voam abaixo do radar de nossa consciência".
São típicas dos dilemas morais de Hauser as variações sobre o tema do vagão ou bonde descontrolado que ameaça matar um grupo de pessoas. A
história mais simples propõe que uma pessoa, Denise, está num centro de
controle em condições de mandar o bonde para um desvio, salvando portanto
a vida das cinco pessoas presas na linha principal. Infelizmente há um homem
preso no desvio. Mas, como ele é apenas um, menos que as cinco pessoas
presas na linha principal, a maioria das pessoas concorda que é moralmente
permissível, se não obrigatório, que Denise mexa no controle e salve os cinco,
matando o homem do desvio. Ignoramos possibilidades hipotéticas como a de
que o homem no desvio possa ser Beethoven, ou um amigo íntimo.
As elaborações sobre a experiência de pensamento apresentam uma série
de enigmas morais cada vez mais provocadores. E se o vagão puder ser contido
pelo lançamento de um peso em seu caminho, de cima de urna ponte? É fácil:
obviamente temos que jogar o peso. Mas e se o único peso disponível for um
homem muito gordo que esteja na ponte admirando o pôr-do-sol? Quase todo
mundo concorda que é imoral empurrar o gordo ponte abaixo, mesmo que,
de determinado ponto de vista, o dilema possa parecer paralelo ao de Denise,
em que a ação de mexer no controle mata um para salvar cinco. A maioria de nós
tem a forte intuição de que há uma diferença crucial entre os dois casos, embora talvez não consigamos articular qual ela é.
Empurrar o gordo ponte abaixo remete a outro dilema analisado por
Hauser. Cinco pacientes de um hospital estão morrendo, cada um da falência de
um órgão diferente. Cada um seria salvo se um doador daquele órgão
específico pudesse ser encontrado, mas não há nenhum disponível. O cirurgião
percebe então que há um homem saudável na sala de espera, com todos os
cinco órgãos em boas condições e adequados para o transplante. Nesse caso,
é quase impossível encontrar alguém que esteja disposto a dizer que o ato
moral é matar um para salvar os cinco.
Assim como com o gordo da ponte, a intuição que a maioria de nós tem
é que um observador inocente não deve ser subitamente sugado por uma
situação desafortunada e usado pelo bem de outras pessoas sem o seu
consentimento. Immanuel Kant articulou o famoso princípio de que um ser
racional jamais deve ser usado como um mero meio para um fim, sem seu consentimento, mesmo que esse fim seja beneficiar outras pessoas. Parece vir
daí a diferença crucial entre o caso do gordo da ponte (ou o homem da sala de
espera do hospital) e o homem no desvio de Denise. O gordo da ponte está
sendo positivamente usado como forma de conter o avanço do vagão. Isso
viola claramente o princípio kantiano. A pessoa no desvio não está sendo
usada, apenas tem .o azar de estar nele. Mas, quando a distinção é colocada
dessa forma, por que ela nos satisfaz? Para Kant, era um absoluto moral. Para
Hauser isso faz parte de nós, colocado em nós pela evolução.
As situações hipotéticas envolvendo o vagão desgovernado vão se
tornando cada vez mais engenhosas, e os dilemas morais equivalentemente
mais tortuosos. Hauser contrasta os dilemas enfrentados por indivíduos
hipotéticos chamados Ned e Oscar. Ned está ao lado da linha do trem.
Diferentemente de Denise, que podia mandar o vagão para um desvio, o
controle de Ned o manda para um desvio circular que volta para a linha
principal pouco antes das cinco pessoas. Mudar simplesmente a direção não
adianta: o vagão vai bater nos cinco de qualquer jeito quando o desvio voltar
para a linha principal. No entanto, enquanto a coisa acontece, há um homem
extremamente gordo no desvio circular, que é pesado o suficiente para parar
o bonde. Deveria Ned mexer no controle e desviar o trem? A intuição da
maioria das pessoas diz que não. Mas qual é a diferença entre o dilema de Ned e
o de Denise? Presume-se que as pessoas estejam intuitivamente aplicando o
princípio de Kant. Denise desvia o vagão de atropelar as cinco pessoas, e a vítima
infeliz do desvio é um "dano colateral", para usar o adorável termo
rumsfeldiano. Ele não está sendo usado por Denise para salvar os outros. Ned
está usando o homem gordo para deter o vagão, e a maioria das pessoas
(talvez sem pensar), junto com Kant (que pensou com todos os detalhes),
encara isso como uma diferença crucial.
A diferença é evidenciada novamente pelo dilema de Oscar. A situação de
Oscar é idêntica à de Ned, com a exceção de que há um grande peso de ferro no
desvio circular da pista, pesado o suficiente para deter o vagão. É claro que
Oscar não deve ter problemas para decidir mexer no controle e desviar o
bonde. Exceto pelo fato de que há uma pessoa caminhando na frente do peso de ferro. Ela certamente morrerá se Oscar acionar o desvio, assim como o
homem gordo de Ned morreria. A diferença é que o andarilho de Oscar não está
sendo usado para conter o vagão: ele é um dano colateral, assim como no
dilema de Denise. Da mesma forma que Hauser, e da mesma forma que a
maioria dos sujeitos das experiências de Hauser, acho que Oscar pode acionar o
controle, mas Ned não. Mas também acho bastante difícil justificar minha
intuição. A tese de Hauser é que esse tipo de intuição moral freqüentemente
não é pensado, mas que o sentimos com contundência do mesmo jeito, por
causa de nossa herança evolutiva.
Numa incursão intrigante na antropologia, Hauser e seus colegas
adaptaram seus experimentos morais aos kuna, uma pequena tribo da
América Central que mantém pouco contato com os ocidentais e não possui
religião formal. Os pesquisadores mudaram a experiência de pensamento do
"vagão na linha de trem" para equivalentes mais adequados, como crocodilos
nadando na direção de canoas. Com as pequenas diferenças correspondentes,
os kuna mostram os mesmos juízos morais que a maioria de nós.
Hauser também especulou, de especial interesse para este livro, se as
pessoas religiosas têm intuições morais diferentes das dos ateus. Se tiramos
nossa moralidade da religião, certamente deveria haver diferença. Mas parece
que não há. Hauser, trabalhando com o filósofo moral Peter Singer,87 concentrou-se em três dilemas hipotéticos e comparou os veredictos de ateus com os de
pessoas religiosas. Em cada um dos casos, pediu-se aos entrevistados que
escolhessem qual atitude hipotética seria moralmente "obrigatória",
"permissível" ou "proibida". Os três dilemas eram:
1 O dilema de Denise. Noventa por cento das pessoas disseram que era permissível desviar o vagão, matando um para salvar cinco.2 Você vê uma criança se afogando num lago e não há nenhuma outra ajuda à vista. Você pode salvar a criança, mas suas calças ficarão arruinadas no processo. Noventa e sete por cento concordaram que você deve salvar a criança (o incrível é que 3% aparentemente prefeririam salvar as calças).3 O dilema do transplante de órgãos descrito anteriormente. Noventa e sete por cento dos entrevistados concordaram que é moralmente proibido capturar a pessoa saudável da sala de espera e matá-la para usar seus órgãos, salvando assim cinco pessoas.
A principal conclusão do estudo de Hauser e Singer foi que não há
diferença estatisticamente significativa entre ateus e crentes religiosos na
elaboração desses juízos. Esse fato parece compatível com a opinião, minha e
de muitas outras pessoas, de que não precisamos de Deus para sermos bons
— ou maus.
SE DEUS NÃO EXISTE, POR QUE SER BOM?
Apresentada assim, a pergunta soa realmente ignóbil. Quando uma
pessoa religiosa dirige-a desse jeito para mim (e muitas fazem isso), minha
tentação imediata é lançar o seguinte desafio: "Você realmente quer me dizer
que o único motivo para você tentar ser bom é para obter a aprovação e a
recompensa de Deus, ou para evitar a desaprovação dele e a punição? Isso não é
moralidade, é só bajulação, puxação de saco, estar peocupado com a grande
câmera de vigilância dos céus, ou com o pequeno grampo de dentro da sua
cabeça que monitora cada movimento seu, até seus pensamentos mais
ordinários". Como disse Einstein, "se as pessoas são boas só porque temem a
punição, e esperam a recompensa, então nós somos mesmo uns pobres
coitados". Michael Shermer, em The science of good and evil, acha que a pergunta encerra o debate. Se você acha que, na ausência de Deus, "cometeria
roubos, estupros e assassinatos", revela-se uma pessoa imoral, "e faríamos bem
em nos manter bem longe de você". Se, por outro lado, você admite que
continuaria sendo uma boa pessoa mesmo quando não estiver sob a vigilância
divina, você destruiu fatalmente a alegação de que Deus é necessário para
que sejamos bons. Suspeito que boa parte das pessoas religiosas realmente ache
que a religião é o que as motiva a serem boas, especialmente se elas
pertencem a uma daquelas crenças que exploram sistematicamente a culpa
pessoal.
A mim me parece que é preciso uma dose muito baixa de auto-estima
para achar que, se a crença em Deus desaparecesse repentinamente do mundo, todos nós nos tornaríamos hedonistas insensíveis e egoístas, sem
nenhuma bondade, caridade, generosidade, nada que mereça o nome de
bondade. Acredita-se que Dostoiévski fosse dessa opinião, supostamente
devido a algumas declarações que ele colocou na boca de Ivan Karamázov:
[Ivan] observou com solenidade que não existia absolutamente nenhuma lei da natureza que fizesse o homem amar a humanidade, e que, se o amor realmente existia e havia existido no mundo até então, não era por causa da lei natural, mas só porque o homem acreditava em sua própria imortalidade. Ele acrescentou, num adendo, que era exatamente aquilo que constituía a lei natural, ou seja, que uma vez que a fé do homem em sua própria imortalidade fosse destruída, não seria só sua capacidade para o amor que se esgotaria, mas também as forças vitais que sustentam a vida neste planeta. Além do mais, nada seria imoral, tudo seria permitido, até a antropofagia. E, por fim, como se tudo isso não bastasse, ele declarou que para cada pessoa, como eu e você, por exemplo, que não acredita nem em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei natural está destinada a transformar-se imediatamente no exato contrário da lei baseada na religião que a precedia, e que o egoísmo, mesmo levando à perpetração de crimes, não seria somente permissível, mas seria reconhecido como a raison d'être essencial, mais racional e mais nobre da condição humana.88
Talvez por ingenuidade tendi para uma visão menos cínica da natureza
humana que a de Ivan Karamázov. Será que realmente precisamos de
policiamento — seja feito por Deus ou por nós mesmos — para que não nos
comportemos de modo egoísta e criminoso? Quero muito acreditar que não
preciso dessa vigilância — nem você, caro leitor. Por outro lado, só para enfraquecer nossa convicção, leia a experiência sobre a desilusão de Steven Pinker
numa greve policial em Montreal, descrita por ele em Tabula rasa:
Quando eu era adolescente, no orgulhosamente pacífico Canadá, durante os românticos anos 1960, era um defensor fiel da anarquia de Bakunin. Ria do argumento de meus pais de que se o governo entregasse as armas o caos tomaria conta de tudo. Nossas previsões concorrentes foram postas à prova às oito horas da manhã do dia 17 de outubro de 1969, quando a polícia de Montreal entrou em greve. Às onze e vinte, o primeiro banco tinha sido roubado. Ao meio-dia a maioria das lojas do centro da cidade havia fechado as portas por causa dos saques. Algumas horas depois, taxistas incendiaram a garagem de um serviço de aluguel de limusines que concorria com eles por passageiros do aeroporto, um atirador assassinou um policial da província, baderneiros invadiram hotéis e restaurantes e um médico matou um ladrão em sua casa, no subúrbio. No fim do dia, seis bancos haviam sido assaltados, cem lojas haviam sido, saqueadas, doze incêndios haviam sido provocados, quilos e quilos de vidros de vitrines haviam sido quebrados e 3 milhões de dólares em prejuízos haviam sido registrados, até que as autoridades da cidade tiveram que chamar o Exército e, é claro, a polícia montada para restabelecer a ordem. Esse teste empírico decisivo deixou minha política em frangalhos [...]
Talvez eu também seja uma Poliana por acreditar que as pessoas
permaneceriam boas se não fossem observadas nem policiadas por Deus. Por
outro lado, a maioria da população de Montreal supostamente acreditava em
Deus. Por que o medo de Deus não as conteve quando os policiais terrenos
foram temporariamente tirados de cena? A greve de Montreal não foi uma
ótima experiência natural para testar a hipótese de que a crença em Deus nos
torna bons? Ou talvez o sarcástico H. L. Mencken tivesse razão quando disse:
"As pessoas dizem que precisamos de religião, mas o que elas realmente querem
dizer é que precisamos de polícia".
É óbvio que não foi todo mundo em Montreal que se comportou mal
quando a polícia saiu de cena. Seria interessante saber se houve alguma
tendência estatística, por mais leve que fosse, para que os crentes na religião
tenham saqueado e depredado menos que os descrentes. Minha previsão
desinformada seria a do contrário. Muitas vezes se diz, cinicamente, que não há
ateus nas trincheiras. Estou inclinado a desconfiar (com base em alguma
evidência, embora possa ser simplista tirar conclusões delas) que haja bem
poucos ateus nas prisões. Não estou necessariamente afirmando que o
ateísmo aumenta a moralidade, embora o humanismo — o sistema ético que
freqüentemente acompanha o ateísmo — provavelmente o faça. Outra boa
possibilidade é que o ateísmo esteja correlacionado com algum terceiro fator,
como um nível maior de instrução, inteligência ou ponderação, que pode
contrabalançar impulsos criminosos. As evidências existentes retiradas de
pesquisas certamente não sustentam a ideia comum de que a religiosidade
está diretamente relacionada à moralidade. Evidências correlacionais nunca são
conclusivas, mas os dados seguintes, descritos por Sam Harris em seu Carta a uma
nação cristã, são de qualquer forma impressionantes.
Embora a filiação partidária nos Estados Unidos não seja um indicador perfeito da religiosidade, não é segredo que os "estados vermelhos [republicanos]" são vermelhos principalmente devido à enorme influência política dos cristãos conservadores. Se houvesse uma forte correlação entre o conservadorismo cristão e a saúde da sociedade, era de esperar que víssemos algum sinal dela nos estados vermelhos. Não vemos. Das 55 cidades com as taxas mais baixas de crimes violentos, 62% estão nos estados "azuis" [democratas] e 38% estão nos estados "vermelhos" [republicanos]. Das 25 cidades mais perigosas, 76% ficam nos estados vermelhos, e 24% nos estados azuis. Aliás, três das cinco cidades mais perigosas dos Estados Unidos ficam no devoto estado do Texas. Os doze estados com taxas mais elevadas de arrombamentos são vermelhos. Vinte e quatro dos 29 estados com as mais elevadas taxas de assalto são vermelhos. Dos 22 estados com as maiores taxas de assassinato, dezessete são vermelhos.*
Pesquisas sistemáticas tendem a sustentar esses dados correlacionais.
Gregory S. Paul, no Journal of Religion and Society (2005), comparou dezessete
nações economicamente desenvolvidas e chegou à devastadora conclusão de
que "taxas mais altas de crença num criador e de culto a ele se correlacionam
com taxas mais altas de homicídio, mortalidade juvenil e precoce, taxas de
infecção por doenças sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e
aborto nas democracias prósperas". Dan Dennett, em Quebrando o encanto,
faz comentários sardônicos sobre esses estudos em geral:
Inútil dizer que esses resultados abalam tão fortemente as alegações-padrão de que há uma virtude moral maior entre os religiosos que até surgiu uma onda considerável de pesquisas adicionais iniciadas por organizações religiosas que tentam refutá-las [...] uma coisa de que podemos ter certeza é que, se houver um relacionamento positivo e significativo entre o comportamento moral e a filiação, a prática ou a crença religiosa, ele logo será descoberto, já que tantas organizações religiosas estão tão ansiosas para confirmar cientificamente suas convicções tradicionais sobre a questão. (Elas estão bastante impressionadas com o poder da ciência para detectar a verdade quando ela apoia aquilo em que já acreditam.) Cada mês que passa sem que apareça essa demonstração reforça a suspeita de que as coisas simplesmente não são assim.
A maioria das pessoas sensatas concorda que a moralidade na ausência
de policiamento é mais verdadeiramente moral que o tipo de falsa moralidade
* Note que essas convenções para as cores nos Estados Unidos são exatamente o contrário das da Grã-Bretanha, onde o azul é a cor do Partido Conservador e o vermelho, assim como no resto do mundo, é a cor
tradicionalmente associada com a esquerda política.
que desaparece assim que a polícia entra em greve ou que a câmera de
vigilância é desligada, seja a câmera de verdade, monitorada na delegacia, ou
uma câmera imaginária no céu. Mas talvez seja injusto interpretar a pergunta "Se
não há Deus, por que se dar ao trabalho de ser bom?" de modo tão cínico.* Um
pensador religioso poderia oferecer uma interpretação mais genuinamente
moral, na linha da seguinte declaração de um apologista imaginário. "Se você
não acredita em Deus, não acredita que existem padrões absolutos de
moralidade. Com a maior boa vontade do mundo, você pode até querer ser uma
boa pessoa, mas corno vai decidir o que é bom e o que é ruim? Só a religião pode
fornecer definitivamente os padrões de bem e mal. Sem a religião você precisará
construí-los. Isso seria a moralidade sem normas: uma moralidade a olho. Se a
moralidade não é nada mais que uma questão de opção, Hitler poderia alegar
estar sendo moral por seus próprios padrões inspirados na eugenia, e tudo o que
o ateu pode fazer é ter uma escolha pessoal e viver sob uma orientação
diferente. O cristão, o judeu ou o muçulmano, pelo contrário, podem afirmar que
o mal tem um sentido absoluto, que vale para todos os tempos e todos os lugares, segundo o qual Hitler era completamente mau."
Mesmo que fosse verdade que precisamos de Deus para ser bons, isso
obviamente não tornaria a existência de Deus mais provável, apenas mais
desejável (muita gente não consegue enxergar a diferença). Mas não é disso que
se trata aqui. Meu apologista imaginário da religião não precisa admitir que
puxar o saco de Deus é a motivação religiosa para fazer o bem. A alegação dele é
que, venha de onde vier a motivação para fazer o bem, sem Deus não haveria
padrão para decidir o que é o bem. Cada um de nós criaria nossa própria
definição de bem e agiria de acordo com ela. Princípios morais que se baseiam
somente na religião (em oposição, por exemplo, à "regra de ouro", que
normalmente é associada à religião mas que pode ter outra origem) podem ser
chamados de absolutistas. Bem é bem e mal é mal, e não vamos ficar decidindo
casos isolados, por exemplo, pelo fato de alguém sofrer ou não. Meu apologista
* H. L. Mencken, de novo com seu sarcasmo característico, definiu a consciência como a voz interior que nos
adverte de que alguém pode estar olhando.
da religião defenderia que só a religião pode fornecer a base para que se decida
o que é o bem.
Alguns filósofos, notadamente Kant, tentaram tirar morais absolutas de
fontes não religiosas. Embora fosse religioso, como era quase inevitável naquela
época,* Kant tentou basear a moralidade no dever pelo dever, e não em nome
de Deus. Seu famoso imperativo categórico convoca-nos a "agir somente
segundo a máxima tal que possamos ao mesmo tempo querer que se torne lei
universal". Isso funciona direitinho para o exemplo de mentir.
Imagine um mundo em que as pessoas mintam por princípio, onde a
mentira seja considerada uma coisa boa e moral. Num mundo assim, mentir
deixaria de fazer sentido. Mentir precisa por definição da pressuposição da
verdade. Se um princípio moral é algo que devemos desejar que todos sigam,
mentir não pode ser um princípio moral, porque o próprio princípio desmoronaria, sem sentido. Mentir, como norma de vida, é inerentemente instável. Em
termos mais gerais, o egoísmo, ou o parasitismo explorador da boa vontade dos
outros, pode funcionar para mim, um indivíduo egoísta isolado, e me dar
satisfação pessoal. Mas não posso desejar que todo mundo adote o parasitismo
egoísta como princípio moral, no mínimo porque senão eu não teria ninguém
para explorar.
O imperativo kantiano parece funcionar para o dizer a verdade e para
alguns outros casos. Não é tão fácil assim ampliá-lo para a moralidade em geral.
Apesar de Kant, é tentador concordar com meu apologista hipotético que morais
absolutistas costumam ser motivadas pela religião. É sempre errado tirar uma
paciente terminal de seu sofrimento a pedido dela própria? É sempre errado
fazer amor com um integrante de seu próprio sexo? É sempre errado matar um
embrião? Há quem ache que sim, e suas bases são absolutas. Eles não toleram
argumentação nem debate. Qualquer um que discorde merece ser morto:
metaforicamente, é claro, não literalmente — exceto no caso de alguns médicos
de clínicas de aborto americanas (veja o próximo capítulo). Felizmente, no
entanto, as morais não têm de ser absolutas.
* Essa é a interpretação-padrão das idéias de Kant. O destacado filósofo A. C. Grayling, porém, argumentou
plausivelmente (New Humanist, julho-agosto de 2006) que, embora Kant seguisse publicamente as convenções
religiosas de seu tempo, na verdade ele era ateu.
Os filósofos morais são os profissionais em se tratando de pensar sobre o
certo e o errado. Como disse sucintamente Robert Hinde, eles concordam que
"os preceitos morais, embora não necessariamente construídos pela razão,
devem ser defensáveis pela razão".89 Eles se classificam de muitas maneiras, mas
na terminologia moderna a principal divisão é entre "deontologistas" (como
Kant) e "conseqüencialistas" (incluindo "utilitaristas" como Jeremy Bentham,
1748-1832). Deontologia é um nome bonito para a crença de que a moralidade
consiste em obedecer a regras. É literalmente a ciência do dever, do grego para
"aquilo que é obrigatório". A deontologia não é bem a mesma coisa que
absolutismo moral, mas para a maioria dos propósitos de um livro sobre religião
não há necessidade de enfatizar a distinção. Os absolutistas acreditam que
existem absolutos do certo e do errado, imperativos cuja correção não faz
referência a suas conseqüências. Os conseqüencialistas acham, mais
pragmaticamente, que a moralidade de uma ação deve ser julgada por suas
conseqüências. Uma versão do conseqüencialismo é o utilitarismo, a filosofia associada a Bentham, a seu amigo James Mill (1773-1836) e ao filho dele, John
Stuart Mill (1806-73). O utilitarismo é freqüentemente resumido na máxima de
Bentham, que é de uma imprecisão infeliz: "A maior felicidade para o maior
número de pessoas é a fundação das morais e da legislação".
Nem todo absolutismo deriva da religião. De qualquer maneira, é muito
difícil defender morais absolutistas em outras bases que não as religiosas. O
único concorrente em que consigo pensar é o patriotismo, especialmente em
tempos de guerra. Como disse o destacado cineasta espanhol Luis Buñuel, "Deus
e a Pátria são um time imbatível; eles quebram todos os recordes de opressão e
derramamento de sangue". Os oficiais que trabalham no recrutamento apelam
fortemente ao senso de dever patriótico de suas vítimas. Na Primeira Guerra
Mundial, as mulheres entregavam plumas brancas para jovens que não
estivessem fardados.
Oh, não queremos perdê-lo, mas achamos que você deve ir,
Pois seu rei e seu país precisam que você vá.
*
* "Oh, we don't want to lose you, but we think you ought to go,/ For your King and your country both need you
só." Trecho de uma música usada pela Inglaterra durante a Primeira Guerra para incentivar o alistamento. (N.
T.)
As pessoas ignoravam as objeções conscienciosas, mesmo as do país
inimigo, porque o patriotismo era tido como uma virtude absoluta. É difícil ser
mais absoluto que o "Meu país, certo ou errado" do soldado profissional, pois o
slogan faz com que você se comprometa a matar quem quer que os políticos de
algum tempo futuro resolvam chamar de inimigos. O raciocínio conseqüencialista pode influenciar a decisão política de ir à guerra, mas, uma vez
declarada a guerra, o patriotismo absoluto toma conta com uma força que não
se vê fora da religião. Um soldado que permitir que suas idéias de moralidade
conseqüencialista o convençam a não partir para o ataque tem grande
probabilidade de enfrentar a corte marcial ou até de ser executado.
O ponto de partida para esta discussão sobre filosofia moral foi uma
afirmação religiosa hipotética de que, sem um Deus, as morais são relativas e
arbitrárias. Deixando de lado Kant e outros filósofos morais sofisticados, e dando
o devido reconhecimento ao fervor patriótico, a fonte preferida da moralidade
absoluta é normalmente algum tipo de livro sagrado, interpretado como
detentor de uma autoridade que supera em muito sua capacidade histórica de
justificá-la. Na realidade, os adeptos da autoridade das Escrituras demonstram
uma curiosidade perturbadoramente pequena sobre as origens históricas
(comumente duvidosas) de seus livros sagrados. O próximo capítulo vai
demonstrar que, de qualquer jeito, as pessoas que afirmam retirar sua moral das
Escrituras na prática não fazem isso de verdade. O que é muito bom, como
concordarão elas se pensarem bem.
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