sábado, 23 de março de 2024

Deus, um delírio ( gota 9 )

RICHARD DAWKINS

Deus, um delírio
Tradução Fernanda Ravagnani
COMPANHIA DAS LETRAS

6. As raízes da moralidade: por que somos bons?


Estranha é nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós vem para uma curta passagem, sem saber por quê, ainda que algumas vezes tentando adivinhar um propósito. Do ponto de vista da vida cotidiana, porém, de uma coisa sabemos: o homem está aqui pelo bem de outros homens — acima de tudo daqueles de cujos sorrisos e bem-estar nossa própria felicidade depende.

 Albert Einstein


Muitas pessoas religiosas acham difícil imaginar como, sem a religião, é possível ser bom, ou mesmo querer ser bom. Discutirei esse tipo de questionamento neste capítulo. Mas as dúvidas vão mais longe, e levam algumas pessoas religiosas a paroxismos de ódio contra aqueles que não compartilham de sua fé. Trata-se de uma coisa importante, porque considerações morais se escondem por trás de atitudes religiosas em relação a outros tópicos que não têm ligação real com a moralidade. Boa parte da oposição ao ensinamento da evolução não tem nenhuma conexão com a evolução em si, ou com qualquer coisa de científico, mas é incitada por uma revolta moral. Isso vai desde o ingênuo "Se você ensinar às crianças que elas evoluíram dos macacos, elas vão agir como macacos" até a motivação subjacente mais sofisticada para toda a estratégia do "design inteligente", como impiedosamente desnudada por Barbara Forrest e Paul Gross em Creationism's Trojan horse: The wedge of intelligent design [Cavalo de Tróia do criacionismo: a consolidação do design inteligente]. Recebo grandes quantidades de cartas de leitores de meus livros,* a maioria delas agradável e entusiasmada, algumas com críticas úteis, e umas 

* Mais do que posso responder de forma adequada, fato pelo qual peço desculpas.

poucas horríveis e até cruéis. E as mais horríveis de todas, lamento dizer, são quase invariavelmente motivadas pela religião. Tal abuso tão anticristão costuma ser sentido por aqueles que são considerados inimigos do cristianismo. Aqui, por exemplo, está uma carta, publicada na internet e endereçada a Brian Flemming, autor e diretor de The god who wasrít there [O Deus que não estava lá],86 um filme sincero e emocionante que prega o ateísmo. Intitulada "Queime enquanto damos risada" e datada de 21 de dezembro de 2005, a carta a Flemming diz o seguinte:

Vocês têm mesmo muita cara-de-pau. Queria pegar uma faca, destripar vocês, seus idiotas, e gritar de alegria quando suas tripas saírem para fora bem na sua frente. Vocês estão tentando deflagrar uma guerra santa em que algum dia eu, e outros como eu, posso ter o prazer de tomar medidas como a mencionada acima.

O autor, nesse ponto, parece admitir com um certo atraso que seus termos não são muito cristãos, pois prossegue, mais caridoso:

No entanto, DEUS nos ensina a não buscar a vingança, mas a rezar por aqueles como vocês.

 Sua caridade, porém, dura pouco:

Vou me conformar em saber que a punição que deus infligirá a vocês será mil vezes pior que qualquer coisa que eu possa causar. A melhor parte é que vocês sofrerão por toda a eternidade por esses pecados que ignoram totalmente. A Ira de deus não terá misericórdia. Pelo seu próprio bem, espero que a verdade seja revelada a vocês antes que a faca se conecte a sua carne. Feliz NATAL!!! 

P. S. Vocês não fazem mesmo a menor ideia do que os aguarda... Agradeço a deus por não ser vocês.

Acho genuinamente intrigante que uma mera diferença de opiniões teológicas possa gerar tamanha virulência. Segue uma amostra das cartas ao editor da revista Freethought Today, publicada pela Fundação pela Liberdade da Religião (Freedom From Religion Foundation — FFRF), que faz campanhas pacifistas contra a erosão da separação constitucional entre a Igreja e o Estado:

Olá, comedores de queijo asquerosos. Tem muito mais de nós, cristãos, que de vocês, seus otários. NÃO tem separação de Igreja e Estado e vocês, pagãos, vão se dar mal.. 

Qual é a do queijo? Amigos americanos sugeriram uma ligação com o estado de Wisconsin, famoso por ser liberal — sede da FFRF e centro da indústria do laticínio —, mas certamente é mais que isso. E aqueles "macacos rendidos comedores de queijo" franceses? Qual é a iconografia semiótica do queijo? Continuando:

Escória adoradora de Satã [...] Por favor morram e vão para o inferno [...] Espero que vocês peguem uma doença doída como câncer retal e morram uma morte lenta e dolorosa, para que vocês possam encontrar o seu Deus, SATÃ [...] Ei, cara, essa coisa de liberdade da religião é uma droga [...] Então, bichas e sapatonas, vão com calma e olhem por onde andam que quando menos esperarem deus vai pegar vocês [...] Se vocês não gostam deste país e aquilo sobre o que e para que ele foi fundado, vão embora, porra, e vão direto para o inferno [...] 

P. S. Fodam-se, vagabundas comunistas [...] Tirem suas bundas pretas dos EUA [...] Vocês não têm desculpa. A criação é prova mais que suficiente do poder onipotente do SENHOR JESUS CRISTO.

Por que não do poder onipotente de Alá? Ou do Senhor Brahma? Ou até de Javé? 

Vocês não sairão impunes. Se no futuro isso exigir violência, lembrem-se de que foram vocês que provocaram. Meu fuzil está carregado.

Por que — não consigo deixar de questionar — se acha que Deus precisa de uma defesa tão feroz? Era de esperar que ele fosse amplamente capaz de tomar conta de si mesmo. Saiba, enquanto isso, que o editor que estava sendo agredido e ameaçado de forma tão cruel é uma moça educada e encantadora.

Talvez porque não moro nos Estados Unidos, a maioria da correspondência agressiva que recebo não pertence bem a esse time, mas também não exibe muito mais daquela caridade pela qual o fundador do cristianismo ficou famoso. A seguinte carta, datada de maio de 2005, de um médico britânico com doutorado, embora seja certamente agressiva, soa-me mais perturbada que odiosa, e revela como a questão da moralidade é um poço profundo de hostilidade contra o ateísmo. Depois de alguns parágrafos preliminares atacando a evolução (e perguntando sarcasticamente se um "Negro" "ainda está evoluindo"), insultando Darwin pessoalmente, fazendo citações enganosas de Huxley, dizendo que ele era antievolucionista, e incentivando-me a ler um livro (eu o li) que argumenta que o mundo só tem 8 mil anos de idade (como ele pode ter obtido um doutorado?), ele conclui:

Seus livros, seu prestígio em Oxford, tudo o que você ama na vida e já conseguiu conquistar, são um exercício de inutilidade completa [...] A pergunta-desafio de Camus torna-se inescapável: Por que não cometemos suicídio todos nós? Sua visão de mundo realmente tem esse tipo de efeito sobre estudantes e muitas outras pessoas [...] que nós todos evoluímos pelo acaso cego, do nada, e retornamos ao nada. Mesmo se a religião não fosse verdade, é melhor, muito melhor, acreditar em um mito nobre, como o de Platão, se ele traz paz de espírito enquanto vivemos. Mas sua visão de mundo leva à ansiedade, à dependência das drogas, à violência, ao niilismo, ao hedonismo, à ciência Frankenstein, e ao inferno na terra, e à Terceira Guerra Mundial [...] Fico imaginando se você é feliz em seus relacionamentos pessoais. Divorciado? Viúvo? Gay? Aqueles como você nunca são felizes, ou então não se esforçariam tanto para provar que não existe felicidade nem significado em nada.

O sentimento dessa carta, se não seu tom, é típico de muitas delas. O darwinismo, acredita essa pessoa, é inerentemente niilista, ensinando que evoluímos pelo acaso cego (pela enésima vez, a seleção natural é exatamente o contrário de um processo casual) e que somos aniquilados quando morremos. Como conseqüência direta de tamanho suposto negativismo, acontece todo tipo de mal. Presumo que ele não tenha mesmo querido sugerir que a viuvez pudesse ser conseqüência direta do meu darwinismo, mas sua carta, naquele ponto, já havia chegado àquele nível de malevolência frenética que reconheço tantas vezes entre meus correspondentes cristãos. Dediquei um livro inteiro (Desvendando o arco-íris) ao significado último, à poesia da ciência e a rebater, especificamente e a fundo, a acusação de negativismo niilista, portanto devo me conter aqui. Este capítulo é sobre o mal, e seu oposto, o bem; sobre a moralidade: de onde ela vem, por que devemos adotá-la, e se precisamos da religião para fazê-lo.

NOSSO SENSO MORAL TEM ORIGEM DARWINIANA? 

Vários livros, como Why good is good [Por que o bom é bom], de Robert Hinde, The science of good and evil [A ciência do bem e do mal], de Michael Shermer, Can we be good without God? [Podemos ser bons sem Deus?], de Robert Buckman, e Moral minds [Mentes morais], de Marc Hauser, argumentaram que nosso senso de certo e errado pode ser resultado de nosso passado darwiniano. Essa seção representa a minha visão sobre esse argumento. 

À primeira vista, a ideia darwiniana de que a evolução é impulsionada pela seleção natural parece inadequada para explicar bondades como a que possuímos, ou nosso sentimento de moralidade, decência, empatia e piedade. A seleção natural explica com facilidade a fome, o medo e o desejo sexual, que contribuem diretamente para nossa sobrevivência ou para a preservação de nossos genes. Mas e a compaixão arrebatadora que sentimos quando vemos uma criança órfã chorando, uma viúva idosa desesperada de solidão ou um animal ganindo de dor? O que nos fornece o fortíssimo impulso de mandar uma doação anônima em dinheiro ou roupas para vítimas do tsunami do outro lado do mundo, que jamais encontraremos, e que dificilmente devolverão o favor? De onde vem o Bom Samaritano que existe em nós? A bondade não é incompatível com a teoria do "gene egoísta"? Não. Esse é um equívoco comum na compreensão da teoria — um equívoco perturbador (e, analisando em retrocesso, previsível).* É necessário colocar a ênfase na palavra certa. O gene egoísta é a ênfase correta, pois contrasta com o organismo egoísta, digamos, ou a espécie egoísta. Deixeme explicar. 

A lógica do darwinismo conclui que a unidade na hierarquia da vida que sobrevive e passa pelo filtro da seleção natural tenderá a ser egoísta. As unidades que sobrevivem no mundo serão aquelas que forem bem-sucedidas 

* Fiquei mortificado quando li no The Guardian ("Animal Instincts", 27 de maio de 2006) que O gene egoísta é o livro favorito de Jeff Skilling, CEO da malfadada Enron Corporation, e que ele se inspirou numa característica do darwinismo social tirada dele. O jornalista do The Guardian Richard Conniff dá uma boa explicação sobre o equívoco: http://money.guardian.co.uk/workweekly/story/ 0,,1783900,00.html. Tentei impedir equívocos de interpretação semelhantes em meu novo prefácio à edição de trigésimo aniversário de O gene egoísta, recém-lançada pela Oxford University Press.

em sobreviver em detrimento de seus rivais em seu próprio nível de hierarquia. É precisamente isso o que egoísta quer dizer nesse contexto. A questão é: qual é o nível da ação? A idéia do gene egoísta, com a ênfase devidamente aplicada na palavra gene, é que a unidade da seleção natural (isto é, a unidade do egoísmo) não é o organismo egoísta, nem o grupo egoísta ou a espécie egoísta ou o ecossistema egoísta, mas o gene egoísta. É esse gene que, na forma de informação, ou sobrevive por muitas gerações ou não sobrevive. Diferentemente do gene (e talvez do meme), o organismo, o grupo e a espécie não são o tipo certo de entidade para funcionar como unidade nesse sentido, porque não fazem cópias exatas de si mesmos, e não competem num universo de unidades auto-replicantes. Isso é exatamente o que os genes fazem, e essa é a justificativa — essencialmente lógica — para destacar o gene como a unidade de "egoísmo" no sentido especial e darwiniano de egoísmo.

O modo mais óbvio de os genes garantirem sua sobrevivência "egoísta" em relação a outros genes é programando organismos isolados para que eles sejam egoístas. Há muitas circunstâncias em que a sobrevivência de um organismo isolado favorecerá a sobrevivência dos genes que viajam dentro dele. Mas circunstâncias diferentes favorecem táticas diferentes. Existem circunstâncias — que não são especialmente raras — em que os genes garantem sua sobrevivência egoísta influenciando os organismos a agir de forma altruísta. Essas circunstâncias são hoje bastante bem compreendidas e encaixam-se em duas categorias principais. Um gene que programa organismos isolados para favorecer seus parentes genéticos é estatisticamente mais propenso a beneficiar cópias de si mesmo. A freqüência de um gene como esse pode aumentar, no universo genético, até o ponto em que o altruísmo entre os pares se transforme em norma. Tratar bem o filho dos outros é o exemplo óbvio, mas não é o único. Abelhas, vespas, formigas, cupins e, em menor proporção, determinados vertebrados como o rato-toupeira pelado, os suricatos e os pica-paus bolotei-ros desenvolveram sociedades em que os irmãos mais velhos tomam conta dos mais novos (com quem eles provavelmente compartilham os genes para cuidar). Em geral, como mostrou meu falecido colega W. D. Hamilton, os animais tendem a cuidar de familiares, defendê-los, dividir recursos com eles, adverti-los de perigos e mostrar altruísmo em relação a eles por causa da probabilidade estatística de que aquele parente tenha cópias dos mesmos genes.

O outro tipo principal de altruísmo para o qual há uma razão darwiniana bem explicada é o altruísmo recíproco ("Coce as minhas costas que eu coço as suas"). Essa teoria, apresentada pela primeira vez na biologia evolutiva por Robert Trivers, e freqüentemente expressa na terminologia matemática da teoria dos jogos, não se apoia no compartilhamento de genes. Na verdade, ela funciona tão bem quanto, e talvez até melhor, entre membros de espécies totalmente diferentes, situação em que muitas vezes é chamada de simbiose. O princípio é a base de todo o comércio e dos escambos também para os seres humanos. O caçador precisa de uma lança e o ferreiro quer carne. A assimetria serve de intermediária para o acordo. A abelha precisa de néctar e a flor precisa da polinização. As flores não voam, portanto pagam às abelhas, na moeda do néctar, pelo aluguel de suas asas. Pássaros chamados indicadores encontram as colmeias de abelhas, mas não conseguem penetrar nelas. Os rateis conseguem entrar nas colmeias, mas não têm asas para procurá-las. Os indicadores levam os rateis (e às vezes os homens) até o mel com um voo especialmente chamativo, que não tem nenhum outro objetivo. Os dois lados beneficiam-se com a transação. Pode haver um pote de ouro sob uma pedra que seja pesada demais para ser removida pelo autor da descoberta. Ele pede a ajuda de outras pessoas, mesmo que tenha de dividir o ouro, porque sem a ajuda ficaria sem ouro nenhum. Os reinos vivos estão cheios desses relacionamentos mutualistas: búfalos e pica-bois, lobélias e beija-flores, garoupas e bodiões-limpadores, vacas e os micro-organismos de seu sistema digestivo. O altruísmo recíproco funciona por causa das assimetrias nas necessidades e na capacidade de satisfazê-las. É por isso que ele funciona especialmente bem entre espécies diferentes: as assimetrias são maiores. 

Entre os seres humanos, as duplicatas e o dinheiro são dispositivos que permitem um intervalo de tempo entre as transações. Os dois lados do negócio não precisam entregar os bens simultaneamente, mas podem ficar devendo para o futuro, ou mesmo negociar a dívida com outras pessoas. Que eu saiba, nenhum animal não humano possui um equivalente direto do dinheiro. Mas a memória da identidade individual faz o mesmo papel, de maneira mais informal. Morcegos vampiros descobrem em que outros indivíduos de seu grupo social podem confiar, quem paga suas dívidas (em sangue regurgitado) e quais são os que trapaceiam. A seleção natural favorece os genes que predisponham os indivíduos, em relacionamentos em que haja necessidade assimétrica e oportunidade, a ajudar quando podem, e a solicitar favores quando não podem. Ela também favorece a tendência a lembrar-se de obrigações, a guardar ressentimentos, a policiar relacionamentos de troca e a punir traidores que aceitam favores, mas não os fazem quando chega sua vez.

Pois sempre haverá traidores, e as soluções estáveis para os enigmas de altruísmo recíproco da teoria dos jogos sempre envolvem um elemento de punição para os traidores. A teoria matemática permite duas categorias amplas de solução estável para "jogos" desse tipo. "Trair sempre" é estável porque, se todo mundo fizer isso, um indivíduo isolado que seja honesto não vai se dar bem. Mas existe outra estratégia que também é estável. ("Estável" quer dizer que, uma vez que ela supere determinada frequência numa população, nenhuma alternativa se sai melhor.) É a estratégia "Comece sendo legal, e dê aos outros o benefício da dúvida. A seguir pague as boas ações com boas ações, mas vingue-se das más ações". Na terminologia da teoria dos jogos, essa estratégia (ou família de estratégias relacionadas) possui vários nomes, como Tit for Tat, olho por olho ou de replicadores. Ela é evolutivamente estável sob certas condições no sentido em que, tomando-se uma população dominada por replicadores, nenhum indivíduo traidor, e nenhum indivíduo incondicionalmente cooperativo, terá vantagem. Existem outras variações mais complexas de olho por olho que sob algumas circunstâncias podem ter vantagem.

Mencionei o relacionamento familiar e a reciprocidade como os pilares gémeos do altruísmo num mundo darwiniano, mas existem estruturas secundárias que se apoiam nesses pilares. Especialmente na sociedade humana, com a linguagem e as fofocas, a reputação é importante. Um indivíduo pode ter reputação de bondade e generosidade. Outro indivíduo pode ter reputação de não ser confiável, por trapacear e descumprir acordos. Outro pode ter reputação de generosidade quando a confiança já se consolidou, mas de punir impiedosamente as traições. A teoria bruta do altruísmo recíproco prevê que animais de qualquer espécie baseiem seu comportamento na resposta inconsciente a essas características em seus iguais. Nas sociedades humanas, ainda há o poder que a linguagem tem para espalhar reputações, normalmente na forma de fofoca. Você não precisa ter sido pessoalmente vítima do fato de o fulano não ter querido pagar as bebidas no bar quando chegou a vez dele. Ouve "boatos" de que fulano é mão-de-vaca, ou — para acrescentar uma complicação irônica ao exemplo — que sicrano é um fofoqueiro incorrigível. A reputação é importante, e os biólogos reconhecem o valor de sobrevivência darwiniana não só em ser um bom replicador, mas também em cultivar uma reputação de bom replicador. O livro As origens da virtude, de Matt Ridley, além de ser uma explicação lúcida sobre o campo da moralidade darwiniana, é especialmente bom no que diz respeito à reputação.*

O economista americano de origem norueguesa Thorstein Veblen e, de um jeito bastante diferente, o zoólogo israelense Amotz Zahavi acrescentaram uma idéia ainda mais fascinante. A doação altruísta pode ser uma propaganda de dominância ou superioridade. Os antropólogos conhecem esse fenômeno como Efeito Potlatch, o nome do costume pelo qual chefes rivais de tribos do noroeste do Pacífico competem entre si em duelos de festas de uma generosidade destrutiva. Nos casos extremos, o entretenimento retaliatório prossegue até que um dos lados esteja reduzido à penúria, e o vencedor não fica numa situação muito melhor. O conceito de Veblen de "consumo conspícuo" tem grande impacto sobre vários observadores do cenário moderno. A contribuição de Zahavi, desprezada por muitos anos pelos biólogos, até ser ratificada pelos brilhantes modelos matemáticos do teórico Alan Grafen, oferece uma versão

* A reputação não se restringe aos seres humanos. Foi recentemente demonstrado que ela se aplica a um dos casos clássicos do altruísmo recíproco em animais, o relacionamento simbiótico entre o pequeno peixe limpador e seus clientes, os peixes maiores. Num experimento engenhoso, um bodião-limpador específico, o Labroides dimidtatus, que já tivesse sido observado pelo potencial cliente limpando diligentemente, tinha mais chance de ser escolhido pelo cliente que outros limpadores rivais que tivessem sido vistos negligenciando a limpeza. Veja R. Bshary e A. S. Grutter, "Image scoring and cooperation in a cleaner fish mutualism" [Avaliação de imagem e cooperação no mutualismo do peixe limpador], Nature 441, 22/6/2006, pp. 975-8.

evolutiva da ideia do potlatch. Zahavi estuda zaragateiros-árabes, pequenos pássaros marrons que vivem em grupos sociais e reproduzem-se de forma cooperativa. Como muitos passarinhos, os zaragateiros dão gritos de alerta e também doam alimentos entre si. Uma investigação darwiniana-padrão sobre tais atos de altruísmo procuraria, em primeiro lugar, por relações de replicação e de laços familiares entre os pássaros. Quando um zaragateiro alimenta seu companheiro, faz isso na expectativa de ser alimentado depois? Ou o beneficiário do favor é um parente genético próximo? A interpretação de Zahavi é radicalmente surpreendente. Os zaragateiros dominantes afirmam sua dominância alimentando os subordinados. Para usar o tipo de linguagem antropomórfica que Zahavi adora, o pássaro dominante está dizendo o equivalente a: "Olhe como sou superior em relação a você, posso até lhe dar comida". Ou:, "Olhe como sou superior, posso até ficar vulnerável de propósito às águias parando num ramo alto, agindo como sentinela para alertar o resto do grupo que está comendo no chão". As observações de Zahavi e seus colegas sugerem que os zaragateiros competem ativamente pelo perigoso papel de sentinela. E, quando um zaragateiro subordinado tenta oferecer comida a um indivíduo dominante, a aparente generosidade é rejeitada com violência. A essência da ideia de Zahavi é que a propaganda de superioridade ganha autenticidade por seu custo. Só um indivíduo genuinamente superior pode se dar ao luxo de propagandear esse fato como um presente caro. Os indivíduos compram o sucesso, por exemplo na atração de parceiros, através de demonstrações caras de superioridade, incluindo a generosidade ostentatória e as situações de perigo cujo objetivo é ser vistas pelo público. 

Temos agora quatro bons motivos darwinianos para que os indivíduos sejam altruístas, generosos ou "morais" uns com os outros. Em primeiro lugar, há o caso especial do parentesco genético. Em segundo, há a replicação: o pagamento dos favores recebidos, e a execução de favores "antecipando" seu pagamento. Depois desses vem, em terceiro lugar, o benefício darwiniano de adquirir uma reputação de generosidade e bondade. E, em quarto, se Zahavi estiver certo, vem o benefício adicional específico da generosidade conspícua, como forma de comprar uma propaganda autêntica e impossível de falsificar.

Pela maior parte de nossa pré-história, os seres humanos viveram sob condições que teriam favorecido fortemente a evolução de todos os quatro tipos de altruísmo. Morávamos em aldeias, ou, antes, em bandos nômades independentes como os dos babuínos, parcialmente isolados em relação a bandos ou aldeias vizinhos. A maioria dos outros membros de nosso bando teria sido formada por familiares, com uma relação mais próxima a você que os membros de outros bandos — muitas oportunidades para a evolução do altruísmo familiar. E, parente ou não, você tenderia a encontrar sempre os mesmos indivíduos ao longo de sua vida — condições ideais para a evolução do altruísmo recíproco. Essas também são as condições ideais para a construção de uma reputação de altruísmo, e ao mesmo tempo as condições ideais para propagandear a generosidade conspícua. Por qualquer um desses quatro caminhos, as tendências genéticas para o altruísmo teriam sido favorecidas nos primeiros seres humanos. Dá para entender com facilidade por que nossos ancestrais pré-históricos seriam bons com seu próprio grupo mas cruéis — até o ponto da xenofobia — para com outros grupos. Mas por que — agora que a maioria de nós mora em grandes cidades, onde não somos mais cercados pelos parentes, e onde todo dia encontramos indivíduos que nunca mais veremos na vida —, por que ainda somos tão bons uns com os outros, e às vezes até com outros que se imaginaria pertencerem a um grupo de fora? É importante não exagerar o alcance da seleção natural. A seleção não favorece a evolução de uma consciência cognitiva sobre o que é bom para os seus genes. Essa consciência teve de esperar pelo século XX para alcançar o nível cognitivo, e mesmo agora o entendimento pleno está confinado a uma minoria de especialistas em ciência. O que a seleção natural favorece são regras gerais, que funcionam na prática para promover os genes que as constroem. As regras gerais, por natureza, às vezes dão errado. No cérebro de um pássaro, a regra "Cuide das coisinhas pequenas que piam em seu ninho, e jogue comida no biquinho aberto delas" normalmente tem o efeito de preservar os genes que criam essa regra, porque os objetos piantes de biquinho aberto no ninho de um pássaro adulto costumam ser sua própria cria. A regra dá errado se outro filhote de passarinho conseguir entrar no ninho, uma circunstância usada de forma positiva pelos cucos. Não é possível que nossos impulsos de Bom Samaritano sejam erros, análogos ao equívoco dos instintos paternos de um rouxinol-dos-caniços que se esforça para alimentar um jovem cuco? Uma analogia ainda mais próxima é o impulso humano de adotar uma criança. Devo me apressar a dizer que "erro" refere-se apenas ao sentido estritamente darwiniano. Não carrega nenhum tom pejorativo.
 
A ideia do "erro" ou do "subproduto", que estou adotando, funciona assim. A seleção natural, nos tempos ancestrais, quando vivíamos em bandos pequenos e estáveis como o dos babuí-nos, programou impulsos altruístas em nosso cérebro, junto com impulsos sexuais, impulsos de fome, impulsos xenofóbicos, e assim por diante. Um casal inteligente pode ler Darwin e saber que o motivo último de seus impulsos sexuais é a procriação. Eles sabem que a mulher não ficará grávida porque está tomando pílula. Mesmo assim seu interesse sexual não fica diminuído por esse conhecimento. Desejo sexual é desejo sexual, e sua força, na psicologia individual, independe da pressão darwiniana que o provocou. É um forte impulso que existe de forma independente de sua explicação racional. 

Estou sugerindo que a mesma coisa aconteça com a bondade — com o altruísmo, a generosidade, a empatia, a compaixão. Nos tempos ancestrais, só tínhamos a oportunidade de ser altruístas em relação aos parentes próximos e a potenciais replicadores. Hoje essa restrição não existe mais, mas a regra geral persiste. Por que não persistiria? É a mesma coisa que o desejo sexual. Não podemos fazer nada para deixar de sentir pena quando vemos um desafortunado chorando (que não seja nosso parente e não seja capaz de retribuir), assim como não podemos fazer nada para deixar de sentir desejo por um integrante do sexo oposto (que pode ser estéril ou incapaz de se reproduzir). As duas situações são "erros", equívocos darwinianos: equívocos abençoados e maravilhosos.

Não encare, nem por um segundo, essa darwinização como desmerecedora das nobres emoções da compaixão e da generosidade. Nem do desejo sexual. O desejo sexual, quando canalizado pelos conduítes da cultura linguística, ressurge na forma de grandes obras de poesia e de dramaturgia: os

poemas de amor de John Donne, por exemplo, ou Romeu e Julieta. E é claro que a mesma coisa acontece com o redirecionamento equivocado da compaixão baseada no parentesco e na retribuição. A piedade em relação a um devedor, quando vista fora de contexto, é tão antidarwiniana quanto adotar o filho de outra pessoa: 

A qualidade da misericórdia não é forçada. 

Ela cai como a chuva mansa dos céus 

Sobre o que está embaixo.*

O desejo sexual é a força que impulsiona uma grande proporção da ambição e do esforço humanos, e boa parte dela constitui um erro. Não há nenhum motivo para que o mesmo não possa acontecer com o desejo de ser generoso e piedoso, se essa é a conseqüência equivocada da vida nas aldeias de nossos ancestrais. A melhor maneira de a seleção natural imprimir os dois tipos de desejo nos tempos ancestrais foi instalando regras gerais no cérebro. Essas regras ainda nos influenciam hoje em dia, mesmo quando as circunstâncias as tornam inadequadas a suas funções originais.

Essas regras gerais ainda nos influenciam, não de uma forma calvinisticamente determinista, mas filtradas pelas influências civilizadoras da literatura e dos costumes, da lei e das tradições — é, é claro, da religião. Assim como a regra cerebral primitiva do desejo sexual passa pelo filtro da civilização para ressurgir nas cenas românticas de Romeu e Julieta, as regras primitivas do "nós-contra-eles" no cérebro ressurgem na forma das batalhas entre os Capuleto e os Montecchio; enquanto as regras primitivas do cérebro de altruísmo e empatia acabam provocando o equívoco que nos anima na reconciliação punitiva da cena final de Shakespeare. 

* "The quality of mercy is not strained./ It droppeth as the gentle rain from heaven/ Upon the place beneath." (N. T.)

UM ESTUDO DE CASO DAS RAÍZES DA MORALIDADE Se nosso senso moral, assim como nosso desejo sexual, estiver mesmo profundamente enraizado em nosso passado darwiniano, que precede a religião, a expectativa seria de que pesquisas na mente humana revelassem algumas universais da moral, cruzando fronteiras geográficas e culturais, e também, o mais crucial, barreiras religiosas. O biólogo de Harvard Marc Hauser, em seu livro Moral minas: How nature designed our universal sense ofright and wrong [Mentes morais: como a natureza desenhou nosso senso de certo e errado], ampliou uma linha fértil de experiências de pensamento que havia sido originalmente sugerida por filósofos morais. O estudo de Hauser servirá ainda para apresentar o modo como pensam os filósofos morais. Um dilema moral hipotético é formulado, e a dificuldade que sentimos para responder a ele é reveladora em relação a nosso senso de certo e errado. Hauser vai além dos filósofos porque realiza pesquisas estatísticas e experiências psicológicas, usando questionários na internet, por exemplo, para investigar o senso moral de pessoas de verdade. Do ponto de vista atual, o interessante é que a maioria das pessoas chega às mesmas decisões quando fica diante desses dilemas, e sua concordância em relação às próprias decisões é mais forte que sua capacidade de articular suas motivações. É o que esperaríamos se tivéssemos um senso moral que esteja impresso em nosso cérebro, como nosso instinto sexual ou nosso medo de altura, ou, como Hauser prefere dizer, como nossa capacidade para a linguagem (os detalhes variam de cultura para cultura, mas a estrutura subjacente da gramática é universal). Como veremos, o modo como as pessoas respondem a esses testes morais, e sua incapacidade de articular suas motivações, parece ser em grande parte independente de suas crenças religiosas ou da ausência delas. A mensagem do livro de Hauser, para antecipála nas próprias palavras dele, é essa: "Orientando nossos juízos morais há uma gramática moral universal, uma faculdade da mente que evoluiu ao longo de milhões de anos, até incluir um conjunto de princípios para formar uma série de sistemas morais possíveis. Assim como com a linguagem, os princípios que compõem nossa gramática moral voam abaixo do radar de nossa consciência". 

São típicas dos dilemas morais de Hauser as variações sobre o tema do vagão ou bonde descontrolado que ameaça matar um grupo de pessoas. A história mais simples propõe que uma pessoa, Denise, está num centro de controle em condições de mandar o bonde para um desvio, salvando portanto a vida das cinco pessoas presas na linha principal. Infelizmente há um homem preso no desvio. Mas, como ele é apenas um, menos que as cinco pessoas presas na linha principal, a maioria das pessoas concorda que é moralmente permissível, se não obrigatório, que Denise mexa no controle e salve os cinco, matando o homem do desvio. Ignoramos possibilidades hipotéticas como a de que o homem no desvio possa ser Beethoven, ou um amigo íntimo.

As elaborações sobre a experiência de pensamento apresentam uma série de enigmas morais cada vez mais provocadores. E se o vagão puder ser contido pelo lançamento de um peso em seu caminho, de cima de urna ponte? É fácil: obviamente temos que jogar o peso. Mas e se o único peso disponível for um homem muito gordo que esteja na ponte admirando o pôr-do-sol? Quase todo mundo concorda que é imoral empurrar o gordo ponte abaixo, mesmo que, de determinado ponto de vista, o dilema possa parecer paralelo ao de Denise, em que a ação de mexer no controle mata um para salvar cinco. A maioria de nós tem a forte intuição de que há uma diferença crucial entre os dois casos, embora talvez não consigamos articular qual ela é.

Empurrar o gordo ponte abaixo remete a outro dilema analisado por Hauser. Cinco pacientes de um hospital estão morrendo, cada um da falência de um órgão diferente. Cada um seria salvo se um doador daquele órgão específico pudesse ser encontrado, mas não há nenhum disponível. O cirurgião percebe então que há um homem saudável na sala de espera, com todos os cinco órgãos em boas condições e adequados para o transplante. Nesse caso, é quase impossível encontrar alguém que esteja disposto a dizer que o ato moral é matar um para salvar os cinco.

Assim como com o gordo da ponte, a intuição que a maioria de nós tem é que um observador inocente não deve ser subitamente sugado por uma situação desafortunada e usado pelo bem de outras pessoas sem o seu consentimento. Immanuel Kant articulou o famoso princípio de que um ser racional jamais deve ser usado como um mero meio para um fim, sem seu consentimento, mesmo que esse fim seja beneficiar outras pessoas. Parece vir daí a diferença crucial entre o caso do gordo da ponte (ou o homem da sala de espera do hospital) e o homem no desvio de Denise. O gordo da ponte está sendo positivamente usado como forma de conter o avanço do vagão. Isso viola claramente o princípio kantiano. A pessoa no desvio não está sendo usada, apenas tem .o azar de estar nele. Mas, quando a distinção é colocada dessa forma, por que ela nos satisfaz? Para Kant, era um absoluto moral. Para Hauser isso faz parte de nós, colocado em nós pela evolução.

As situações hipotéticas envolvendo o vagão desgovernado vão se tornando cada vez mais engenhosas, e os dilemas morais equivalentemente mais tortuosos. Hauser contrasta os dilemas enfrentados por indivíduos hipotéticos chamados Ned e Oscar. Ned está ao lado da linha do trem. Diferentemente de Denise, que podia mandar o vagão para um desvio, o controle de Ned o manda para um desvio circular que volta para a linha principal pouco antes das cinco pessoas. Mudar simplesmente a direção não adianta: o vagão vai bater nos cinco de qualquer jeito quando o desvio voltar para a linha principal. No entanto, enquanto a coisa acontece, há um homem extremamente gordo no desvio circular, que é pesado o suficiente para parar o bonde. Deveria Ned mexer no controle e desviar o trem? A intuição da maioria das pessoas diz que não. Mas qual é a diferença entre o dilema de Ned e o de Denise? Presume-se que as pessoas estejam intuitivamente aplicando o princípio de Kant. Denise desvia o vagão de atropelar as cinco pessoas, e a vítima infeliz do desvio é um "dano colateral", para usar o adorável termo rumsfeldiano. Ele não está sendo usado por Denise para salvar os outros. Ned está usando o homem gordo para deter o vagão, e a maioria das pessoas (talvez sem pensar), junto com Kant (que pensou com todos os detalhes), encara isso como uma diferença crucial. 

A diferença é evidenciada novamente pelo dilema de Oscar. A situação de Oscar é idêntica à de Ned, com a exceção de que há um grande peso de ferro no desvio circular da pista, pesado o suficiente para deter o vagão. É claro que Oscar não deve ter problemas para decidir mexer no controle e desviar o bonde. Exceto pelo fato de que há uma pessoa caminhando na frente do peso de ferro. Ela certamente morrerá se Oscar acionar o desvio, assim como o homem gordo de Ned morreria. A diferença é que o andarilho de Oscar não está sendo usado para conter o vagão: ele é um dano colateral, assim como no dilema de Denise. Da mesma forma que Hauser, e da mesma forma que a maioria dos sujeitos das experiências de Hauser, acho que Oscar pode acionar o controle, mas Ned não. Mas também acho bastante difícil justificar minha intuição. A tese de Hauser é que esse tipo de intuição moral freqüentemente não é pensado, mas que o sentimos com contundência do mesmo jeito, por causa de nossa herança evolutiva.

Numa incursão intrigante na antropologia, Hauser e seus colegas adaptaram seus experimentos morais aos kuna, uma pequena tribo da América Central que mantém pouco contato com os ocidentais e não possui religião formal. Os pesquisadores mudaram a experiência de pensamento do "vagão na linha de trem" para equivalentes mais adequados, como crocodilos nadando na direção de canoas. Com as pequenas diferenças correspondentes, os kuna mostram os mesmos juízos morais que a maioria de nós.

Hauser também especulou, de especial interesse para este livro, se as pessoas religiosas têm intuições morais diferentes das dos ateus. Se tiramos nossa moralidade da religião, certamente deveria haver diferença. Mas parece que não há. Hauser, trabalhando com o filósofo moral Peter Singer,87 concentrou-se em três dilemas hipotéticos e comparou os veredictos de ateus com os de pessoas religiosas. Em cada um dos casos, pediu-se aos entrevistados que escolhessem qual atitude hipotética seria moralmente "obrigatória", "permissível" ou "proibida". Os três dilemas eram: 

1 O dilema de Denise. Noventa por cento das pessoas disseram que era permissível desviar o vagão, matando um para salvar cinco. 

2 Você vê uma criança se afogando num lago e não há nenhuma outra ajuda à vista. Você pode salvar a criança, mas suas calças ficarão arruinadas no processo. Noventa e sete por cento concordaram que você deve salvar a criança (o incrível é que 3% aparentemente prefeririam salvar as calças). 

3 O dilema do transplante de órgãos descrito anteriormente. Noventa e sete por cento dos entrevistados concordaram que é moralmente proibido capturar a pessoa saudável da sala de espera e matá-la para usar seus órgãos, salvando assim cinco pessoas.

A principal conclusão do estudo de Hauser e Singer foi que não há diferença estatisticamente significativa entre ateus e crentes religiosos na elaboração desses juízos. Esse fato parece compatível com a opinião, minha e de muitas outras pessoas, de que não precisamos de Deus para sermos bons — ou maus. 

SE DEUS NÃO EXISTE, POR QUE SER BOM?

Apresentada assim, a pergunta soa realmente ignóbil. Quando uma pessoa religiosa dirige-a desse jeito para mim (e muitas fazem isso), minha tentação imediata é lançar o seguinte desafio: "Você realmente quer me dizer que o único motivo para você tentar ser bom é para obter a aprovação e a recompensa de Deus, ou para evitar a desaprovação dele e a punição? Isso não é moralidade, é só bajulação, puxação de saco, estar peocupado com a grande câmera de vigilância dos céus, ou com o pequeno grampo de dentro da sua cabeça que monitora cada movimento seu, até seus pensamentos mais ordinários". Como disse Einstein, "se as pessoas são boas só porque temem a punição, e esperam a recompensa, então nós somos mesmo uns pobres coitados". Michael Shermer, em The science of good and evil, acha que a pergunta encerra o debate. Se você acha que, na ausência de Deus, "cometeria roubos, estupros e assassinatos", revela-se uma pessoa imoral, "e faríamos bem em nos manter bem longe de você". Se, por outro lado, você admite que continuaria sendo uma boa pessoa mesmo quando não estiver sob a vigilância divina, você destruiu fatalmente a alegação de que Deus é necessário para que sejamos bons. Suspeito que boa parte das pessoas religiosas realmente ache que a religião é o que as motiva a serem boas, especialmente se elas pertencem a uma daquelas crenças que exploram sistematicamente a culpa pessoal. 

A mim me parece que é preciso uma dose muito baixa de auto-estima para achar que, se a crença em Deus desaparecesse repentinamente do mundo, todos nós nos tornaríamos hedonistas insensíveis e egoístas, sem nenhuma bondade, caridade, generosidade, nada que mereça o nome de bondade. Acredita-se que Dostoiévski fosse dessa opinião, supostamente devido a algumas declarações que ele colocou na boca de Ivan Karamázov:
 
[Ivan] observou com solenidade que não existia absolutamente nenhuma lei da natureza que fizesse o homem amar a humanidade, e que, se o amor realmente existia e havia existido no mundo até então, não era por causa da lei natural, mas só porque o homem acreditava em sua própria imortalidade. Ele acrescentou, num adendo, que era exatamente aquilo que constituía a lei natural, ou seja, que uma vez que a fé do homem em sua própria imortalidade fosse destruída, não seria só sua capacidade para o amor que se esgotaria, mas também as forças vitais que sustentam a vida neste planeta. Além do mais, nada seria imoral, tudo seria permitido, até a antropofagia. E, por fim, como se tudo isso não bastasse, ele declarou que para cada pessoa, como eu e você, por exemplo, que não acredita nem em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei natural está destinada a transformar-se imediatamente no exato contrário da lei baseada na religião que a precedia, e que o egoísmo, mesmo levando à perpetração de crimes, não seria somente permissível, mas seria reconhecido como a raison d'être essencial, mais racional e mais nobre da condição humana.88

Talvez por ingenuidade tendi para uma visão menos cínica da natureza humana que a de Ivan Karamázov. Será que realmente precisamos de policiamento — seja feito por Deus ou por nós mesmos — para que não nos comportemos de modo egoísta e criminoso? Quero muito acreditar que não preciso dessa vigilância — nem você, caro leitor. Por outro lado, só para enfraquecer nossa convicção, leia a experiência sobre a desilusão de Steven Pinker numa greve policial em Montreal, descrita por ele em Tabula rasa:

Quando eu era adolescente, no orgulhosamente pacífico Canadá, durante os românticos anos 1960, era um defensor fiel da anarquia de Bakunin. Ria do argumento de meus pais de que se o governo entregasse as armas o caos tomaria conta de tudo. Nossas previsões concorrentes foram postas à prova às oito horas da manhã do dia 17 de outubro de 1969, quando a polícia de Montreal entrou em greve. Às onze e vinte, o primeiro banco tinha sido roubado. Ao meio-dia a maioria das lojas do centro da cidade havia fechado as portas por causa dos saques. Algumas horas depois, taxistas incendiaram a garagem de um serviço de aluguel de limusines que concorria com eles por passageiros do aeroporto, um atirador assassinou um policial da província, baderneiros invadiram hotéis e restaurantes e um médico matou um ladrão em sua casa, no subúrbio. No fim do dia, seis bancos haviam sido assaltados, cem lojas haviam sido, saqueadas, doze incêndios haviam sido provocados, quilos e quilos de vidros de vitrines haviam sido quebrados e 3 milhões de dólares em prejuízos haviam sido registrados, até que as autoridades da cidade tiveram que chamar o Exército e, é claro, a polícia montada para restabelecer a ordem. Esse teste empírico decisivo deixou minha política em frangalhos [...]

 Talvez eu também seja uma Poliana por acreditar que as pessoas permaneceriam boas se não fossem observadas nem policiadas por Deus. Por outro lado, a maioria da população de Montreal supostamente acreditava em Deus. Por que o medo de Deus não as conteve quando os policiais terrenos foram temporariamente tirados de cena? A greve de Montreal não foi uma ótima experiência natural para testar a hipótese de que a crença em Deus nos torna bons? Ou talvez o sarcástico H. L. Mencken tivesse razão quando disse: "As pessoas dizem que precisamos de religião, mas o que elas realmente querem dizer é que precisamos de polícia".

É óbvio que não foi todo mundo em Montreal que se comportou mal quando a polícia saiu de cena. Seria interessante saber se houve alguma tendência estatística, por mais leve que fosse, para que os crentes na religião tenham saqueado e depredado menos que os descrentes. Minha previsão desinformada seria a do contrário. Muitas vezes se diz, cinicamente, que não há ateus nas trincheiras. Estou inclinado a desconfiar (com base em alguma evidência, embora possa ser simplista tirar conclusões delas) que haja bem poucos ateus nas prisões. Não estou necessariamente afirmando que o ateísmo aumenta a moralidade, embora o humanismo — o sistema ético que freqüentemente acompanha o ateísmo — provavelmente o faça. Outra boa possibilidade é que o ateísmo esteja correlacionado com algum terceiro fator, como um nível maior de instrução, inteligência ou ponderação, que pode contrabalançar impulsos criminosos. As evidências existentes retiradas de pesquisas certamente não sustentam a ideia comum de que a religiosidade está diretamente relacionada à moralidade. Evidências correlacionais nunca são conclusivas, mas os dados seguintes, descritos por Sam Harris em seu Carta a uma nação cristã, são de qualquer forma impressionantes.

Embora a filiação partidária nos Estados Unidos não seja um indicador perfeito da religiosidade, não é segredo que os "estados vermelhos [republicanos]" são vermelhos principalmente devido à enorme influência política dos cristãos conservadores. Se houvesse uma forte correlação entre o conservadorismo cristão e a saúde da sociedade, era de esperar que víssemos algum sinal dela nos estados vermelhos. Não vemos. Das 55 cidades com as taxas mais baixas de crimes violentos, 62% estão nos estados "azuis" [democratas] e 38% estão nos estados "vermelhos" [republicanos]. Das 25 cidades mais perigosas, 76% ficam nos estados vermelhos, e 24% nos estados azuis. Aliás, três das cinco cidades mais perigosas dos Estados Unidos ficam no devoto estado do Texas. Os doze estados com taxas mais elevadas de arrombamentos são vermelhos. Vinte e quatro dos 29 estados com as mais elevadas taxas de assalto são vermelhos. Dos 22 estados com as maiores taxas de assassinato, dezessete são vermelhos.*

 Pesquisas sistemáticas tendem a sustentar esses dados correlacionais. Gregory S. Paul, no Journal of Religion and Society (2005), comparou dezessete nações economicamente desenvolvidas e chegou à devastadora conclusão de que "taxas mais altas de crença num criador e de culto a ele se correlacionam com taxas mais altas de homicídio, mortalidade juvenil e precoce, taxas de infecção por doenças sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e aborto nas democracias prósperas". Dan Dennett, em Quebrando o encanto, faz comentários sardônicos sobre esses estudos em geral:

Inútil dizer que esses resultados abalam tão fortemente as alegações-padrão de que há uma virtude moral maior entre os religiosos que até surgiu uma onda considerável de pesquisas adicionais iniciadas por organizações religiosas que tentam refutá-las [...] uma coisa de que podemos ter certeza é que, se houver um relacionamento positivo e significativo entre o comportamento moral e a filiação, a prática ou a crença religiosa, ele logo será descoberto, já que tantas organizações religiosas estão tão ansiosas para confirmar cientificamente suas convicções tradicionais sobre a questão. (Elas estão bastante impressionadas com o poder da ciência para detectar a verdade quando ela apoia aquilo em que já acreditam.) Cada mês que passa sem que apareça essa demonstração reforça a suspeita de que as coisas simplesmente não são assim.

A maioria das pessoas sensatas concorda que a moralidade na ausência de policiamento é mais verdadeiramente moral que o tipo de falsa moralidade

* Note que essas convenções para as cores nos Estados Unidos são exatamente o contrário das da Grã-Bretanha, onde o azul é a cor do Partido Conservador e o vermelho, assim como no resto do mundo, é a cor tradicionalmente associada com a esquerda política.

que desaparece assim que a polícia entra em greve ou que a câmera de vigilância é desligada, seja a câmera de verdade, monitorada na delegacia, ou uma câmera imaginária no céu. Mas talvez seja injusto interpretar a pergunta "Se não há Deus, por que se dar ao trabalho de ser bom?" de modo tão cínico.* Um pensador religioso poderia oferecer uma interpretação mais genuinamente moral, na linha da seguinte declaração de um apologista imaginário. "Se você não acredita em Deus, não acredita que existem padrões absolutos de moralidade. Com a maior boa vontade do mundo, você pode até querer ser uma boa pessoa, mas corno vai decidir o que é bom e o que é ruim? Só a religião pode fornecer definitivamente os padrões de bem e mal. Sem a religião você precisará construí-los. Isso seria a moralidade sem normas: uma moralidade a olho. Se a moralidade não é nada mais que uma questão de opção, Hitler poderia alegar estar sendo moral por seus próprios padrões inspirados na eugenia, e tudo o que o ateu pode fazer é ter uma escolha pessoal e viver sob uma orientação diferente. O cristão, o judeu ou o muçulmano, pelo contrário, podem afirmar que o mal tem um sentido absoluto, que vale para todos os tempos e todos os lugares, segundo o qual Hitler era completamente mau."

Mesmo que fosse verdade que precisamos de Deus para ser bons, isso obviamente não tornaria a existência de Deus mais provável, apenas mais desejável (muita gente não consegue enxergar a diferença). Mas não é disso que se trata aqui. Meu apologista imaginário da religião não precisa admitir que puxar o saco de Deus é a motivação religiosa para fazer o bem. A alegação dele é que, venha de onde vier a motivação para fazer o bem, sem Deus não haveria padrão para decidir o que é o bem. Cada um de nós criaria nossa própria definição de bem e agiria de acordo com ela. Princípios morais que se baseiam somente na religião (em oposição, por exemplo, à "regra de ouro", que normalmente é associada à religião mas que pode ter outra origem) podem ser chamados de absolutistas. Bem é bem e mal é mal, e não vamos ficar decidindo casos isolados, por exemplo, pelo fato de alguém sofrer ou não. Meu apologista 

* H. L. Mencken, de novo com seu sarcasmo característico, definiu a consciência como a voz interior que nos adverte de que alguém pode estar olhando.

da religião defenderia que só a religião pode fornecer a base para que se decida o que é o bem.

Alguns filósofos, notadamente Kant, tentaram tirar morais absolutas de fontes não religiosas. Embora fosse religioso, como era quase inevitável naquela época,* Kant tentou basear a moralidade no dever pelo dever, e não em nome de Deus. Seu famoso imperativo categórico convoca-nos a "agir somente segundo a máxima tal que possamos ao mesmo tempo querer que se torne lei universal". Isso funciona direitinho para o exemplo de mentir.

Imagine um mundo em que as pessoas mintam por princípio, onde a mentira seja considerada uma coisa boa e moral. Num mundo assim, mentir deixaria de fazer sentido. Mentir precisa por definição da pressuposição da verdade. Se um princípio moral é algo que devemos desejar que todos sigam, mentir não pode ser um princípio moral, porque o próprio princípio desmoronaria, sem sentido. Mentir, como norma de vida, é inerentemente instável. Em termos mais gerais, o egoísmo, ou o parasitismo explorador da boa vontade dos outros, pode funcionar para mim, um indivíduo egoísta isolado, e me dar satisfação pessoal. Mas não posso desejar que todo mundo adote o parasitismo egoísta como princípio moral, no mínimo porque senão eu não teria ninguém para explorar.

O imperativo kantiano parece funcionar para o dizer a verdade e para alguns outros casos. Não é tão fácil assim ampliá-lo para a moralidade em geral. Apesar de Kant, é tentador concordar com meu apologista hipotético que morais absolutistas costumam ser motivadas pela religião. É sempre errado tirar uma paciente terminal de seu sofrimento a pedido dela própria? É sempre errado fazer amor com um integrante de seu próprio sexo? É sempre errado matar um embrião? Há quem ache que sim, e suas bases são absolutas. Eles não toleram argumentação nem debate. Qualquer um que discorde merece ser morto: metaforicamente, é claro, não literalmente — exceto no caso de alguns médicos de clínicas de aborto americanas (veja o próximo capítulo). Felizmente, no entanto, as morais não têm de ser absolutas. 

* Essa é a interpretação-padrão das idéias de Kant. O destacado filósofo A. C. Grayling, porém, argumentou plausivelmente (New Humanist, julho-agosto de 2006) que, embora Kant seguisse publicamente as convenções religiosas de seu tempo, na verdade ele era ateu.

Os filósofos morais são os profissionais em se tratando de pensar sobre o certo e o errado. Como disse sucintamente Robert Hinde, eles concordam que "os preceitos morais, embora não necessariamente construídos pela razão, devem ser defensáveis pela razão".89 Eles se classificam de muitas maneiras, mas na terminologia moderna a principal divisão é entre "deontologistas" (como Kant) e "conseqüencialistas" (incluindo "utilitaristas" como Jeremy Bentham, 1748-1832). Deontologia é um nome bonito para a crença de que a moralidade consiste em obedecer a regras. É literalmente a ciência do dever, do grego para "aquilo que é obrigatório". A deontologia não é bem a mesma coisa que absolutismo moral, mas para a maioria dos propósitos de um livro sobre religião não há necessidade de enfatizar a distinção. Os absolutistas acreditam que existem absolutos do certo e do errado, imperativos cuja correção não faz referência a suas conseqüências. Os conseqüencialistas acham, mais pragmaticamente, que a moralidade de uma ação deve ser julgada por suas conseqüências. Uma versão do conseqüencialismo é o utilitarismo, a filosofia associada a Bentham, a seu amigo James Mill (1773-1836) e ao filho dele, John Stuart Mill (1806-73). O utilitarismo é freqüentemente resumido na máxima de Bentham, que é de uma imprecisão infeliz: "A maior felicidade para o maior número de pessoas é a fundação das morais e da legislação".

Nem todo absolutismo deriva da religião. De qualquer maneira, é muito difícil defender morais absolutistas em outras bases que não as religiosas. O único concorrente em que consigo pensar é o patriotismo, especialmente em tempos de guerra. Como disse o destacado cineasta espanhol Luis Buñuel, "Deus e a Pátria são um time imbatível; eles quebram todos os recordes de opressão e derramamento de sangue". Os oficiais que trabalham no recrutamento apelam fortemente ao senso de dever patriótico de suas vítimas. Na Primeira Guerra Mundial, as mulheres entregavam plumas brancas para jovens que não estivessem fardados. 

Oh, não queremos perdê-lo, mas achamos que você deve ir, 

Pois seu rei e seu país precisam que você vá. 

* * "Oh, we don't want to lose you, but we think you ought to go,/ For your King and your country both need you só." Trecho de uma música usada pela Inglaterra durante a Primeira Guerra para incentivar o alistamento. (N. T.)

As pessoas ignoravam as objeções conscienciosas, mesmo as do país inimigo, porque o patriotismo era tido como uma virtude absoluta. É difícil ser mais absoluto que o "Meu país, certo ou errado" do soldado profissional, pois o slogan faz com que você se comprometa a matar quem quer que os políticos de algum tempo futuro resolvam chamar de inimigos. O raciocínio conseqüencialista pode influenciar a decisão política de ir à guerra, mas, uma vez declarada a guerra, o patriotismo absoluto toma conta com uma força que não se vê fora da religião. Um soldado que permitir que suas idéias de moralidade conseqüencialista o convençam a não partir para o ataque tem grande probabilidade de enfrentar a corte marcial ou até de ser executado. 

O ponto de partida para esta discussão sobre filosofia moral foi uma afirmação religiosa hipotética de que, sem um Deus, as morais são relativas e arbitrárias. Deixando de lado Kant e outros filósofos morais sofisticados, e dando o devido reconhecimento ao fervor patriótico, a fonte preferida da moralidade absoluta é normalmente algum tipo de livro sagrado, interpretado como detentor de uma autoridade que supera em muito sua capacidade histórica de justificá-la. Na realidade, os adeptos da autoridade das Escrituras demonstram uma curiosidade perturbadoramente pequena sobre as origens históricas (comumente duvidosas) de seus livros sagrados. O próximo capítulo vai demonstrar que, de qualquer jeito, as pessoas que afirmam retirar sua moral das Escrituras na prática não fazem isso de verdade. O que é muito bom, como concordarão elas se pensarem bem.



Nenhum comentário:

Postar um comentário